Não foi um amor exemplar, mas o resto não interessa

Eu a vi pela primeira vez na cantina da faculdade onde eu iria cursar uma disciplina indispensável ao meu doutorado. Morena, alta, de cabelos longos e olhos profundos, possuía uma beleza misteriosa, meio mediterrânea, sei lá, talvez misturando, traços árabes e italianos. Descobri logo após que seria minha colega de classe e eu, curioso em saber mais sobre ela, pois que me encantaram aqueles olhos profundos, com poucos minutos de conversa descobri que era formada na área de Humanas, trabalhava em serviço público e estava ali, de retorno à faculdade em que se formara, para se aperfeiçoar e alcançar uma promoção, nada mais. Nada de carreira acadêmica, como eu. Na sequência, fiquei sabendo de sua origem interiorana, denunciada pela maneira como pronunciava os “r”, sendo também um tanto tímida e de conversação restrita ao essencial.

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Apenas mais uma história de amor

Era o primeiro dia de uma primeira semana de aulas na Faculdade de Medicina. Cumpria obedecer ao ritual estabelecido de que os novatos doassem sangue. Ele foi lá, espichar o braço, em conformidade com os trâmites, e percebeu, na maca ao lado, a figura de uma moça de cabelos longos e escorridos, óculos de míope, meio no estilo gatinho, com um narizinho levantado, que de outra forma lhe teria passado como defeito, por dar à criatura um jeito presunçoso. Naquele caso específico, definitivamente não. Ela também recém aprovada no vestibular, tal como ele, se viam pela primeira vez.

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Vida de cachorro

Finais de tarde em muitos domingos, em certo período de minha infância, viajando por aquela rua longa e sinuosa, que nos levava aos confins da cidade, em uma sucessão de bairros que iam variando de razoáveis a pobres, de classe média a gente apenas remediada e, depois disso, a miseráveis e favelados. Mais do que indicativos sociais ou topográficos, para mim e meus irmãos era o retrato vivo de uma dor.

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Alumbramento

Saí de casa para aquela viagem com a sensação de que alguma coisa diferente ia me acontecer. Eu vivia em plena crise de um casamento que, fazia tempo, começara a dar sinais de cansaço. Melhor dizendo, a crise era, já há alguns anos, a expressão viva do que eu vivia ao lado de Maria Alice. Meus sonhos, havia tempo, apontavam para uma vida totalmente diferente e também para uma mulher diferente daquela que dormia ao meu lado e da qual eu mal sabia com o que sonhava. O que sei é que sonhávamos diferente, eu cheio de planos com foco coletivo, tanto quanto possível; ela aderida ao panorama do lar e da família, tratando meus devaneios sociais como se fossem coisa equivocada, ou pelo menos, incondizente com a vida familiar restrita com a qual ela se identificava.

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Nós que amávamos a Revolução

Eram dois na noite escura. Esta era a primeira frase do livro que eu ia escrever. Na realidade, éramos dois que perambulávamos pelas ruas estreitas de nosso bairro de ruas calçadas em pedra, onde acordávamos todo dia com o apito da fábrica de tecidos, na nossa casa que pouco se distinguia da moradia dos operários, naquela cidade oprimida entre montanhas, em muitas noites escuras, que a singeleza das luminárias amareladas era incapaz de clarear. Passamos a ser três quando um primo de meu amigo se juntou a nós. Saíamos todas as noites, pela hora da novela, que então já “entorpecia as massas”, como rezava nossa cartilha militante, filosofando, tramando obras literárias, tentando equacionar o futuro da humanidade e, quem sabe um dia, participar da revolução no país.

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Histórias nasais

Um dia desses, confesso, por me faltar alguma coisa mais significativa, ou útil, para fazer, passeando pela internet, como acontece em ocasiões assim, me dei com um vídeo antigo, em preto e branco e cheio de chuvisco (do tempo que isso se chamava vídeo-tape, com hífen e tudo) no qual Juca Chaves cantava um antigo sucesso dele, nos anos 60. Chamava-se, tal peça, autorreferente, Meu Nariz ou Meu Nasal (ou algo assim) e eu mais uma vez – e tantos anos depois – achei graça na verve deste antigo menestrel, que anda sumido ou, quem sabe, já morreu. Aliás, fico às vezes espantado com a quantidade de gente da minha geração que anda morrendo por aí. Faz parte, pelo menos ainda tenho mortes a lamentar. Pode ser que algum dia, nem isso me servirá de consolo. Mas para quem não conhece, vejam só a graça que o Juca tem (ou tinha…): nasal, ah meu nasal / como falam mal deste nasal, que é tão normal / diz o mundo imundo e essa gente infeliz / que o meu nariz, é maior que a miséria do país / maior que o busto da Lolô / maior ainda, que o sorriso do Nonô…

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Aquele homem

Que personagem! Por alguma razão, talvez por não desejar repetir sobre a terra o que a terra engolirá, não se casou, sem que isso significasse castidade ou celibato definitivos – aspectos, todavia, não declarados ao público em geral. Viveu uma vida de funcionário público modesto, depois de uma carreira como bancário, da qual se afastou muito antes de se aposentar, não tolerando, ao que parece, aquele ambiente de guichês, horários, gerentes e regras fiscais, além de motivos de saúde. Morou sempre em quartos de hotéis, variando na qualidade, sempre reduzindo-a, à medida em que ia ficando mais velho e com o salário encurtando cada vez mais.

