Movimentados anos 50. No Brasil, pelo menos, as coisas nunca mais foram as mesmas. Perdemos uma Copa do Mundo, ganhamos outra. Tivemos que lidar com o golpismo explícito ou implícito de militares e civis mancomunados. Entramos na guerra fria como se fosse coisa nossa. Nossos compatriotas migraram em massa das roças para as cidades. Jorge Amado e Guimarães Rosa projetaram a literatura brasileira para o mundo. Construímos Brasília. Apesar de alguns pesares, foi lícito pensar que chegara a nossa vez de tocar algum instrumento no concerto das nações. Não foi pouca coisa, realmente. Na Saúde, um ministério para chamar de seu finalmente foi criado e passamos a década a lutar contra o bócio endêmico, a esquistossomose, a malária e as verminoses. O empresariado médico adentrou em um período prolongado de simbiose com o poder público, obtendo dos antigos institutos da Previdência Social pontes generosas entre o Estado e seus interesses particulares. Mas ao mesmo tempo, dentro do setor saúde houve pessoas que começaram a pensar que as coisas poderiam ser diferentes. Uma delas foi Mario Magalhães da Silveira, que desenvolveu, à exaustão o tema das relações entre Desenvolvimento e Saúde.
Mário Magalhães da Silveira (1905-1986) foi o principal mentor da corrente de pensamento conhecida como sanitarismo desenvolvimentista que atinge seu momento de maior influência na III Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1963, às vésperas do golpe militar, que inviabilizou muitas das diretrizes emanadas de tal evento, aliás. Ele era um profundo crítico dos modelos de organização sanitária made in USA, bem como do centralismo e do verticalismo das campanhas sanitárias tradicionais no Brasil. Defendia, ainda, que pertencendo a saúde à esfera superestrutural, ela dependeria diretamente do desenvolvimento econômico e além disso, de forma totalmente inédita no país, a necessidade de se descentralizar e mesmo municipalizar a saúde pública, como estratégia para atender, de fato, as necessidades da população. Exímio no trato com números, ao contrário do que é comum entre os médicos, Mário se transformou em pioneiro do trato com variáveis econômicas e demográficas, podendo ser considerado como inaugurador da disciplina da Economia da Saúde no Brasil.
Um dia, em 1980, em uma aula do Curso de Especialização que fiz na ENSP, nós alunos fomos apresentados àquele sujeito magro, alto, descabelado e de gestos largos. Impossível não prestar atenção e ficar fã dele. Um cara como poucos, ontem, hoje e sempre.
Mário Magalhães da Silveira (MMS) nasceu em Maceió em 1905, passou por Escola Militar e foi o primeiro de quatro irmãos a se formar em medicina, na Bahia, em 1925. Na faculdade, foi colega de uma prima, Nise, com a qual viria a se casar. Ela foi a ilustre psiquiatra que lutou bravamente pela humanização dos manicômios no Brasil e também a criadora do Museu das Imagens do Inconsciente. Genius loves company…
Na Saúde Pública, fez de tudo: Curso de Especialização em Manguinhos (atual Fiocruz); médico sanitarista do Departamento Nacional de Saúde do Ministério de Educação e Saúde; médico em unidade de “Profilaxia Rural”; diretor de Departamento de Saúde Estadual em Sergipe; além de outras tarefas. Segundo ele mesmo, na década de 40 percorreu todo o Brasil, exercendo funções até no remoto o Amazonas, “onde poucos se aventuravam a viver, principalmente os que já haviam experimentado as delicias do Rio”.
A partir de 1953, no recém-criado Ministério da Saúde, Mário se notabilizou na proposta e na defesa de novas ideias para a política de saúde, como assessor de diversos ministros de saúde, sendo considerado o grande inspirador do movimento conhecido como sanitarismo desenvolvimentista. Em 1959, com Celso Furtado, na SUDENE, foi o responsável pelos programas sanitários da entidade, com foco no saneamento básico, mais do que na construção de hospitais, de acordo com suas ideias desenvolvimentistas. Na Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz MMS foi criador e docente da disciplina “Fundamentos Econômico-Sociais”, além de redator das revistas Conjuntura Econômica da FGV e Desenvolvimento & Conjuntura, editada pela CNI. Além disso, ministrou aulas em outras instituições, como o ISEB e proferiu conferências sobre saúde e desenvolvimento em diversos cursos organizados pela Comissão Econômica para a América Latina-CEPAL. Em 1963 participou da organização e foi o principal mentor das teses que orientaram a III Conferência Nacional de Saúde, com foco na descentralização e na democratização do setor, antecipando, de certa forma, o que viria a se firmar no período de redemocratização do Brasil, com a VIII Conferência, em 1986.
