Agora resolvi escrever contos…

Talvez seja ousadia minha, mas aqui vai uma amostra…

Registrado nas Efemérides

Destas ruas de pedras lisas, que tantos pés esculpiram, as feridas nos morros se fizeram menos mortais e as mangueiras inundaram tudo com o cheiro seminal de suas floradas; das gelosias dos casarões alguém viu, mas logo se calou. O café coado na cozinha dos fundos do casarão deixou um odor, logo substituído por outro, que não se conhecia. Os burricos cargueiros na rua principal abriram suas narinas e estacaram por um minuto, como se o procurassem no ar, curiosos e assustadiços. A velha ponte não tremeu daquela vez com as mulas a passarem por ela como um tropel em nuvens. O rio, por momentos, correu majestoso como em outro século, quando os aventureiros obcecados pelo ouro ameaçaram incendiá-lo, para pasmo dos bugres. Peixes, que há muito não se viam por ali, saltaram no ar. As pobres criaturas da Cadeia Pública, de um e outro lado das grades, estremeceram ao perceberem a presença daquilo e a ele se renderam, sentindo algo que não sabiam, nem podiam, como coisa que evola, galo cantando ao longe, em outro tempo e em outros quintais. Aragem vinda da serra, de alguma grota úmida e florida, fez pássaros mudaram seu rumo e o leque dos coqueiros, levemente se adernou, como o velame de barcos em mar de nuvens. O ruido das palhas segredava a quem quisesse ouvir, mesmo sem entender, coisas graves. De onde vinha, quem sabia não contou. Parece, eis o dito, que o olho de tudo era o casarão rosado, na rua de cima, em um quarto dos fundos. Mal vislumbráveis na penumbra, mas denunciados pelo calor emanado e pelo seu odor a terra, cúrcuma, flores de manga e jenipapo, os corpos enlaçados, deles, os amantes, o mosto suarento. Na pele deles, em pequenas gotas, como borbulhas na superfície de um lago, desprendiam ar substância volúvel, que saturava a alcova, escoava pelos beirais do casarão, embriagava os pássaros no quintal, fez falar o papagaio mudo em seu poleiro e arrepiar a pelagem do gato preto na velha cozinha. Aquilo ganhou a rua, a colina, os morros. Raros peixes vinham à tona do rio semivivo buscá-lo, sôfregos o retinham com suas guelras. Um menino sentiu e sorriu, sem saber o que aquilo pudesse ser. Um preso suspirou e pôs-se a cantar e todos o acompanharam. Na velha igreja, quase deserta, ouviu-se um coro de vozes, secundado por desconhecido instrumento, numa música que tinha cor e cheiro. A velha beata que dormitava com um rosário nas mãos estremunhou-se e persignou-se, em pensamentos malsãos. Pensou naquelas coisas sem pejo de se confessar e até sorriu. Foi assim, dizem:  vinda a noite, na praça daquela cidade onde nada acontecia, todos haviam sentido, aquilo ainda no ar, sobre o que não se entendiam, por desconhecido e perturbador. Mas não falavam, apenas guardavam e se inquiriam curiosos, se algum dia poderia ser de novo. O ar se moveu, fresco, quando o Moço e a Moça seguiram rumo à ponte, para outra vez, em outro lugar.

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