Li, por esses dias, dois textos que falam da visão de uma cidade nascente – Brasília – naquele período mágico em que tudo indicava que o Brasil ia dar certo. Éramos campeões mundiais de futebol, de tênis, de boxe e de esperanças. Uma nova capital estava sendo erguida nos fundões do país. Nada mais emblemático. Falarei do primeiro desses textos aqui, o conto “As Margens da Alegria”, de Guimarães Rosa. Na sequência quero trazer Clarice Lispector e Vinicius de Morais, Sophia de Mello Breyner e outros, enquanto vou tentando colecionar mais e mais. Antes de começar, um preâmbulo. JGR trouxe vários personagens infantis à luz em sua obra. O mais notório talvez seja Miguilim, em “Campo Geral”, mas não podemos esquecer do Quinzinho de “Conversa de Bois”; de Nhiinha, a “Menina de Lá”; dos irmãos e do primo de “A Partida do Audaz Navegante”, além de outros. Acrescento a tal galeria este outro menino, não nomeado que ia “com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos”.
Depois de duas horas e pouco em um voo de monomotor já estavam na cidade que “apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo de pouso ficava a curta distância da casa — de madeira, sobre estacões, quase penetrando na mata. O menino via, vislumbrava”. E ele, “respirava muito […] queria poder ver ainda mais vívido — as novas tantas coisas — o que para os seus olhos se pronunciava”.
Era ali que estrava sendo construída aquela “grande cidade [que] ia ser a mais levantada no mundo”.
O lugar onde se hospedaram, uma aparente residência provisória em um daqueles acampamentos que abrigavam engenheiros técnicos, além de – com alguma distância – também os operários, é assim descrito: “a morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa. Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores?”
No meio de tanta novidade o que chamou a atenção do Menino foi um ser que habitava o quintal daquela casa, um peru, que assim foi apresentado: “grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto — o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonltriante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruzlou outro gluglo. O menino riu, com todo o coração”.
Dias depois, uma tragédia acontece: aquele ser tão maravilhoso é morto e servido em um jantar. E ele então vê, dolorosamente aquele “peru-seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte”. Mais tarde, no fundo do quintal, beirando já o cerrado, sente então uma “saudade abandonada, um incerto remorso”, que ele é incapaz de precisar, pois, afinal, “seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica”. E assim descobre os restos da ave num monturo, “em espetaculosa surpresa”, embora de modo “suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro”.
Para consolá-lo, oferecem a iguaria local, que mal provou: “a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor”. Com certeza é aquela que ainda hoje se fabrica em Luziânia…
E é levado também a passear. “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago”. “Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira”.
Mais além, “fabricava-se o grande chão do aeroporto — transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as betumadoras”. E conheceu a “derrubadora […] com à frente uma lâmina espessa, limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca. […] A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara…, e foi só o chofre: uh… sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda”.
Em toda parte, aquele céu “atônito de azul”. No fim do dia, viu que, para seu consolo finalmente, “voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria”.
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Ainda sobre a infância, há uma passagem em que Guimarães Rosa foi autor, mas também personagem, em cena que me encanta profundamente. Corriam os anos 40 e a escritora Alice Dayrell Caldeira Brant, por pseudônimo Helena Morley, acabara de lançar o livro de memórias infantis que viria a se tornar um clássico da literatura brasileira: “Minha Vida de Menina”, retratando a vida de uma garota e de sua família de classe média baixa no interior do Brasil (Diamantina) no agitado período que abarcou a libertação dos escravos e a proclamação da República, junto com o primeiro vagido da incorporação do Brasil a uma nova ordem capitalista mundial. Pois bem, o livro fez um sucesso tremendo e não houve adolescente ou mesmo adulto que não o lesse na ocasião. Logo surgiram dúvidas se uma obra de tal qualidade e mesmo sutileza psicológica poderia ser, de fato, apenas um diário de uma adolescente, como era apresentado. Havia mesmo suspeitas de que o genro de Alice, o intelectual mineiro Abgar Renault, teria “dado uma mãozinha” na redação final da obra. JGR, certamente conhecendo a história do livro e de sua personagem, saiu em defesa de Alice em texto publicado na época, disse algo mais ou menos assim: não importa se foi a menina ou a mulher adulta quem escreveu este livro. Se for a menina, sem dúvida é uma obra prima; se for a mulher, valerá mais ainda, pois não conheço, em toda a literatura universal, alguém que tenha sido capaz de resgatar a infância com tanta sensibilidade e riqueza.
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E por falar em sensibilidade e riqueza, com seus variados personagens infantis, Rosa não faz por menos. Veja-se, por exemplo, esta passagem em que Miguilim, que não se sabia míope, usa pela primeira vez uns óculos, que lhe são emprestados por um doutor em visita à sua casa.
E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.
— Olha, agora!
Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele daterra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava.
Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo… O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompasso, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, a Mãitina. A Chica veio correndo atrás, mexeu: — “Miguilim, você é piticego…” E ele respondeu: — “Donazinha…”.
Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.
— “Você está triste, Miguilim?” — Mãe perguntou. Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferente, eram grandes demais.