A partir de 1964 passou a ser perseguido pelos miliares no poder, sendo obrigado a depor em pelo menos três Inquéritos Policiais Militares, além de afastado do cargo que ocupava no Ministério da Saúde e impedido de dar aulas na ENSP. Voltou humildemente à ativa a partir de 1970, trabalhando na Secretaria Estadual de Saúde em funções burocráticas e até mesmo em um pequeno posto de saúde em Mangaratiba. No departamento de epidemiologia e estatística da SES-RJ, deixou sua marca, ao organizar os registros de mortalidade e atualizar vinte anos de estatísticas.
Seu legado não foi pequeno. Mário Magalhães da Silveira teve enorme liderança na saúde dentro de uma perspectiva de pensamento desenvolvimentista, para dizer pouco, pois suas contribuições vão muito além disso. Sempre gostou de trabalhar em equipe e são palavras dele: “Nós tínhamos um compromisso, éramos da Saúde Pública. Não tínhamos outra atividade […]não somos políticos, nem eu, nem os meus amigos. Sempre fomos profissionais interessados pela nossa profissão […] sou um homem desse campo de atividade; nunca fiz outra coisa na vida. São 54 anos de trabalho”. Foi acusado pelos militares de 64 de ser um marxista convicto, mas nunca foi membro do Partido Comunista, com o qual tinha, na verdade, discordâncias, por exemplo, em relação à proposta do mesmo para a reforma agraria e mesmo sobre seu conceito de burguesia aplicado ao Brasil.
Segundo Sarah Escorel, autora sediada na ENSP/Fiocruz, que publicou extenso trabalho sobre a obra e a trajetória de Mário Magalhães da Silveira (ver link ao final), ele era “avesso aos holofotes, não tinha papas na língua. Adorava ir a debates para discutir e criticar. Um amigo de muitos anos assim o definiu “Era um Quixote magro, ascético, desalinhado, vestia-se mal, nunca passou um pente no cabelo; tinha a capacidade de falar, de se exprimir absolutamente impressionante, era contundente, mas não agressivo [..] mistura inesquecível do Quixote e do Sancho, em que a sapiência da loucura combinava-se com a argúcia da simplicidade”.
Uma pequena síntese de suas contribuições, ainda pulsantes, ao debate brasileiro em Saúde segue abaixo:
- Foi um pioneiro no cruzamento das variáveis econômicas com indicadores populacionais, ressaltando a relação das pirâmides populacionais com o grau de desenvolvimento econômico, mostrando ainda rejeição aos programas de planejamento familiar ou controle da natalidade centrados nos indivíduos e nas famílias, por considerar que as soluções eram de ordem coletiva e governamental, tais como as políticas de desenvolvimento, distribuição da riqueza, municipalização.
- A ideia-força de que o nível de saúde de uma população depende em primeiro lugar do grau de desenvolvimento econômico de um país ou região e que, portanto, as medidas de assistência médico-sanitária são, em boa medida, inócuas quando não acompanham ou integram esse processo.
- Não era se trata de diminuir a importância da medicina na conservação da vida e na melhoria das condições de saúde do homem. A condição de médico é o único penhor do desvelo pela ciência médico-sanitária, embora seja preciso situar bem o problema, pois o homem tem necessidades que são anteriores às (de) ordem médico-sanitária, ou seja, necessidades fundamentais como alimentação, habitação ou abrigo e vestuário.
- A saúde de uma população só melhora quando é possível substituir-se na produção de trabalho pesado, necessário à vida das comunidades, a força muscular, humana ou animal, pela energia dos combustíveis sólidos, líquidos e gasosos.
- Saúde é um problema de superestrutura. Tal qual um edifício, cujas fundações devem ser construídas primeiro, depende da estrutura econômica. Somente a industrialização, a urbanização e o avanço tecnológico poderão produzir riqueza suficiente para se ter um excedente, e poder destinar parte dele à aquisição do bem-estar geral e, por conseguinte, da saúde. Para implementar essas ideias, o planejamento com bases demográficas e a municipalização aparecem como estratégias.
Como disse Escorel, MMS, nos últimos anos de vida acabou por ficar à margem dos acontecimentos e foi se esvaindo e perdendo o ânimo. Ele disse certa vez a seu grande amigo Chico de Oliveira: “viver é influenciar e eu não influencio nada mais”. Mas certamente estava enganado. O fato é que gente assim anda meio “sumida do mapa” no Brasil. Faz tempo.
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Saiba (muito) mais:
- Escorel S. Mário Magalhães: Desenvolvimento é Saúde. Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.8 Rio de Janeiro Aug. 2015. Acessível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232015208.09072015.