Zygmunt Bauman explica o bolsonarismo e o negacionismo

Zygmunt (ou, aportuguesando, Segismundo) Bauman foi um filósofo polonês, cujo pensamento tem uma trajetória curiosa. Filho da família judia perseguida pelo Nazismo, teve que se exilar de sua terra natal, mas a ela retornou como combatente contra os nazistas. Fez carreira militar e pertenceu ao exército da nova Polônia, agora sob domínio comunista e forte influência soviética. Mas sua independência em relação aos dogmas vigentes em tal ambiente logo o tornaram, de novo, um exilado. Radicou-se, então, na Inglaterra, onde foi professor na Universidade de Leeds até a sua morte, em 2017. Um dos conceitos sociológicos originais desenvolvidos por ele foi o de modernidade líquida, para configurar uma época em que as relações sociais, inclusive amorosas, além das econômicas, políticas e de produção se tornaram frágeis, fugazes e maleáveis, à maneira dos líquidos. Tal mudança se opõe ao conceito de modernidade sólida, vigente secularmente até meados do século 20, quando as relações sociais eram, segundo ele, estabelecidas de maneira mais firme e duradoura. Para Bauman tal mudança não representa propriamente uma ruptura com o estatuto anterior, mas sim uma continuação, só que conduzida de maneira diferente.  A tal liquidez pode parecer vantajosa em alguns aspectos, mas segundo Bauman ela pode ser também porta aberta para distopias um tanto sórdidas. A partir dessas ideias tentarei aqui desenvolver uma explicação da situação política brasileira atual, tendo o bolsonarismo e o negacionismo científico como focos.

Ao vermos a horda bolsonarista em ação, seja soltando fogos contra o prédio do STF, pedindo intervenção militar, se acotovelando para aclamar seu pretenso “mito”, negando o risco de contágio na atual pandemia, entre outras barbaridades, é forçoso perceber a presença de algumas das características daquilo que Bauman considera sinais de um novo tempo marcado pela fluidez (modernidade líquida, nas palavras dele), mas sem dúvida distópico. Isso se evidencia, por exemplo, pelos fetiches compartilhados pela massa que se mantem presa ao imaginário propagado pelo ex capitão, como, por exemplo: a crença em uma promessa de felicidade e de grandeza, com fundamentos na pátria, na família e em Deus; a segurança a ser conquistada através do armamento das pessoas; o vislumbre de um “Brasil grande”, retroagindo a um sonho da ditadura militar; a força do individualismo empresarial, religioso, pessoal; a conclamação a um modo de vida self-made (“deixar de ser maricas”, “parar com mimimi”, voltar urgentemente ao trabalho, por exemplo); a transferência de culpa a terceiros, geralmente identificados como comunistas, esquerdistas, chineses, interesses estrangeiros, prefeitos e governadores; a aceitação do medo como instrumento de ação política; a desconfança não só em relação ao “sistema” (seja lá o que isso for), mas também em relação às conquistas da ciência, entre outros aspectos. Acima de tudo, a crença, e mais do que isso, a devoção a um “mito” (que traz consigo um outro cortejo de mitos) traduzido pelos acólitos como o Salvador, o Cavaleiro, o Atleta, o Militar Destemido, o Homem Forte e “imbrochável” que não fraqueja.

Vê-se assim que as categorias de Bauman são perfeitamente aplicáveis ao fenômeno que ora presenciamos no Brasil. Mas tem mais.

