Eu já conhecia o casal das ruas da vila; da porta de minha casa, inclusive. Via-os sempre com a carroça puxada por um burro magérrimo, mas valente. Traziam de alguma rocinha por perto, onde provavelmente também moravam, alguns poucos produtos para vender na rua: mandioca, bananas de vez, taiobas, batata doce e o mais disputado: o requeijão moreno. Apreciado especialmente por nós, que vínhamos de outra parte do estado, onde tal iguaria, também conhecida como requeijão do Norte de Minas era bastante valorizada. Talvez não fosse um primor de fabrico, mas botava gordura pelo ladrão e derretia maravilhosamente na frigideira. Curioso era como a mulher, que cuidava da transação financeira enquanto o marido apregoava sua mercadoria nas casas, respondia à indagação da clientela quanto ao preço do produto: “é dez cruzeiro a malmita”. E a tal malmita dizia respeito às fôrmas de lata de cera onde o requeijão era vertido para se consolidar, ainda quente.
Havia freguesia certa para este tipo de mercadoria em São Simão. A vila não chegava a ser uma cidade de verdade, mais precisamente era um acampamento de obra, no caso, da grande usina hidroelétrica que estava sendo construída, ao longo dos anos 70, na divisa entre Minas e Goiás. Ali éramos todos estrangeiros. Uma parte brasileira, vinda de toda parte do país, auto denominada como “trecheira”, por serem muitos deles trabalhadores de diversos níveis, empregados em grande obras, construídas sob a forma de “trechos”, no caso das estradas. Ir embora, em busca de outro trabalho, era “fazer o trecho. Corriam os anos setenta, apogeu do milagre brasileiro e havia obras por todo lado: estradas, usinas, prédios públicos.
Outra parte vinha das estranjas, da Itália em sua maior parte. Eis que a tal obra era tocada em consórcio entre uma empreiteira brasileira, a CR Almeida (já falecida, creio) e uma empresa italiana, cuja controladora era o grupo Fiat, que atendia pelo vistoso nome de Impresit-Girola-Lodigiani, ou simplesmente Impregilo. Esta turma veio para o Brasil como parte da transação que resultou na implantação da fábrica de Fiat em Betim, nos arredores de BH.
Eu e minha mulher éramos dois dos tais trecheiros, embora fosse aquela a nossa primeira (e última experiência). Vivíamos uma vida boa ali, ganhávamos bem, tínhamos casa, água e luz de graça, além de comida subsidiada. O hospital onde trabalhávamos era simplório, mas digamos que pelo menos o essencial estava disponível. Um chefe antiético também fazia parte do cenário – nada é perfeito. Nos finais de semana que não estávamos de plantão, pescávamos no rio Paranaíba, íamos a algum churrasco de vizinhança ou, nos dias que havia disposição para tanto (éramos jovens…), pegávamos um cineminha em Ituiutaba, a pouco mais de 100 km de distância. Quanto à qualidade dos filmes, melhor nem comentar. Às vezes tínhamos visita, pois nossa aventura de ir viver em tais paragens atiçou espírito semelhante em outros membros da família, inclusive no avô de minha mulher, na época com setenta e muitos anos. Inesquecível seu Aureslindo Machado!
Voltemos ao requeijão moreno…
Ele é assim escurinho por ser preparado mediante fritura mais carregada da manteiga sobrenadante na pasta de requeijão, que em parte se queima, dando a coloração característica, além de um sabor sui generis, também. Coisa para fortes – e conhecedores. Há quem não troque por nada um bom prato (fundo!) de requeijão moreno derretido na hora e comido ainda quente, às vezes com farinha de milho! Calorias pra ninguém botar defeito, nos dois sentidos da palavra, físico e nutricional.
Na verdade, entre os moradores da Vila de São Simão, talvez apenas os brasileiros apreciassem aquele requeijão moreno. Os italianos pareciam mais chegados a um mascarponi, um gorgonzola ou grana-padano…
O Hospital da Cemig em São Simão atendia também os moradores da região, embora isso não fosse rotina. Um dia me entra pela porta do consultório o tal casal da carroça e do requeijão em malmita. O marido quase a puxar a mulherzinha pela mão. Ele já devia ter uns sessenta ou mais; ela talvez não passasse dos vinte – talvez menos até. Aos sessenta anos, no Brasil, um roceiro já é um velho. Assim, chamava atenção, por pouco convencional, aquele casal com tal disparidade de idade e de aspecto físico. Ele era quase negro, cabelos brancos, pele gretada pelo sol, traços indígenas, um tipo bem goiano. Ela uma daquelas mocinhas que nos sertões nacionais são chamadas de ”roxas”, pele cor de jambo, olhos amendoados e brilhantes; bonita, enfim, dentro dos padrões sertanejos. Provavelmente ainda não tivesse experimentado a maternidade, o que fazia supor que sua relação fosse recente.
E me adentra aquele homem no consultório, goianão como ele só, e vai logo dizendo: “dotô, trouxe essa muié pra mode o sinhô fazê um traçado”,
E eu: como? O que o senhor deseja mesmo?
Ele insistiu: um traçado, seu dotô, um traçado da cabeça.
– Como assim?
– É que essa muié não regula bem. Dá muitos ataque. Repuxa todinha, dana a me xingá e não tem ninguém que segura ela. Já até mandei benzê e não arresolveu… Aí me falaram que o dotô tem aí um aparêi de fazê esses traçado.
Foi aí, então, que percebi que ele se referia ao aparelho de eletrocardiografia que eu possuía, o que naquela época ainda era uma tecnologia que fazia muito sucesso. E eu pude usá-lo em alguns pacientes e até mesmo diagnosticar uma angina grave, cujo portador foi logo encaminhado para Ituiutaba ou Uberlândia, em busca de uma unidade coronariana. E tal notícia deve ter se espalhado, chegando mesmo até aquele homem, perdido em suas brenhas.
Expliquei para ele que meu aparelho de “traçado” só servia para o coração, mas ele não me pareceu muito satisfeito. Para não deixá-lo muito contrariado, tentei abordar a pobre cabocla sobre seus problemas, mas de sua boca não saiu nada expressivo ou conclusivo, visivelmente empatada que estava com a presença do marido ali do lado. Receitei-lhe umas vitaminas, pois em São Simão não me era possível fazer mais nada. Ituiutaba estava muito remota e mesmo lá não sei o que poderiam fazer por ela. Talvez impregná-la com diazepínicos. No caso, o “bom” ou o “mais ou menos” que eu oferecia não era certamente antagônico àquele “ótimo” que os serviços de saúde adoram prover aos pacientes sem diagnóstico firmado ou portadores de crises de ansiedade ou sofrimento.
Moral da história: até hoje me impressiona o fato de como as pessoas são influenciadas e se encantam pelas tecnologias médicas. Não é que entre o fabrico de requeijão e a colheita de suas bananas, mandiocas e batatas doce aquele homem foi capaz de atentar para o fato que havia um doutor novo na “Vila da Cemig”, capaz de lhe oferecer, para se ver livre dos “ataques” de sua esposinha, vítima quem sabe, não só dele, mas de todo um contexto social e familiar, aquela tecnologia tão misteriosa quanto solucionadora de problemas: o traçado.
E nem se pode dizer que isso era produto de alguma internet ou dos fantásticos programas dominicais de TV… Isso nem existia na época.