Um conto (mais um…)

Tenham paciência. Estou aposentado, sem muitas coisa para cuidar. Assim, escrevo uns contos. Aqui vai mais um. Apresento-lhes QUADRILHA MODERNA, inspirado no poema Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade. e vão desculpando a ousadia…

João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

Quadrilha moderna

João amava Teresa. Desde criancinha, no Jardim de Infância, ele já tinha se declarado a ela, quando dançaram a quadrilha junina juntos. Os pais de João e Teresa eram amigos. Ou melhor, o pai de Teresa e a mãe de João, porque a mãe de Teresa tinha morrido e a mãe de João era separada do marido. Ah, eles moravam no mesmo prédio também. Vinham da aula juntos, às vezes buscado pelo pai de Teresa ou pela mãe de João. E às vezes iam assistir algum filme juntos na TV. Isso foi durante alguns anos. Mas depois a mãe de João arranjou um companheiro e se mudou daquele prédio. Aliás, mudou de cidade.

O marido, ou namorado, de Teresa, se chamava Raimundo. Mas como achasse seu nome muito feio, pedia que lhe chamasse de Ray, assim, com “y”. Era um cara bonito, o mais bonito de seu pedaço, o mais cobiçado pelas meninas. Teresa, que não era nada feia se encantou com ele também. Ela era alguns anos mais velha do que ele, mas mesmo assim resolveu ficar a seu lado. Conviviam todos em uma turma grande e muito unida, na qual aquela velha história de “ninguém é de ninguém” era levada a sério. Teresa tinha um caso ou algo parecido com Ray – ela não negava isso – mas ao mesmo tempo sabia que ele vivia em clima de romance com outras moças. Ela acabou achando aquilo normal. Amor a todos e a tudo, poliamor como então se dizia era a segunda regra ali. A primeira era a de que não havia regras. E assim Teresa, criada em família católica e conservadora, foi passando de mão em mão, sem culpas, pois ao mesmo tempo se dava ao direito de escolher, com critérios próprios dela, a que mão ou mãos se entregar. E eram todos felizes.

Mas Ray parecia gostar mesmo, de fato, era de Maria. Parecia apenas, pois na prática era difícil saber com quem ele andava em cada momento. Mas com Maria ia ao cinema muitas vezes, dormiam um na casa do outro, conviviam intimamente dentro das próprias famílias. Saíam muito para acampar e coisas assim, ele (ou ela) e mais um, dois ou duas, apertados em uma barraca, banhando-se felizes em cachoeiras, nus como a natureza os criou. E todo mundo achava normal.

Maria era meio louca. Nesta história de amor livre, então, ninguém a superava. Estava com Ray, aparentemente, em muitas ocasiões, mas ninguém se surpreendia quando a encontrava, dentro de um cinema, no parque de diversões ou em um show musical, nos braços de algum outro rapaz. Sem esconder nada; ao contrário, parecendo fazer questão que a vissem assim, em clima de total descontração e felicidade. Qual o problema?  

Mas o mais constante dos casos de Maria era Joaquim, principalmente depois que Ray elegeu como seu principal amigo um rapaz chamado Norberto, ou Beto. Este era um bom moço, filho de família pobre. Muito tímido. Parecia nunca estar à vontade com as doideiras de Maria, mas a acompanhava nos banhos de cachoeira, nos acampamentos, nos shows de rock. Com e sem Raimundo presente, isso não fazia diferença para eles. Ou melhor, fazia alguma diferença para ele, sim, que tinha muita vontade de que Maria fosse uma moça igual às outras. Em termos: aquelas moças que ele e sua família conheciam, que frequentavam igrejas e faziam questão de chegarem virgens ao casamento. Nada a ver com Maria, aquela doidinha.  

Mas um dia Joaquim conheceu Lili, mesmo que ainda não tivesse deixado de aplicar bons beijos e apalpadelas em Maria. Lili parecia ter tudo o que ele sonhava: era muito séria, usava roupas discretas, não se despia em público e nunca havia namorado ninguém. Para que procurar mais? pensou ele. Arranjou uma desculpa para se afastar de Maria e ficou com Lili.

