Em novembro de 1985, minha mãe, que sempre falava em visitar seu tio, Carlos Drummond de Andrade, mas que achava difícil sair de Belo Horizonte para fazê-lo, por falta de companhia, me levou oferecer a acompanhá-la . E eu fiz isso sem titubear, é claro. Eu tinha estado com Drummond umas quatro ou cinco vezes ao longo da minha vida, mas uma visita assim tão pessoal seria a primeira vez. Eu não podia realmente perder tal oportunidade. Foi assim que peguei um ônibus em Uberlândia, onde eu morava então, e já no dia seguinte fui buscá-la na Rodoviária do Rio, para executarmos o combinado.
A primeira vez que vi CDA foi no enterro de meu avô Altivo, irmão dele, em 1961. Depois, no casamento de minha tia Maria Aparecida, um ou dois anos depois. Mais algum tempo se passou até o enterro de meu tio Zezé, também irmão dele, em 1968. Este, aliás, morreu em meus braços de segundanista de medicina, que fora convocado, assim como outros primos, a fazer companhia a ele, que havia sofrido um infarto e estava internado em BH, Foi assim que tive a má sorte, já no primeiro plantão, de vê-lo levantar no meio da noite, apertar o peito com as mãos e, depois de um grito de dor, cair morto, amparado por mim, em estado de total impotência…
No dia da chegada no homem à lua, em julho de 1969, estive na casa dele, junto com minha tia Teresa e minha prima Mariza, mas mal pude trocar com o poeta duas palavras, salvo breves e previsíveis comentários sobre aquele grande passo para a humanidade que ocorreria em seguida.
Mas dessa vez, em 1985, eu sabia que a sorte me sorriria, permitindo uma aproximação maior com aquele que era não só a pessoa mais importante de minha família, mas um escritor festejado em todo Brasil e até mesmo fora dele.
E lá fomos, Favita e eu, em uma bela tarde da primavera carioca, pela rua Conselheiro Lafayette, já antegozando grandes momentos. Já na entrada do prédio o porteiro, avisado de nossa chegada por ele, nos atendeu e nos pôs pra dentro sem maior burocracia e assim chegamos ao andar de tão distinto personagem, com o mesmo em seguida nos abrindo a porta com um baita sorriso acolhedor.
Drummond era um homem de fala baixa e calma, mais aguda do que grave, embora um pouco acelerada, formando frases em pequenos “arrancos”, o que lhe dava um jeito de timidez, mas que na verdade era pura “porosidade e comunicação”. Eu conhecia bem sua voz através dos discos de poesia e que eram parte obrigatória do acervo cultural de minha família. Nos contatos anteriores que tive com ele, seja nos citados velórios ou quando eu era simples criança, eu pouco conversara com ele ou mesmo o ouvira falar alguma coisa. Mas agora minha emoção era redobrada, pela chance de estar mais próximo dele, bater um papo e finalmente ouvir de perto aquela voz que eu já conhecia bem, embora só nas gravações. Eu, em estado de relativa timidez, ainda mais diante de tal personagem, tinha preparado alguns assuntos para colocar na pauta, mas isso nem se fez necessário. O papo fluiu desde o primeiro minuto de nossa chegada. Ele sabia colocar seus interlocutores à vontade, ainda mais sendo gente da família, como nós.
É claro que de começo, compreensivelmente, minha mãe e ele se entregaram a uma vasta rememoração de temas ligados a Itabira: histórias, recantos, comidas, parentes e outras pessoas, vivos ou já falecidos; lembranças diversas ancoradas nos objetos, quadros e fotografias espalhados pela casa. Eu fiquei meio à margem, mas só no início, pois não me foi difícil integrar às conversas logo em seguida. Ele demonstrou grande interesse pelas minhas atividades em Uberlândia, mostrando-se bem informado sobre minha vida lá e inclusive sobre meus três filhos, que ele já havia agraciado, uma década antes, com poemas dedicados a cada um deles.