Bolsonaro se apresenta como um vencedor. Militar reformado de baixa batente, depois vereador, deputado, influencer corporativista, propulsor de candidaturas de filhos e apaniguados diversos e finalmente Presidente da República. Ele só não explica por que exatamente deixou a carreira militar; isso para ele não tem importância, pois o que conta é a sua (pós) verdade. E a massa fanatizada de seguidores o aplaudiria de qualquer forma; aliás, por que o faria diferente, se é em tal mito que essas pessoas se miram. Aqui entram em cena categorias muito bem expostas por Bauman, relativas ao mundo das pessoas bem-sucedidas (ou, como “eles” preferem: pessoas de bem), nas quais se inspiram como se virtuosas fossem: consumismo, individualismo, orgulho, desprezo pelos que são diferentes, por aqueles que choram seus mortos ou a perda de seus empregos, ou ainda por aqueles quilombolas de “seis arrobas” que não conseguem nem mais procriar, comparáveis, portanto, a animais de fazenda. Para Bolsonaro e sua gente, é como se cada pessoa fosse uma instituição peculiar, para a qual total “liberdade” deve ser garantida, mesmo a custa do sofrimento dos demais. Fazem parte de uma competição entre entidades quase abstratas, não entre pessoas humanas, com fraquezas, desejos, peculiaridades; são vistas como formadas por uma espécie de “empreendedores de si mesmos”, entre os quais as conexões valem mais que os relacionamentos autênticos e fundados no afeto. Não possuem amigos, mas sim uma rede de contatos, que é possível sempre prontamente acionar, quando se quer destruir alguma reputação ou atentar contra as instituições do país, sem mesmo precisar sair de casa, por terem o mundo na ponta de um dedo, como disse Bauman.

É nítido, assim, entre os bolsonaristas, que perceberam ter tanto poder na ponta dos dedos, o uso irresponsável e sem limites das redes sociais e da difusão de informações falsas, sem qualquer apoio no bom senso e na realidade, coisa que fazem utilizando a máscara do anonimato, a confortável solidão, as zonas de conforto, narradas por Bauman como características daquele cenário líquido. Em tal contexto, o que interessa é falar entre símiles, não com quem pense diferente, não importando a perda do enraizamento na realidade. A presente pandemia é rica em exemplos dessas distorções.

A marca antissistema do bolsonarismo é outro aspecto digno de aprofundamento. A qual sistema se apõem, afinal? Certamente, trata-se apenas daquilo em se sentem excluídos, embora não sejam capazes de estipular exatamente os conteúdos de tal “sistema” e nem mesmo de tal sentimento de exclusão. Esta argumentação, melhor definida como uma peroração mal informada, oscilante, escassa em vocabulário e quase sempre desqualificadora, não raro apelando para a galhofa (veja-se o caso do mimimi, por exemplo) lembra aquilo que Bauman tratou como verdadeira carnavalização, ou seja, situações nas quais se coloca uma máscara, o que facilita seus agentes se agitarem juntos, freneticamente, fugindo assim da ordem natural das coisas, traduzindo apenas um sentimento de raiva, mas não o desejo de mudança compartilhada. Em tal carnaval bolsonariano comparecem inescapáveis e emblemáticas figuras, verdadeiros “bonecos da meia-noite”, tendo como protótipos Ernesto Araújo e o já quase esquecido Weintraub, sem esquecer do Velho da Havan, de Sarah Winter, de Hélio Negão, dos Generais Pazuello e Heleno, do sujeito da Funarte, dos próprios filhos e da esposinha, além de muitos outros. Não chegam a ser gente séria, realmente, mas apenas fantoches (mas que sabem o que estão fazendo).

É fruto de tal “carnavalização” a negação que tal grupo perpetra contra tudo de que se julga ameaçado, seja o Judiciário, o equilíbrio dos poderes, as conquistas sociais no campo dos costumes, o pensamento de esquerda, o “globalismo” e ainda, de forma mais estarrecedora, a ciência. É aí que entra o negacionismo relativo à atual pandemia, exercido ao arrepio não só das evidências científicas, mas do sentido de humanidade em geral. E daí, eis o que dizem eles diante da inominável tragédia que ora assistimos no Brasil.