O problema é que Lili não retribuía intensamente os cuidados de Joaquim. Andava com ele por todo lado, menos para frequentar igrejas, que não eram a praia dela. Recusava-se a namorar, dizendo que a amizade era o melhor dos sentimentos. Mas será que gostava de alguém? Que nada, gostava sim. Só que não podia contar para ninguém, porque ela gostava de uma menina como ela. Seu nome era Glória e era em tudo parecida com Maria, nas roupas, no jeito discreto, na castidade aparente.

Mudam-se os tempos, muda-se a vontade, como já dizia o poeta…

E o tempo passou para todo mundo.

João foi para Portugal trabalhar como motorista de aplicativo. Comeu o pão que o diabo amassou. Falar a mesma língua não era nada, diante do abismo cultural que ele logo descobriu existir entre ele e os naturais da terra. Acordava todo dia às quatro da madrugada e ia pegar o carro num estacionamento remoto, ainda a mais de uma hora da cidade onde ele exercia seu ofício. Entrou na fila para obter cidadania, ou pelo menos autorização para trabalho regular, mas passados muitos meses começou a constatar que seu lugar talvez fosse no Brasil mesmo. Ele começou a namorar uma estrangeira, como ele, albanesa ou búlgara, não sabia bem e que atendia pelo estranho nome de Penca. Ele nunca conseguiu saber se gostava realmente dela, ou vice versa, e decidiu voltar para sua terra natal. A vida em terra estranha, e ainda mais paga em Euros lhe parecia inviável.  Por alguma razão misteriosa, nas noites com Penca sentia saudades de sua namoradinha de infância e adolescência, Teresa.   

Teresa esqueceu-se de João e de Raimundo. Depois de muitos amores, gloriosos ou vulgares, resolveu fazer daquilo profissão. Acompanhava senhores circunspectos a noites de gala, teatros e ópera. Depois se despia para eles, em ambientes reservados. Sexo, não. Não fazia parte de seu repertório. Mas também não dispensava algum parceiro ocasional, quando a vontade aumentava. E estes foram tão numerosos que ela mal se lembrava dos nomes de um ou dois. Um dia começou a se sentir fraca e febril, incapaz até mesmo de atender um bom e conhecido velhinho em alguma tertúlia noturna. Foi ao médico e descobriu o que já temia. Morreu de Aids alguns meses depois.

Já Raimundo, Ray para todos, nunca se casou com ninguém, pelo menos formalmente. Aos poucos descobriu que se dava bem era com rapazes, mais do que com mulheres e resolvi se assumir de vez. Arranjou um namorado chamado Moacir e virou um daqueles sujeitos que a rapaziada chama de Tiozão, sempre disposto a pagar um jantar, uma cervejinha, ou dar um presente a quem estivesse disponível a estar com ele. Moacir foi preso depois de tentar enfocá-lo, depois de uma discussão na cama, pela madrugada. E depois disso ele virou apenas uma sombra daquele glorioso e lindo Ray que fora um dia.

Maria, depois de anos de vida intensa e alegre, virou evangélica e com isso conquistou Joaquim, que passou a frequentar a igreja junto com ela, com a maior alegria e devoção.  

Lili suicidou-se…

J. Pinto Fernandes, que tinha também tentado um dia vencer as resistências de Lili, e que não tinha entrado na história, agora namora Natércia, que também não tinha entrado nesta e em nenhuma outra história. Ambos são funcionários públicos, ganham bem, têm casa própria, dois carros na garagem e filhinhos lindos. Não sabem o que é poliamor e acham que andar pelados por lugares públicos, ter relações sexuais com desconhecidos ou recém conhecidos e, principalmente, fazer amor com pessoas do mesmo sexo são atos estranhos, que escapam às regras da natureza. Mas sempre dizem que que respeitam quem aprecia tais coisas, desde que não afetem ou que sejam com seus próprios filhos, é claro. Pelo que se sabe estão muito felizes em seu casamento.

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