Querido Lucas Carvalho, leio nos jornais que você, com apenas 17 anos conseguiu vaga no curso de medicina na UnB. É um feito e tanto. Parabéns! E seu merecimento fica ainda maior quando vejo que você é filho de uma diarista e de um entregador de bebidas, que é morador de uma remota periferia do DF e que desde a infância já se virava vendendo brigadeiros na escola. E mais: sonhava ser músico e não deixou por menos, hoje é saxofonista profissional! É muita conquista para uma pessoa só. Parabéns de novo! Nem eu nem a maioria das pessoas conhece, de perto, as intempéries e os acidentes de percurso que você deve ter enfrentado para chegar onde está. Então, você quer ser médico… Sem dúvida, é uma boa escolha. Mas talvez eu, do alto dos meus 71 anos e quase 50 de formado nesta profissão, possa lhe trazer alguma informação que você talvez ainda não tenha recebido ou percebido por si só. Ou talvez já o tenha… De toda forma, me desculpe se repito o que você já sabe e chovo no molhado.
Minhas reflexões vêm de longa data e ficam mais pulsantes quando vejo aqueles garotos nos semáforos, pintados de todas as cores, em trajes sujos, pedindo uma contribuição para o chope grupal, pelo momentoso fato de terem passado no vestibular de medicina. Não tanto por razões moralistas, do tipo “afinal de contas não ficam bem tais atitudes em futuros médicos”. A minha questão é outra: a preocupação com as ilusões de que aqueles jovens – você agora entre eles – se alimentam e, de quebra, a classe média e média-alta a que pertencem (neste caso, exceção feita a você…). Ilusões, aliás, compartilhadas por boa parte da sociedade.
A primeira dessas miragens deriva do fato de já termos, aparentemente, médicos demais. Aqui no DF, inclusive, tais profissionais existem em proporções cubanas ou israelenses, que são padrões mundiais em tal quesito. Mas formar muitos médicos é apenas um detalhe, pois é preciso saber onde eles estarão, de fato, na prática. Aqui no DF, por exemplo, estatisticamente eles são estão em excesso, mas quantas unidades da periferia, principalmente, têm suas vagas não preenchidas? Como você pode perceber, “formar” é uma coisa, “atender necessidades da população” é bem outra.
Mas isso acontece em quase toda parte no Brasil. E nem resta mais o consolo daquela palavra de ordem de décadas passadas – a necessidade da interiorização da medicina. Com o advento do SUS e a decorrente expansão dos serviços de saúde nos municípios, mesmo pequenos, graças à política de descentralização (sim, há coisas bem-sucedidas na saúde em nosso país), menos de 10% dos municípios brasileiros permanecem sem médicos. Alguns deles se situam a menos de 100 km da Capital Federal, acredita? Mas da mesma forma que não há médicos ali, não há enfermeiros, dentistas, engenheiros, agências de banco, internet, Uber e Netflix. Enfim, tudo que se associa à vida civilizada e inserida no mundo do consumo e do acesso à informação.
Bem que se tenta, no Brasil, promover a ida de profissionais de saúde para lugares assim. O Programa Mais Médicos foi, sem dúvida, um alento. Bem-sucedido, embora de sustentabilidade duvidosa. Até que vieram esses caras que acreditam que “ideologia” é algo que só existe na cabeça dos outros, daqueles que eles veem como inimigos, e disseram que não era nada disso. Expulsaram os cubanos e quem ficou no lugar deles? Muito poucos, até agora. Boas intenções, ilusões sem apoio na realidade, falações, tramas conspiratórias e papelório não preenchem vagas de médicos, esta é a verdade. E os médicos formados no Brasil, infelizmente (e até quando?), são mais parte do problema do que da solução para tanto.
E ainda falando em ilusões, acho que você deve ir se preparando para o modo como receberá sua formação profissional. Aqui fala alguém que militou durante mais de 30 anos no ensino médico, associando sua prática docente à gestão de serviços públicos de saúde. Uma pergunta que tal vivência me trouxe e que continua pulsando é: esta turma está sendo formada para qual sistema de saúde? Para quais tipos de necessidades populacionais? Para o que demanda a realidade da saúde no Brasil certamente não é.
Resulta disso, Lucas, é que os médicos, em sua maioria, são preparados para agir e pensar como especialistas, na melhor das hipóteses como especialistas em partes do corpo humano, abstraindo-se de uma totalidade ou dos fatores que o rodeiam, o ambiente ou o modo de vida, por exemplo. Na pior situação, como operadores de tecnologias voltadas para determinado órgão ou sistema, quando não apenas para moléculas ou outras partículas que compõem a máquina humana. E acima de tudo, praticando um enfoque exclusivo sobre a doença – e não sobre a saúde – de cada indivíduo que lhes consegue acessar, não das pessoas em geral. Assim, o médico, que deveria ser um real profissional de saúde, se transforma em mero profissional da doença.
Para não me delongar muito, diria ainda a você que a saúde representa na verdade o produto de quatro condições fundamentais: a biologia da pessoa; o ambiente em que ela vive; os estilos de vida que assume e a oferta de serviços de saúde a que está exposta. Um bom curso de medicina teria, por obrigação, que se dedicar a estes quatro componentes da saúde. Mas o que acontece na realidade é bem diferente disso. Os cursos de medicina atuais possuem foco absoluto nos fatores biológicos, na patologia individual e no ambiente hospitalar. Nada de abordagens mais amplas, por exemplo, em comunidades, famílias, aspectos sociais e culturais, para não falar da promoção de verdadeira saúde e da prática nos serviços de saúde básicos e nos múltiplos ambientes onde a vida de fato acontece.
Mas não desanime! Ter consciência das coisas, mesmo que possamos fazer pouco para muda-las de imediato, já é um passo adiante. Sua história, ou a parte dela que conheci pelo Correio Braziliense, mostra que você é uma pessoa que tem têmpera para não se render a ilusões, ou embarcar na ilusão de que a tecnologia é tudo na carreira de um médico. Afinal, você não terá pais abonados para adquirir os sofisticados equipamentos de que grande parte dos alunos de medicina sonha em poder dispor para ganhar a vida. Neste quesito, você terá mais dificuldades do que aqueles, mas em compensação, poderá fazer pela sua vida e pela vida das pessoas que lhe procurarem algo muito maior, uma realização verdadeira, na qual a prática de medicina faz parte de um todo, que tem a ver com a conquista da verdadeira cidadania.
Tenho pena, Lucas, de não ser mais professor da UnB para assistir sua entrada naquele ambiente elitizado e ter você como aluno. Sua simples presença ali já será uma gloriosa lição para seus colegas e seus professores. Que você não abra mão e nem deixe pelos corredores da Universidade a esplêndida bagagem de que é portador.
Muito sucesso, Lucas. Você merece!
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Saiba mais sobre o Lucas: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_ensinosuperior/2020/01/25/interna-ensinosuperior-2019,823191/estudo-e-garra-a-saga-do-morador-do-sol-nascente-que-sera-medico-pela.shtml