Parte do cenário atual no Brasil, tenebroso por sinal, foi também previsto por Bauman. Trata-se do risco anteposto à Democracia pela falta de anteparo intelectual na massa líquida de militantes, traduzindo-se não só pelas investidas intencionais do bolsonarismo contra ela, mas também pelo fato de que a tão decantada Democracia não ter sido capaz de cumprir suas promessas históricas. A velha ordem está morta, ou em ruínas, mas em seu lugar o novo não nasceu, além do que o que se apresenta como tal não é novo de verdade. Assim nos vemos imersos naquele policentrismo complexo de que fala Bauman, composto por instâncias diversas e desconectadas, entre elas os velhos partidos e os novos movimentos, as “bancadas temáticas”, as igrejas neo-pentecostais, as organizações de certo lumpen-empresariado. São elementos não mais passíveis de uma distinção precisa entre “direita” e “esquerda”, “conservadores” e “progressistas”, “lucro” e “cooperação”, o que provoca no Brasil de hoje conflitos bem maiores e mais complexos do que no passado.

Cabe aguardar que venha a surgir algo realmente novo e em oposição a tudo isso, por parte de forças que não transigem com o caos e a anomia que já estão no horizonte. Mas como lembra Bauman, com total acuidade mais uma vez, a esquerda também falhou, ao não perceber, entre outras coisas, que ela já não faz a representação das classes trabalhadoras tradicionais, além de temer a ideia de incomodar os irascíveis e onipresentes “mercados”, insistindo ainda em uma vaga ênfase “identitária” e deixando de lado o verdadeiro regate da justiça social. É assim, diz Bauman, que os vínculos se despedaçam, o espírito de solidariedade enfraquece, a separação e o isolamento tomam o lugar do diálogo e da cooperação.

E por aí vamos. Zyg Bauman já tinha percebido a raiz de nossa tragédia. Mas o pior é que nem ele nem nós sabemos ao certo como sair dela.

***

A seguir uma explanação mais abrangente sobre as ideais de Zygmunt Bauman, de minha autoria.

Vamos entender melhor o que significa a tal da modernidade líquida. Para Bauman isso teve início após a Segunda Guerra, ficando mais perceptível a partir dos anos 60. Antes o que dominava era a rigidez e a solidificação nas relações sociais, na ciência e nos modos de pensamento, com a busca da verdade como compromisso indelével para os respectivos pensadores. Além disso, predominavam relações sociais e familiares rígidas, duradouras, além de fundadas na tradição, com pelo menos um notável aspecto positivo: a confiança nas instituições e na solidez das relações humanas.

Já os “tempos líquidos” de que fala Bauman, possuem características opostas.  Tudo fica mais evidente na década de 1960, mas havia sementes desde os primórdios do capitalismo industrial, no qual as relações econômicas sobrepujaram as relações sociais e humanas. E foi justamente isso que acabou abrindo espaço para que se fragilizassem os laços entre as pessoas e entre estas e as instituições. Algumas características de tal transição: (a) entrada em cena da lógica do consumo, no lugar de uma lógica moral, transformando fortemente a essência humana. (b) fragilização das instituições tradicionais, com a transformação do emprego em empreendimento individual – indivíduos empreendedores de si mesmos; (c) advento de instituições líquidas (cada pessoa é igual a uma instituição), com a exploração capitalista percebida como relação natural em que o sujeito, empreendedor de si mesmo, vende a sua força de trabalho a outro sujeito empreendedor, que dele se diferencia por possuir capital; (d) agilidade e aceleração dos processos sociais como um todo, afetando moda, pensamento de época, ciência, técnica, educação, saúde, relações humanas em geral – tudo agora submetido à lógica capitalista de consumo.

Tomemos duas categorias fundamentais dentro de ideia mais ampla da modernidade líquida, na visão de Zygmunt Bauman: relações humanas e política.

Relações humanas

Estas naturalmente se viram extremamente afetadas e Bauman usa o termo “conexão” para designar tais relações no contexto da modernidade líquida no lugar de “relacionamento”. Para ele, o que se deseja a partir de então é algo a ser acumulado, embora de forma superficial, de modo a permitir um “desligamento” a qualquer momento, valendo isso, por exemplo, para as amizades e os relacionamentos amorosos.