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Visita ao Velho

Sim, era preciso visitá-lo. Ele, o Velho Tio, fazia parte de nossa vida, desde a mais remota infância. Da minha vida, mais do que da dele, meu irmão mais novo, que teve menos convivência com tal figura, para mim tão marcante. Ele morava longe, cumpria fazermos aquela viagem longa, que deveria ser premeditada, porém sem termos tempo para tanto.

Fizeram uma cachorrada comigo, era como ele explicava a origem dos acontecimentos que o derrubaram, sem apelação, na cama que poucas semanas depois o acolheu na morte. Falava da passagem atabalhoada do velho cão de fila da fazenda pela porta da cozinha, onde ele justamente tomava um café e acendia o cigarro de palha habitual nas manhãs. E sem mais se viu jogado ao chão, gerando um doloroso calombo na coxa, que ele mesmo, no ato, diagnosticou como uma fratura de cabeça do fêmur.

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Tributo a Ricardo de Freitas Scotti, com quem muito aprendi

Quando soube da passagem deste meu amigo, procurei logo saber informações biográficas mais detalhadas sobre o mesmo, pois gostaria de homenageá-la aqui neste espaço. O Conass, Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde, em cuja construção ele teve participação fundamental, me atendeu e me municiou logo sobre tal pedido, mas cheguei à conclusão de que não precisaria dispor de tais dados, pois o que realmente fazia sentido para o meu relato era o que a memória me trazia de maneira farta, sem outros adereços.

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Mais apontamentos para a História do SUS

Tenho escrito sobre tal tema aqui. Ver, por exemplo, o texto seguinte, publicado, por ora, apenas neste espaço [O SUS: histórias que ninguém contou – Vereda Saúde (veredasaude.com)]. Trata-se de assunto que está longe de se encerrar, pelo menos para mim, que acredito que tal história ainda não foi contada por inteiro e o que é pior, é muitas vezes narrada dentro de uma determinada ótica, que eu chamaria de triunfalista ou, para ser mais específico, uma narrativa de quem acha que em relação ao SUS tudo já foi conquistado e que se algo deu errado só pode ser culpa dos adversários, não de quem agiu dentro do sistema e sempre com as melhores intenções. O que segue adiante representa o produto de reflexões que fiz no início dos anos 90, no calor da fundação do SUS, portanto, como introdução à minha dissertação de mestrado na Escola Nacional de Saúde Pública. Eu que vinha da carreira universitária me colocava, então, como um “intelectual-dirigente”, utilizando terminologia gramsciana, embora admitindo que premido pelas contradições da realidade não me era possível sentir “completo” nem como intelectual, nem como dirigente, donde se tornava essencial buscar “um norteado” para as coisas, torná-las “confiáveis ao meu coração”. Com efeito, em trabalho anterior, inspirado em Gramsci, eu refletia que o modo de ser deste novo intelectual incluía o desafio de praticar uma pedagogia alternativa, na qual o ato de educar deveria ser fundamental, não só na vertente da academia, como da administração pública e também no parlamento, na assessoria aos movimentos sociais. Isso implicaria em romper com falsas totalidades impostas pelo pensamento dominante, ou mesmo aquelas do tipo “o povo tudo sabe”; promover o preparo dos homens, enquanto sujeitos ativos, para a participação política, para o questionamento das ideias, para a independência cultural, para a conquista da cidadania social; tomar como ponto de partida o senso comum das percepções e imagens, mas acima de tudo, submetendo-o  à crítica e à superação verdadeiramente dialética. Só assim o “homem comum” poderia se tornar, ele também, intelectual e dirigente, e o intelectual-dirigente seria capaz de superar a eloquência vazia do saber oficial, construindo um conhecimento verdadeiramente organizador e transformador sobre as coisas “vãs e mudáveis” da realidade social. Mais gramsciano, impossível, portanto. Mas vamos ao texto em questão, que trago aqui como um registro de ideias sem dúvida datado, mas que poderá ajudar, quem sabe e um dia, na escrita da verdadeira história da política de saúde no país, longe de qualquer virtuosismo, triunfalismo, academicismo ou derrotismo.

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