Suicídio e USPicídio…

USPLeio nos jornais que uma onda de supostas tentativas de suicídio se abate sobre estudantes de medicina da USP. A matéria da Folha de São Paulo, datada de 10 de abril último, assinada pela jornalista Claudia Colucci, que tem demonstrado muita competência na cobertura de assuntos da saúde, desta vez, contudo, parece tratar o tema de maneira parcial ou mesmo superficial.

Uma primeira pergunta se impõe: se tais casos fossem provenientes de alguma pequena Faculdade, digamos, de Filosofia, Ciências e Letras, do interior ignoto do Brasil, mesmo que fossem mais numerosos e fatais do que aqueles registrados em São Paulo, chegariam a motivar uma matéria em jornal de circulação nacional, como a FSP?  Certamente a resposta seria não

Relata a articulista que já ocorreram pelo menos meia dúzia de tentativas entre estudantes da Faculdade de Medicina, com maior concentração entre os alunos do quarto ano. O número é impreciso, segundo ela, por relutância dos estudantes e mesmo dos professores em falar sobre tal assunto.Mas parece certo não ter sido registrada nenhuma morte até agora.

Curiosamente, trata-se da mesma USP e da mesma faculdade em que mortes de calouros por trotes selvagens, como ocorreu há pouco tempo, também foram relegados ao silêncio, talvez doloroso, talvez cúmplice, da parte dos que os presenciaram e sofreram. Seria uma prática uspiana, essa de calar sobre o que dói e maltrata?

No artigo em pauta, não se levanta nenhuma correlação entre os dois episódios – e talvez ela nem exista de fato – mas uma coisa é certa: o silêncio da comunidade, comum aos dois casos, é no mínimo constrangedor e desarrazoado.

Algumas explicações são levantadas em relação a tais episódios. A primeira delas, mais previsível, é a de que as vítimas estão inseridas em um cenário de grande pressão acadêmica. Não se poupam adjetivos para descrevê-lo, pontificando, entre outras, as expressões esgotamento, ansiedade, depressão. Mas, sem dúvida, isso deve ser uma situação comum em cursos de medicina, pelo menos nas instituições que fazem jus,de direito e de fato, ao designativo de Escola Médica.

De toda forma, a explicação parece incompleta, no meu entendimento. Indago: isso estaria acontecendo também em outras boas faculdades de medicina, de engenharia, de direito ou outras, no Brasil ou no mundo? O mesmo se daria em instituições de reconhecido rigor acadêmico, talvez até bem maior do que no curso de medicina da USP, tais como o ITA e as Academias Militares? Embora não conste nos meios disponíveis, creio que esse tipo de informação não esteja sendo escamoteada ou oculta pelo silêncio, em uma época de reconhecida liberdade de propagação de informações, falsas ou verdadeiras, via redes sociais amplamente disponíveis, particularmente entre os frequentadores de tais cursos.

Isso para não falar das imensas pressões, potenciais deflagradoras de quadros de depressão, ansiedade, esgotamento, sofrimento, com seu devido cortejo, que afligem as dezenas de milhões de desempregados ou pessoas em regime de insegurança social, como se vê no Brasil atual. O IBGE deve nos responder se houve aumento de suicídio entre desempregados em anos recentes, no Brasil. É possível que sim, mas aqui, pelo menos, as razões seriam bem mais palpáveis.

O artigo de Colucci introduz uma questão interessante, que vale a pena ser também esmiuçada. Ela diz respeito à formação das tradicionais “panelas” estudantis, ou seja, grupos de interesse comum que, ao se formarem, costumam deixar excluídas outras tantas pessoas. Na Medicina da USP, pelo visto, esta é uma real tradição, além de ser prática formalmente compulsória para o desempenho das atividades acadêmicas. Assim, os mais bem relacionados, os mais articulados, os mais simpáticos – ou seja lá o que forem – se juntam e deixam de fora os estudantes que acabam por não ter outra chance a não ser a de pertencer a outros grupos que terão como principal característica a de serem constituídos por outsiders.Pelo que se sugere no artigo em pauta, o fato de se sentirem como pontos fora da curva estaria levando alguns estudantes a quadros de depressão, possíveis precursores de suicídio.

