Para início de conversa: o amigo em foco é Nelson Rodrigues dos Santos, o Nelsão, eminente sanitarista, herói das lutas democráticas e sanitárias no Brasil. “Ainda” não é usado aqui com alguma carga pejorativa, mas apenas para falar de um SUS que não é este que está aí, com se verá adiante.
Amigo Nelsão, agradeço muito o envio de seus textos. Ainda não os li completamente, pelo volume e também porque uma nuvem insiste em me tapar a visão – preciso operar esta catarata… Ainda não posso comentá-los em detalhe, mas sobre os nossos sonhos, que um dia chamamos de SUS, creio que tenho algo a dizer.
Vivemos em uma era de desmontes: Previdência, CLT, Desarmamento, Política Agrária. Propor mudanças na saúde, dependendo do tipo, fatalmente será confundido como mais uma tentativa de desmonte ou simples aceitação passiva do mesmo.
Mas mesmo assim me arrisco a colocar ideias…
Vejo que a defesa do SUS, pelo menos entre a “nossa” gente (sanitaristas, intelectuais, gente das universidades), se dá dentro de um panorama de quase-unanimidade. Lembremo-nos, entretanto, do que disse magistralmente Nelson Rodrigues (o teatrólogo) sobre as unanimidades. Assim, existem cada vez mais congressos, simpósios, seminários, plenárias, atos públicos e passeatas com tal finalidade. As plateias que neles comparecem, entusiasticamente, a cada dia, encontram mais e mais argumentos para a defesa do sistema de saúde. Mas aí reside um grande dilema: é gente que já está convencida das vantagens do SUS, falando para outras tantas pessoas que também acreditam nele. E fica nisso…
Uma espécie de endogamia se instala, uma unanimidade – nem sempre racional – é gerada e como seria previsível, o produto final costuma ser estéril ou deformado.
Parto do pressuposto que precisamos arejar o debate sobre o nosso sistema de saúde. Fazer valer, por exemplo, a velha máxima socrática de questionar todas as verdades estabelecidas. Principalmente aquelas verdades previsíveis, estabelecidas e repetidas sem crítica, romper com as viciadas endogamias e com as obtusas unanimidades com as quais temos sido forçados a conviver.
O que chamo de arejar o debate seria, por exemplo, ir além, bem além, das discussões registradas até o momento, que implicam na impossibilidade de aceitar qualquer mudança nos rumos do sistema, sob a alegação insistente da necessidade de cumprimento estrito do que está na Lei.
Acredito que precisamos, sim, ultrapassar certos limites, como alguns daqueles impostos pelo arcabouço legal e normativo legado pela Constituição de 1988. Essa afirmativa parecerá herética, porque existe um sentimento de orgulho, por parte de muitos setores sociais, a respeito das conquistas sociais obtidas no texto constitucional e qualquer tentativa ou mesmo insinuação de buscar novos rumos para o SUS corre o risco de se confundir com uma renúncia às sobreditas conquistas.
O ponto de vista geral que defendo é o de que alguns dispositivos legais e, por consequência, determinadas práticas estabelecidas e consagradas, possam ser flexibilizados, e até mesmo revistos, exatamente para fazer o SUS avançar. Parto do pressuposto que existem enormes incertezas quanto ao futuro do sistema de saúde tão arduamente conquistado pelos brasileiros. E esse futuro nos preocupa a todos que lutamos e estamos dispostos a continuar a lutar por ele.
Acho que a primeira coisa que temos que enfrentar é aquela dicotomia, proposta por alguns pensadores da saúde no Brasil, entre aquele “SUS sonhado”, que não se concretizou e este “SUS real” (nada surreal…), que nem de longe corresponde ao que pensamos um dia.
Longe de qualquer exercício da “dialética do possível” acho que isso é um dilema falso. O SUS que temos pode não ser o SUS que um dia desejamos, mas é o que foi possível obter. Afinal estamos no Brasil e aqui a política é mesquinha, a sociedade é frágil e facilmente enganada, as corporações são ávidas e as elites predadoras. Só vamos progredir à custa da melhoria progressiva do sistema, o que só é possível com o tempo, mas certamente não a partir de sua denúncia ou desmonte como algum sonho frustrado que precisa ser sonhado e construído de novo. É com o material que está aí é que temos de fazer tal construção. E temos que jogar ao mar algumas cargas ideológicas, ou preconceitos, que nos impedem de avançar.
Algumas coisas devem ser encaradas de frente. A questão do financiamento por exemplo.