Falando das redes sociais, Bauman indica que cenários abertos pela internet serviram de instrumento para a intensificação do que chama de amor líquido, ou seja, apenas uma relação pseudoamorosa, na qual não se procura, como na era “sólida”, companhias afetivas e amorosas, mas apenas conexões, sejam sexualizadas, ou não, substituindo o que um dia foi a amizade. Em tal contexto, o que se busca é nada mais do que o prazer, a qualquer custo, mesmo que utilizando pessoas como objetos, tendo agora o próprio sujeito transformado em mero objeto.

Assim, as conexões estabelecidas entre pessoas são laços banais e eventuais. As pessoas buscam um número grande de conexões, pois isso se tornou motivo de ostentação. Mais parceiros e parceiras sexuais, mais “amigos” (que, na verdade, não passam, na maioria dos casos, de colegas ou conhecidos), pois quanto mais conexões, mais célebre a pessoa é considerada. Basta fazer uma breve análise das relações sociais em redes sociais como o Facebook: quanto mais “amigos” (que, na verdade, são apenas contatos virtuais) a pessoa tem, mais requisitada ela se torna.

Da mesma forma, o sexo também se reduziu a mero objeto de prazer. É verdade que, enquanto impulso fisiológico do corpo, o lado animal do ser humano busca o sexo pelo prazer, e não pela reprodução em si. O prazer é uma isca da natureza para atrair o animal para a relação sexual, pois, assim, a natureza consegue que os animais se reproduzam e as espécies sejam mantidas. O sexo, para as sociedades humanas e na modernidade sólida, deixou de ser somente instrumento de prazer e foi considerado mais que somente meio de reprodução. O sexo passou a ser visto como compartilhamento de emoções, de amor, símbolo de confiança entre duas pessoas. Na modernidade líquida,o sexo é mero instrumento de prazer e não deve ser medido qualitativamente, mas quantitativamente: quanto mais frequente e com o maior número de pessoas possíveis, melhor. Quanto menor o vínculo entre parceiros sexuais, melhor.

O consumismo é um tema caro a Bauman, que lembra ter-se transformado o consumo em verdadeiro imperativo na modernidade líquida. Criou-se todo um aparato para que o capitalismo consiga progredir desenfreadamente por meio do consumo irracional. Para além do que o filósofo e sociólogo alemão Karl Marx observou em sua época, um fetiche pelo consumo, criou-se um fetiche pelas marcas, deixando de importar o produto em si, mas a sua fabricante e o seu preço. Consumo sempre foi sinônimo de status, mas, na modernidade líquida, o consumo e o status são expressivamente dotados de uma carga simbólica muito mais intensa do que era na modernidade sólida. O sujeito é objetificado pelo capitalismo, tornando-se apenas o que ele consome, e não mais o que ele é. Na lógica da modernidade líquida, o sujeito é aquilo que ele consome.

O modo pelo qual o capitalismo consegue efetuar essa mudança de perspectiva é pela promessa de felicidade: os sujeitos estão cada vez mais ansiosos, tristes e sobrecarregados. Associa-se então o prazer momentâneo oferecido pelo consumo à felicidade. Como esse prazer é rapidamente passageiro, o sujeito sente a necessidade de buscá-lo constantemente, na tentativa de alcançar a felicidade.

Política

Internet e Política têm andados juntas. Segundo Bauman, isso torna possíveis coisas que antes eram impossíveis, ao oferecer a todos acesso cômodo a um enorme volume de informações – o mundo na ponta de um dedo – como diz ele, coisa que permite a qualquer um publicar seu pensamento sem pedir permissão a ninguém. Em tal mundo evita-se o contato e a contaminação com a complexidade da realidade, o que não costuma ser experiência prazerosa, obrigando as pessoas quase sempre a se esforçarem para tanto, o que nem todo mundo quer. A “rede”, então, faculta encontrar os que são símiles e é por isso que ela também representa um remédio contra a solidão ou um lugar de “confortável solidão”.