É claro que não faltaram, também, comentários sobre a situação política do país, àquela altura já marcada pelo derretimento da “Nova República”, que atraíra tanta atenção e forte esperança ao longo daquele ano, que trouxera, entre outras coisas, a morte de Tancredo e a ascensão de Sarney, por quem, aliás, ele não pareceu demonstrar grande simpatia, embora com manifestações discretas sobre isso.
Em certo momento, da política e das coisas de Itabira e do cotidiano, a nossa conversa pulou para a história do Brasil, não me lembro bem por qual motivo. Mas ainda assim ficamos em terreno mineiro. Falávamos dos grandes viajantes europeus que percorreram o Brasil no século dezenove, após a abertura dos portos, com foco nas revelações que eles trouxeram sobre o nosso estado natal. Ele tinha muitas informações interessantes sobre eles e nos detivemos um pouco sobre Auguste de Saint Hilaire, do qual, aliás, eu conhecia alguma coisa, inclusive sobre sua passagem por Itabira. Ele me fez, então, a revelação curiosa de que na verdade Dom Pedro I, além do interesse nas ciências e nas artes, tinha especial atenção para as esposas francesinhas ou alemãzinhas que estes exploradores deixavam para trás, no Rio de Janeiro, em suas prolongadas excursões pelo remoto interior do Brasil. Muito tempo depois meu irmão Eugênio, especialista em St. Hilaire, me contou com o francês era, na verdade, um renitente celibatário. Mas a história, curiosa por si só, pode valer para outros europeus viajantes, com certeza. E não sei bem de onde ele tirou esta informação, ou se era só uma boutade.
E assim, para meu desalento, a tarde passou rapidamente. A certa altura ele me ofereceu uísque, escocês legítimo, 15 anos ou mais, servido a partir de uma garrafa enorme, assestada sobre um pedestal reclinável. Ele até me pediu desculpas pelo que considerava uma exorbitância, uma botelha de tal proporção, dizendo que fora presente de um amigo (creio que o então namorado de Maria Julieta), que ele considerava muito exagerado. Mas sem nenhum exagero Drummond e eu brindamos e bebemos, em plena tarde de primavera no Rio, duas ou três doses daquela maravilha.
Saí daquele encontro com a sensação que não o veria mais. Ele já tinha então 83 anos e nos confessara ter alguns problemas de saúde, que ele atribuiu, mais uma vez, a algum “exagero” dos médicos que o atendiam. Dito e feito, menos de dois anos depois ele partiu. Aquele foi um grande momento para minha mãe e eu, naturalmente. A sensação mais forte que ficou foi a da gentileza de sua acolhida a nós dois, parentes próximos sem dúvida, mas vivendo remotamente, sem maior proximidade com ele, a não ser pelas cartas que trocava com minha mãe. Esta afinidade e gentileza não só com as coisas, mas diretamente com as pessoas da família, ele já havia demonstrado de sobra, ao longo dos anos, creio que era uma de suas marcas. Nunca deixou uma carta de minha mãe sem resposta e mesmo aquelas duas ou três que lhe enviei de próprio punho. Mesmo minha filha Daniela, aos 10 ou 12 anos, quando lhe pediu um artigo para o jornalzinho de sua escola, foi atendida prontamente, calando a boca daqueles coleguinhas que duvidaram ser ela sobrinha-bisneta do grande Drummond.
Assim era Carlos Drummond de Andrade. Como se dizia dos Drummond na Itabira antiga, “bons de letra” (completando-se maldosamente: “e bons de treta”), mas aquele ali era bom de afeto, de generosidade e de calor humano também. Anos depois – é pena – pude perceber que tais qualidades não foram passadas por herança ao sujeito, seu neto, que cuida como um mastim da obra dele. Quando minha mãe decidiu publicar as mais de cem cartas que recebeu do tio ilustre, a tal figura demorou mais de um ano para lhe dar uma resposta e mesmo assim não o fez diretamente, mas através da pessoa que cuidava de seus negócios editoriais. Cruzes! Uma coisa assim não seria de fazer o avô rolar na cova?
***