O enterro da cigarra

Naquela noite, entre as crianças presentes na casa dos avós ninguém parecia conseguir dormir direito. Afinal havia chegado do interior, onde a família tinha raízes, trazida por um portador, uma caixa preta, de madeira envernizada, nem muito grande nem muito pequena, de misterioso conteúdo. Parecia uma daquelas caixetas de goiabada que o avô periodicamente recebia de seus parentes da terra. Mas era muito grande para tanto. Era pequena, todavia, para conter, por exemplo, um móvel ou uma ferramenta, além de leve demais para conter queijos, frutas ou mesmo livros.

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 O crido e o havido

Do justo o certo, do certo o crido, do crido o havido. […] Pois então o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Que saiu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver meses, mas com ponto de destino… (J. Guimarães Rosa – O Cara de Bronze)

Meu nome é Antônio, mas meu médico, não sei bem porque, resolveu me apelidar de Porfírio. Ou melhor, eu no começo nem sabia de onde vinha tal apelido, mas quando descobri, achei até bem-posto. Depois eu explico.

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Doze Vinténs: Estórias de Roça e Sertão

Doze vinténs. O significado de tal título o leitor descobrirá já na primeira página dos textos que seguem abaixo, depois do “leia mais”. O número doze, além disso, tem significado aqui, pois representa a quantidade histórias contidas (e contadas) na presente seleção. Podem interpretar o título também à luz dos dicionários, ou seja, essas estórias valeriam tanto quanto aquela antiga fração monetária, quase destituída de valor. Sobre serem “estórias de roça e sertão”, como também consta do título, me permito um esclarecimento adicional. Não é que eu seja um especialista em tais territórios, em termos físicos, geográficos ou literários. Nunca morei naquele interior mais radical de que algumas dessas narrativas se ocupam. Mas tenho família com tal origem, por gerações, inclusive aquela imediatamente anterior à minha pessoa. Assim, o que vai aqui são estórias que se passam neste vasto território, mais cultural do que físico, certamente . Mas pensando bem, faz muitos anos que tenho residência, na verdade, no vasto “sertão” dos planaltos interiores do Brasil, primeiro em Uberlândia depois em Brasília. Aliás, passei praticamente a metade de minha vida em tal localização geográfica. E assim, aprendi a gostar de cerrado; de paisagens achatadas, que alguns consideram monótonas, mas eu não; de rios que fluem de e para onde não se espera; de arroz com pequi; de horizontes abertos; de árvores tortas e nem por isso feias ou “erradas”, como diz meu amigo Nicolas Behr.  E assim apresento a vocês estes contos (se é que posso chamá-los de tal forma), que me deram muito prazer ao serem escritos, augurando que isso contamine os meus eventuais leitores também. Em tempo: “Doze Vinténs” não é um nome exatamente fictício . A bem da verdade, era este o nome da antiga fazendo do meu avô Altivo Drummond de Andrade, em Itabira, onde eu mesmo morei por alguns meses, antes de completar um ano de idade. Mas nenhuma dessas narrativas tem a ver diretamente com fatos reais, são todas totalmente ficcionais, com uma única exceção, naquela parte denominada de O Mato de seus Perigos, a qual, ao lerem, meus leitores saberão a razão disso..

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Catrumanos

Estavam ali no que restava de sombra no pequizeiro, defronte à pamonharia à beira da rodovia, já havia pelo menos uma hora, e a condução não aparecia. Logo naquele dia, sexta feira, em que era possível tirar uma folguinha, tomar uma cervejinha com os amigos no armazém da vila. E tirante isso, não tinham em toda a semana nadinha, uma nesguinha que fosse, de qualquer tempo livre, porque no sábado era dia de ir fazer compras, limpar o galinheiro, dar uma rastelada no quintal, que já estava até parecendo fazenda de viúva. E Nhá Sebastiana não ia deixar por menos, arreliada do jeito que era, a encher a paciência deles até ficarem cansados e, sem ter outro jeito, tocarem a fazer o serviço, sem reclamar. – O sol já vai embora e eles não aparece, disse o mais velho… – Todo dia é essa quizumba, repostou o outro.

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A janela indiscreta

Eu bem vi que o porteiro tentava me avisar de alguma coisa. Não dei muita atenção, pensei que ele falava dos pivetes que andam por ali. Com estes já estou acostumado, não levam a melhor comigo. Mas dessa vez o perigo era outro, uma calçada escorregadia. E assim eu fui parar no chão. Ato contínuo, no Pronto Socorro. E agora em casa estou eu, com a tíbia partida, mínimo vinte dias de repouso forçado, me arranjaram até uma cadeira de rodas, para me locomover pela área na qual um simples degrau se interporia como uma muralha.

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Pereira procura

Tinha verdadeira mania em procurar por amigos antigos e parentes em geral. Quando viajava, então, este traço se exacerbava. Mas não raro os procurava também em lugares inusitados, como em listas telefônicas, placas de túmulos, ou mesmo em convites de formatura, através dos sobrenomes dos formandos. Certa vez, na formatura de uma neta como advogada, atazanou-a durante vários meses para que indagasse se um José Pereira Neto, que constava na relação de formandos, não seria descendente de um primo distante, com o mesmo nome. A moça tentou ignorar o pedido, mas ele não lhe deu descanso, até que ela lhe disse que perdera o colega de vista, irremediavelmente. Mesmo assim, quando podia, voltava ao assunto.

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Um dia na vida de R. Romanovitch

Muito estranhos aqueles acontecimentos. – Você é culpado – era o que uma voz lhe dizia. Ou melhor, quase gritava. Não era possível saber de onde vinha e nem mesmo quem era que assim lhe falava. Seria para ele mesmo? – se indagava, sem resposta. Aquilo era tudo realmente estranho, muito fora do normal. Ele morava em um quartinho alugado, em uma travessa de uma cidade desconhecida, na qual havia cúpulas de igreja coloridas, em forma de sorvete, além de estátuas e monumentos por todo lado. Fazia frio. Havia um grande edifício, não era possível saber se era museu, prisão ou quartel. O fato é que aquele cubículo que lhe abrigava estava distante de qualquer luxo; mais parecia um armário de que uma habitação.

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O Rio do Esquecimento

     Meu Tio e amigo. Hoje me dei conta que a minha vida tinha que mudar. Saí de casa sem saber para onde ir. Por sorte tinha algum dinheiro. Fui para a Rodoviária e por ali vaguei, por horas a fio. Cheguei ainda com a manhã fresca e por ali fiquei até a noite. Procurava um lugar para ir, se afastar de lembranças ruins, de uma vida que me trouxe tanto desgosto, nestes meus vinte anos. Eu, de fato, não sabia para onde ir, queria um lugar bem longe, afastado daqui, para nunca mais voltar. Na bilheteria tive o ímpeto de pedir uma passagem para o esquecimento, se isso fosse possível. Mas de toda forma ficou tarde para voltar atrás, pode acreditar, Tio.

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