O sonho do “tudo para todos” e mais ainda, “de graça” ainda não se realizou em nenhuma parte do mundo. Por que se tornaria realidade aqui, neste país tão desigual e culturalmente atrasado?
Por outro lado, já de muito se sabe, aqui e em muitas partes do mundo, que os mais ricos conseguem abocanhar os benefícios das políticas públicas antes e com mais apetite do que os mais pobres. Por que, então, insistir na fórmula de que, já que seriam todos iguais perante a lei, temos que oferecer oportunidades e bens iguais para todos? Temos que garantir que os mais pobres tenham acesso, isso sim.
Aí vêm os críticos e dizem: sistemas de saúde para pobres são sistemas de saúde pobres. Não custa perguntar: há evidências científicas a respeito disso? O que se sabe, com evidências abundantes, é que sistemas de saúde que se propõem a fazer cobertura universal indistinta, deixam os pobres de fora.
Como dizia o Dr. Adib Jatene, o maior problema de ser pobre, neste país, é que só se tem amigo pobre. É ai que um Estado robusto e competente, sem deixar de ser modesto, deve entrar.
Então, para mim, o negócio é o seguinte: aparelhar os sistemas de saúde – e financiá-los decididamente – para que atendam gratuitamente apenas os segmentos mais pobres, com critérios bem definidos. Os remediados e os ricos que paguem, parcial ou totalmente, sua parte. Para tanto não seria preciso colocar catracas ou máquinas de Visa ou Credicard na entrada de cada unidade do sistema. Basta criar aquele tão decantado Cartão Nacional do SUS, o que os governos dos últimos anos no Brasil, fossem dos amarelo-azuis ou dos vermelhos, não conseguiram ou não tiveram culhões para fazer.
Cobrar dos mais ricos, sim. Pode ser também estimulando essa gente a não só participar de planos de seguro-saúde, mas vigiando uns e outros (planos e clientes) para que só recorram ao SUS mediante garantia de reembolso. E qual o problema de lhes facultar o desconto no imposto de renda correspondente a tais contribuições. Isso deve corresponder aos gastos que pouparão ao SUS. Com limites, é claro. Simples assim.
Simples assim? Já ouço vozes de alerta: fazer tal controle para diferenciar quem é mais rico (e pagante) e quem é pobre irremediável (com atendimento realmente gratuito) é tarefa para um Estado que tem se mostrado historicamente incompetente. Portanto, não poderá dar certo… Convenhamos, entretanto: qualquer que seja a solução, mesmo na atual geléia geral da gratuidade para todos, tem que existir um Estado competente. Ou isso ou nada…
Não me falem também que as informações sobre renda no país não são confiáveis – e que vai ter muito rico passando por pobre. Confiabilidade é com a Receita Federal, que não deixa passar um mísero centavo nas declarações de renda, pelo menos na vasta classe média, por ter controle quase total sobre as transações de boa parte dos brasileiros, graças ao número do CPF. Ah, tem o caixa dois… E mais aquela CPMF que “eles” não deixam passar. OK, é complicado, mas não sem solução.
Percebo também que a tal “unanimidade” (inter pares) no SUS é orgulhosa – chega mesmo a ser arrogante. O argumento é mais ou menos o seguinte: para que fazer diferente se já está tudo disposto em leis, para a obtenção das quais houve um grande esforço da sociedade brasileira. Em resumo, é melhor deixar tudo como está e lutar para que tais leis sejam efetivamente implementadas. Ou, como se dizia na década de 1990: “ter a ousadia de cumprir a lei”.
Sobre algumas das leis do SUS, seja o respeitável texto constitucional, as leis orgânicas ou o que veio depois, é inescapável recorrer ao dito de Bismarck, que comparou a ação legiferante à fabricação de salsichas.
A própria Lei nº 8.142, pela qual se clama como se fosse um inatacável monumento de clareza e racionalidade, não nos esqueçamos, veio como um remendo (mal costurado) para os diversos vetos presidenciais de Collor à lei original, a Lei nº 8.080. Seria, de fato, impossível, exigir coerência maior de um documento legal assim produzido. E os exemplos não param aí: o artigo 200, da Constituição Federal, tem também fisionomia frankensteiniana, reunindo alhos e bugalhos em vasta peroração, da qual boa parte ainda não foi regulamentada, passados quase 20 anos de vigência da Carta.