Contudo, para o bem e para o mal, alguns movimentos políticos nasceram na rede e se difundiram graças a ela. Bauman analisa tal ambivalência, lembrando que as pessoas costumam usar a internet não para expandir sua própria visão de mundo, mas para fechá-la dentro de “zonas de conforto”. Contudo, sobre tais espaços idílicos paira a questão: a que conduzem de fato? Qual é o seu enraizamento sobre a realidade? Mas é assim que surgem os movimentos antissistema, dos quais a internet não seria a causa, mas apenas veículo. Em tais movimentos, na verdade, o que predomina é uma crise de confiança na democracia, que por sua vez deriva de uma contradição, a de se viver num planeta globalizado e com enorme interdependência entre os indivíduos e grupos sociais, porém tendo à disposição instrumentos herdados de gerações passadas e de um conceito com começa a ruir, o de um Estado nacional. Segundo ele: um tempo em que uma decisão tomada numa capital realizava-se no território daquele país e não valia cinco centímetros adiante.

No Estado e na política líquidos, porém, mudou tudo. Há uma forte interdependência de caráter global e os Estados nacionais tradicionais se tornaram incapazes de dar conta dela, colocando os respectivos governos sob dupla pressão, ou seja, de um lado, responder aos eleitores que cobram as promessas feitas pelos políticos; de outro, a realidade global da interdependência entre mercados, bolsas, agente da finança e outros poderes que não foram eleitos por ninguém, mas que impedem que aquelas promessas sejam honradas. Vem daí uma tremenda crise de confiança, quando as pessoas passam a sentir que as democracias não funcionam mais, não se sabendo como ajustá-las ou com o quê substituí-las. É assim que nascem os movimentos antissistema? Bauman, todavia pondera: cuidado ao falar de movimentos [que] são um conceito sociológico, enquanto o sentimento é um conceito psicológico.

Sentimentos sim, sustenta ele, porque as pessoas compartilham reações emotivas nas redes sociais e às vezes organizam-se, a partir dali, para ir às ruas protestar, gritando em uníssono alguns slogans, embora na verdade tenham interesses diversos e expectativas difusas. E assim retornam a seu cotidiano, felizes com os que lhe parece ser um elo de fraternidade com os demais, mas na verdade uma falsa solidariedade, que Bauman denomina de “carnavalesca”, por lembrar aquelas situações nas quais se coloca uma máscara, se canta e se dança junto, fugindo por um tempo limitado da ordem das coisas. Assim, diz ele, a raiva não se transforma em mudança compartilhada.

E respondem a tal conjuntura os partidos políticos, alguns buscando reforçar a democracia, outros propondo, ao invés, a busca de um “homem forte” e “salvador”, aquele capaz de realizar o que as democracias não conseguiram cumprir, dentro de um clima de fundamentalismo político ou religioso. Ele cita como exemplo Donald Trump, certamente por ainda não conhecer Bolsonaro o suficiente. Sobre o epíteto de “populistas”, atribuído a este grupo de lideranças na política, ele considera que este termo é sempre aplicado aos adversários, em sentido pejorativo. Para Bauman o problema não seria exatamente a suposta ameaça do “populismo”, mas a possível resposta autoritária à crise da democracia

Para clarear tal cenário de crise e mudanças, ele cita Gramsci: “se o velho morre e o novo não nasce, neste interregno ocorrem os fenômenos mórbidos mais diversos” – completa: os velhos instrumentos não funcionam mais; mas os novos ainda não existem. Direita e esquerda eram conceitos plenos de significado há poucas décadas, mas são muito menos na complexidade policêntrica do presente.