Um parêntese: quando lecionei no curso de medicina na Universidade de Brasília assisti coisa semelhante. O tal grupo afluente, muitas vezes subdividido em facções rivais, dominava o cenário, por exemplo, nas interlocuções com os coordenadores ou na definição relativa às festas de formatura. Qualquer decisão que interessasse ao coletivo tinha que passar por tais colegiados informais. Lembro-me, por exemplo, da negociação para que os estudantes fossem estagiar em unidades de Saúde da Família na periferia de Brasília, como parte de seu currículo do último ano de curso. O que era para ser uma nova atividade, desafiadora, mas sem dúvida geradora de aprendizado, aceita por alguns, embora vista de forma neutra por muitos, somente foi objeto de deliberação quando o tal grupo de notáveis se manifestou, tendo proferido um taxativo não. Mesmo assim, o estágio chegou a acontecer, mas minado por todo tipo de boicote dos líderes, secundados pela multidão de indiferentes, que então se tornaram também contrários à ideia. Aos que tinham aceitado a atividade, restou apenas o papel de minoria, sem voz e sem voto.

Na ocasião, a colega que coordenava o curso de medicina da UnB me falou de suas preocupações a respeito de tais panelinhas e, particularmente, da rivalidade que havia entre elas. E me relatou que certa vez, tentando esclarecer as raízes do fenômeno e buscar maior sintonia e harmonia entre os querelantes, ouviu dos mesmos que já não sabiam ou tinham se esquecido de quais seriam verdadeiros fatos geradores das disputas, mas que não havia como modificar o status-quo.

Uma questão abordada apenas de passagem no artigo da Folha é relativa ao cenário da prática da medicina no Brasil atual. Imagino que para um estudante da USP, que enfrentou um dos vestibulares mais renhidos do país, as expectativas frente ao mercado de trabalho no qual vai se inserir em breves dois ou três anos, são de certa forma “sombrias”. Isso se aplicaria particularmente aos detentores do desejo de pertencer à elite médica paulista ou nacional, graças ao exercício de sub(sub)especialidades exóticas ou mesmo à operação, em caráter de quase-exclusividade, de determinadas tecnologias de ponta. Para estes, certamente há luz no fim do túnel, devidamente alimentada por famílias abonadas. Para os demais, o que resta é o emprego público, aquele Mais-Médicos tão desprezado – e é aí que o preconceito pega… E tome esgotamento, ansiedade e depressão – em doses uspianas. Muito jovem doutor recém egresso das vetustas galerias da Avenida Doutor Arnaldo deve se perguntar, desolado: mas foi para isso que eu cheguei até aqui? E não há antidepressivo ou tratamento psi que lhe devolva o orgulho e o otimismo. Para não falar na mitigação da arrogância que já lhe era peculiar ou foi instilada ali em Pinheiros…

Com efeito, ver a queridíssima USP jazendo em tal vala comum não deve ser brincadeira…

Sem abandonar o tema presente, digo sinceramente: o suicídio da USP me parece, hoje, institucionalizado e totalmente irreversível. O que se passa (ou não se passa, sabe-se lá da verdade na Faculdade de Medicina) é mal de pouca monta. As ferramentas de autoextermínio abundam e são geradas ali mesmo, sendo incrementadas pelo ranço corporativo; pela arrogância acadêmica; pelo silêncio cúmplice; pela gestão desastrosa de recursos; pelo orçamento de pessoal que passa de 100% do dinheiro disponível. É claro que botar a culpa no governo – em todo e qualquer governo – ainda é o argumento mais fácil, embora de comprovação questionável.

Abandonai vossas esperanças, ó ex-pujante, mas ainda orgulhosa, Universidade da Sagrada Paulicéia!

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