Assim, na contramão de mais uma unanimidade, penso que a ousadia verdadeira, em muitos aspectos, não é exatamente a de “cumprir a lei”. Nem descumpri-la, tampouco. O caminho do meio seria, simplesmente, pugnar pela mudança de leis ou partes delas que estão em franco desacordo com a realidade, dentro da lógica de que fatos sociais e fatos jurídicos são coisas essencialmente diferentes e que uns devem, legitimamente, desencadear os outros, ou, pelo menos, mostrar o caminho a ser seguido.
Um dos grandes problemas do SUS é que o ímpeto (e às vezes até certa “fúria”) dos legisladores criou figuras inaplicáveis à realidade. Brecht satirizou impiedosamente este tipo de ilusão na famosa conversa entre dois políticos, em uma de suas peças: “não seria melhor votarmos em outro povo?” Ou, parafraseando: para nossas leis precisávamos de melhores costumes e melhores instituições.
Nossos legisladores e também os gestores, para não falar dos intelectuais acríticos que insistem em defender um SUS que nunca existiu, não existe e tampouco pode existir dentro de um panorama lógico, parecem, na pior das hipóteses, irresponsáveis “fabricantes de salsichas”. Na melhor delas, portadores daquilo que em inglês se chama de wishful thinking, uma exagerada crença que o mero desejo pode criar a realidade. Em um caso ou no outro, o resultado é o mesmo: um vasto cipoal de leis e normas que ninguém consegue nem mesmo interpretar adequadamente, quanto mais cumprir à risca.
A verdade é que se requer ousadia, de fato. Nisso os formuladores das normas do SUS, em sua primeira década, no século passado, tinham razão. Mas diante da situação presente, ousado mesmo seria quem quisesse assumir que boa parte do que está aí é puro entulho normativo, que cumpriria ser retirado para dar margem à possibilidade de uma nova construção. Uma operação semelhante àquela que resultou da queda das torres gêmeas em Nova Iorque…
Concluindo, sem nenhuma intenção ou veleidade de fechar a discussão, acho que posso afirmar: ou fazemos alguma coisa acontecer – e isso passa por um grande movimento de angariar apoio, de fundo cultural – ou não haverá outra resposta para uma questão hoje pulsante: tem futuro o SUS? Corre-se enorme risco de que a resposta seja simplesmente: “não, esse SUS que aí está não tem nenhum futuro.”
E para não dizerem que não falei de propostas…
- O padrão estrutural e “jaboticabal” da federação brasileira incentiva a irresponsabilidade dos gestores sub nacionais, ao lhes conferir o estatuto de autonomia. Assim, que se criem instâncias supra municipais e supra estaduais de gestão, baseadas no direito público, para gerir sistemas regionais de saúde, não mais tão somente locais.
- Ninguém merece o verdadeiro túnel (da morte) estabelecido pelo panorama jurídico, em especial as leis de responsabilidade fiscal, o estatuto do funcionário público e a lei de licitações. A tal da “responsabilidade” é só para tolher as áreas sociais; a “estabilidade” e a “carreira” se traduzem em sistemas em que os maus regozijam e os bons nunca são estimulados; as “licitações padrão 8666” são apenas terreno fértil para a burla e a sacanagem.
- É essencial a liberação das formas de contratação de pessoal, rompendo alguns paradigmas, aqueles da Lei 8112 e outros. Alguns tópicos a discutir: fim da estabilidade; fim das prerrogativas de escolha de local de trabalho (vai para onde o preenchimento da ficha de inscrição definir); restrição ao direito de greve (Sim! No serviço público nada mais lógico – onde já se viu fazer greve contra o povo, contra o contribuinte?).
- Uma Lei de Responsabilidade Sanitária, esta sim, seria muito bem vinda. De preferência prevendo como crimes hediondos o desvio e a má gestão do dinheiro público na saúde.
- “Controle social”? Chega de sonhos… “Participação” é o nome da coisa, em caráter permanente, não burocrático, aberto a todos os cidadãos e não apenas às corporações, sindicatos, associações de pacientes – que são partes que por si só não compõem o todo. “Deliberativo”? Só se for para questões internas dos conselhos e outros órgãos. Deliberação, mesmo, é responsabilidade de quem é eleito e pode (ou deveria) ir até para a cadeia se não fizer o dever de casa direitinho. Para ajudar na participação cidadã, as tecnologias de informação estão aí e os computadores e os telefones celulares já estão disseminados por todo o Brasil. A fórmula da Lei 8112, dos tais “conselhos deliberativos e paritários” já se esgotou.
