Os que me acompanham aqui sabem que a maioria absoluta das coisas que divulgo são textos de minha autoria. Certos ou equivocados, são meus e por eles assumo total responsabilidade. Desta vez, entretanto, abro uma exceção para este primor de reflexão sobre a realidade atual do país, da lavra de meu grande – principal – amigo Mauro Márcio de Oliveira. Deleitem-se, leitores!
Para inglês ver de verdade / Mauro Márcio Oliveira / Brasília, 14 de abril de 2016
Em 2016 comemoram-se os quatrocentos anos da morte de William Shakespeare (1564-1616). Na Inglaterra, sua terra natal, a comemoração será à moda clássica, com a máxima observância aos elementos estabelecidos nos textos originais. Já no Brasil, a comemoração é orgânica, se servindo de personagens vivos, que circulam livremente no ambiente tropical do país, com desfecho na futurista Brasília. Aqui, passado, presente e futuro se mesclam de uma forma inaudita. O passado nos chega pelos textos do bardo como inspiração; o presente mostra a vida como ela é; e o futuro, bem.. somos o país do futuro.
Em que lugar do mundo, senão aqui, um diretor de teatro conseguiria reunir as autoridades do país para, tomando o lugar de atores profissionais, encenar uma peça? Aliás, o teatro foi adaptado às circunstâncias. Aqui, tem pouco teatro e muita novela. Os gregos criaram o teatro; nós os brasileiros não precisamos de teatro, somos atores desde que nascemos, encenamos nossa forma particular de sociabilidade em todo e qualquer recinto.
É muito comum que autores teatrais se inspirem em pessoas reais para criar seus personagens para leva-los aos palcos; aqui, a situação é outra. Em primeiro lugar, não necessitamos de autores; somos adeptos da criação coletiva. Em segundo lugar, as pessoas reais daqui não inspiram personagens; são os personagens que inspiram pessoas reais nas suas vidas reais. A perfeição vai a tal ponto que um fica em dúvida se as a ficção é realidade ou se a realidade é ficção.
Para tão grande espetáculo, a encenação não pode se dar num pequeno teatro italiano, em que a iluminação torna impossível o uso do palco em toda sua profundidade, toda a movimentação necessária e a rapidíssima mudança de espaço e tempo. Também não pode se passar num palco elisabetano, despojado de recursos cenográficos, onde apenas a palavra praticamente cria o mundo cenográfico imaginado. Aqui, o palco é enorme, na escala arquitetônica 1:1. O melhor que o país dispõe na atualidade está na Praça dos Três Poderes. Nela, como parte permanente do cenário estão o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Essa qualificação já é motivo de ciúmes, pois se fala que as denominações palacianas deveriam ser Palácio da Suprema Presidência e Palácio dos Congressistas Supremos, para se dar a verdadeira equivalência com o Palácio da Suprema Justiça.
Entre curvas vertiginosas de concreto protendido, planos niemeyerianos e palmeiras imperiais, nossos personagens pisam tapetes vermelhos, ocupam salões negros e divisam de suas janelas, gramados verdes e espelhos d’águas com seus cisnes indiferentes à cena política.
Alguns são como o Rei Lear, que deixou o justo sentimento de alguns para acreditar nas bajulações de muitos outros. Como o Rei Lear, querem se livrar das responsabilidades, mas continuar a gozar dos privilégios do cargo. O erro do Rei Lear vai desagregar o estado, resultando em convulsões impróprias à democracia. Se tudo estivesse acontecendo no verão, as tempestades, raios e trovões refletiriam um tipo de justiça natural condenando a geleia geral em que os atores estão mergulhados. Mas, o desfecho ocorre no outono, com o ar mais seco e a temperatura alta. [1]
Para Shakespeare, direitos e deveres são indissociáveis. Pensarão suas excelências o mesmo? Tal como o Rei Lear, o personagem do Drama do Planalto (será Tragédia? Será Comédia?), na temporada 2015/16, terá de aprender a ser homem quase aos oitenta anos. Nessa condição, o processo de aprendizado é extraordinariamente doloroso. A complexidade humana do Rei Lear é monumental: fidelidade de uns junto com julgamentos errôneos, associado a ambições irreveláveis.
Outras autoridades se inspiram em Ricardo III, o Vício da Dissimulação. Shakespeare, quando idealizou a figura de Ricardo III como vilão, preocupou-se com a perda de seu potencial trágico, uma vez que a esperada queda do vilão faria com que o espectador tivesse a sensação do ‘desperdício trágico’. Qual foi a solução dada por Shakespeare? Tornou o personagem fascinante por sua capacidade de dissimulação e ousadia. Mesmo não sendo solidário com o personagem, o espectador é ‘tomado de curiosidade’ para saber se Ricardo III irá conseguir fazer tudo que imagina. Ricardo III é dissimulado, mas se mostra tímido, injustiçado, simplório e rejeitado, o que lhe facilita perpetrar seus crimes. O potencial trágico da autoridade que encarna Ricardo III é cada vez maior, cada vez mais envolvente, o que garante a tensão do espectador nacional até o final do espetáculo. De fato, a autoridade não se comporta como vilão. Ele aprendeu a ser dissimulado depois de longa dedicação aos negócios de sua igreja, onde colhe seus votos para deputado federal.
Um bom perfil de Ricardo III é traçado pela Rainha Margareth na Cena III do Ato I:
Eu não te esqueço, cão; espera e ouve:
Se o céu possui alguma horrenda praga
Que exceda estas que eu lanço sobre ti,
Guarde-a até que sazonem teus pecados
E então derrame a sua indignação
Sobre ti, destruidor da paz do mundo!
Que o verme dos remorsos te roa a alma!
Que os amigos suspeites de traidores,
E tomes vis traidores por amigos!
Lady Macbeth falaria dele como estando totalmente privado do ‘leite da bondade humana’.
No mundo de Ricardo III “os nobres e poderosos são intrigantes e carreiristas […] a corrupção e o abandono de critérios éticos foram propiciados por um mau governo. Para livrar a Inglaterra (o Brasil?) de um tal desmando moral seria necessário, ao mesmos, dramaticamente, um exorcismo…”
Ricardo III, que queria tudo para si, ao final diz desesperadamente: “Meu reino por um cavalo!” Para ir para a Suíça ou o nome do cavalo é Delação Premiada?
No final da peça, é morto. Não à toa, surgiu uma preocupação com um cadáver em meio a tanta algaravia nesse abril brasiliense.
O Brasil é uma coisa para inglês ver, mas, de verdade.
[1] Todas as menções a circunstâncias, nomes e cenas do teatro de Shakespeare foram extraídas das introduções a Ricardo III, Rei Lear e Otelo, o mouro de Veneza, da autoria de Bárbara Heliodora (os livros são da coleção Saraiva de bolso).
Perfeito seu texto, Mauro Marcio!
Será que é a isso que chamam de “ingresia”?
Aqui não tem to be or not to be (nem tupi or not tupi). Pessoas como o Rasputin Evangélico não têm dúvidas ou dilemas morais, sua certezas derivam do enredo que acólitos, também isentos de tais quesitos, compõem e se envolvem desde sempre.
Muita saúva e muitos cupins-do-erário: os males do Brasil são centenários.
Quem nos salvará de nossos salvadores?
Seu texto vai pro meu blog, com as honras devidas. De acordo?
Abraço, obrigado por compartilhar!
FLAVIO GOULART