Caro Flavio: muito grato pelo seu rico retorno ao meu texto, que já me orientou para seu aprimoramento, que lhe enviarei brevemente. Quanto á citação no seu blog, me envaidece. Passo-lhe a seguir, como adequei seus alertas e proposições, com o cuidado de não adicionar mais um procedimento administrativo-financeiro na estrutura e funcionamento do SUS, o do pagamento direto pelos remediados e ricos, dos serviços prestados, e sim, canalizar esse pagamento através de parte do pagamento já efetuado massivamente ás operadoras perivadas, que é o ressarcimento já previsto em lei. Com isso, estríamos protegendo a finalidade pública de mais esse delicado flanco. Indo á redação que proponho: trata-se de contrapor á visão do “tudo para todos”, distorção da Universalidade e Igualdade induzida em nossa sociedade pelo mercado na saúde, com outra visão: a da efetivação da oferta e utilização desigual da atenção integral á saúde, na ordem inversa da desigualdade das necessidades. Entre os vários mecanismos existentes e a serem criados, destaco dois: a)definir o padrão da integralidade a partir da relação já definida das ASPS no SUS, excluindo a indicação de procedimentos cujos resultados efetivos e benefícios não são justificados por evidências científicas nem pela prática da Equidade, como já ocorre na maioria dos sistemas de saúde mais avançados e defendidos pelas suas populações, como o NHS, o espanhol, o canadense e vários outros, e b)implementar, coerente e consequentemente, o ressarcimento ao SUS, pelas operadoras privadas de planos e seguros de saúde(OPPSS), dos valores correspondentes a todos os atendimentos, pelos serviços do SUS, dos seus segurados e afiliados. A operacionalização desse ressarcimento está dependente da adequada implementação do cartão SUS(Universal) que deve cobrir a totalidade da população, e cruzamento com os dados informatizados das afiliações ás OPPSS, de tal modo, que o afiliado á OPPSS, ao ser atendido no SUS, gera automaticamente o ressarcimento. Desde o final dos anos 90, alguns bilhões de reais públicos vem sendo gastos na infraestrutura dessa informatização, não só para a efetivação do ressarcimento, como importante combate auxiliar aos desperdícios internos no SUS, incluindo os serviços privados contratados e conveniados. Tudo, até o momento em vão, inclusive a revisão, a favor do SUS(da população), da legislação de 1998 sobre o ressarcimento. Não me surpreenderia com estimativas iniciais acima de 10 ou 15 bilhões a mais para o SUS ao ano, hoje no setor, mas fora do SUS. Para não falar nos fortíssimos subsídios públicos em renúncias fiscais a pessoas físicas e jurídicas no setor saúde e co-pagamento público de planos privados de saúde para os trabalhadores e autoridades públicas dos três poderes, que pode estar somando pelo menos mais 10 bilhões anuais, também já alocados no setor saúde. A luta continua! Nossa avaliação, formulação e reformulação de estratégias no MRSB, deve também continuar! Grande abraço e mais uma vez grato pelas suas considerações. Nelson
Caro Flavião, esqueci de lhe pedir seu texto formal para citá-lo nas referências do meu texto após aprimoramentos que farei neste Abril. Apesar dos seus 4 anos, seu livro “A Unanimidade faz mal á Saúde” permanece atualíssimo e pretendo citá-lo também. Você tem alguma recomendação? Aproveito para lhe referir toda a reciprocidade minha com você, porque você insiste até o fim “caminhando numa estrada de pó e esperança”. Não comentei na época com você: aquele ano de 2005 foi para mim o pedaço mais angustiante e sofrido de toda minha caminhada na política de saúde, incluindo os ásperos tempos da ditadura. Passei o 2003 2004 resistindo em reconhecer a dura e inaceitável realidade de que a implacável hegemonia anti-SUS, estava apenas reciclando sua estratégia, do autoritarismo tecnocrata cooptador, para o populismo/nomenklatura cooptadores, com o mesmo mercantilismo comendo e corrompendo feio por baixo. Inconscientemente regredi meu espírito aos tempos escuros da resistência na ditadura, e trabalhei compulsivamente na organização e realização do Simpósio de Política Nacional de Saúde em Junho/2005 no auditório Tancredo Neves da C.D. Ao final desse ano, mais compulsivamente ainda, tentando influir na gestão Saraiva Felipe para retomada similar aos idos do Simpósio de 1989 também na C.D., que gerou a Lei 8080/90. Foi a única vez na vida que somatizei, em Nov/2005, na secura de Bsb, muito tenso e ingerindo pouquíssimo líquido, um belo cálculo renal. Grande abraço, companheiro de colegiados de secretários municipais. Nelsão