Tal “complexidade policêntrica” é assim definida:  Depois da queda do Muro de Berlim, alguns pensadores levantaram a hipótese do fim da História, do fim dos conflitos políticos, no interior de um sistema liberal-capitalista pacífico e definitivo. Erraram. O planeta é muito mais dividido e conflituoso que antes […] Este policentrismo complexo está também na política, onde entrelaçam-se instâncias desconectadas entre si e difíceis de classificar com “de direita” ou “de esquerda”. Antes, o confronto era entre conservadores e progressistas, entre quem queria uma sociedade baseada no lucro e quem a queria assentada na cooperação. Hoje, os conflitos são até maiores, mas menos simples e menos puros.

Sobre os conceitos, que Bauman considera ultrapassados, entre “esquerda” e “direita”, lembra que o problema contemporâneo da esquerda é o de ter sido, um dia, a representação da classe trabalhadora, mas que na atualidade, com os capitais se movendo velozmente no mundo, os instrumentos de proteção das classes populares já não funcionam mais, as greves, por exemplo. Lembra ele: se os trabalhadores cruzam os braços, um segundo depois o capitalista transfere a produção para um país onde encontra pessoas contentes por ganharem um par de dólares por dia. É assim que muitos políticos herdeiros da esquerda se assustam com a ideia de incomodar irascíveis “mercados” e por isso mudam ou fogem de tema. Da mesma forma critica a ênfase “identitária” nas políticas da esquerda, apelando para um regate da justiça social, que era a grande razão de ser da esquerda. Assim, diz ele, os vínculos se despedaçam, o espírito de solidariedade enfraquece, a separação e o isolamento tomam o lugar do diálogo e da cooperação.

Sobre o sentimento de medo, que se tornou conspícuo no mundo e explicaria, pelo menos em parte, o surgimento de líderes com Trump e Bolsonaro, ele pensa que é preciso que entender de que tipo de medo se trata, classificando-o como algo semelhante à ansiedade, a uma incessante e generalizada sensação de alerta, além do mais multiforme e exagerado na sua imprecisão, difícil de se captar e, por isso, difícil de combater. Será por isso que os laços humanos tendem a se despedaçar, com enfraquecimento do espírito de solidariedade e separação e isolamento tomando o lugar do diálogo e da cooperação. Vem daí a atmosfera sombria que presenciamos, em que cada pessoa suspeita de quem está ao seu lado e é, por sua vez, vítima das suspeitas alheias. Diz ele: em tal clima de desconfiança exagerada, basta pouco para que o outro seja percebido como um potencial inimigo: será considerado culpado até que se prove o contrário.

O medo, passa a ser, assim, um instrumento da política. Lembra Bauman: assim como as leis do marketing impõem que os comerciantes proclamem incessantemente que o seu objetivo é a satisfação das necessidades dos consumidores – embora estando eles plenamente conscientes de que, ao contrário, a insatisfação é o verdadeiro motor da economia consumista –, assim também os empresários políticos dos nossos dias declaram, sim, que o seu objetivo é garantir a segurança da população, mas, ao mesmo tempo, fazer todo o possível, e até mais, para fomentar a sensação de perigo iminente. O núcleo da atual estratégia de dominação, portanto, consiste em acender e em manter viva a centelha de insegurança… Surge disso o estratagema de transformar as calamidades em vantagens, de tal forma que reacender a chama da guerra é uma receita infalível para desviar a atenção dos problemas sociais, como a desigualdade, a injustiça, a degradação e a exclusão, e fortalecer o paco de comando-obediência entre os governantes e a sua nação. A nova estratégia de dominação, fundamentada no deliberado impulso à ansiedade, permite que as autoridades estabelecidas não cumpram a promessa de garantir coletivamente a segurança existencial. Deveremos nos contentar com uma segurança privada, pessoal, física. Isso não parece ser um retrato perfeito do Brasil de hoje?

Para o problema do medo ele cita ninguém menos do que o Papa Francisco: “o destino de salvação está nas nossas mãos. A estrada é um diálogo voltado a uma melhor compreensão recíproca, em uma atmosfera de respeito mútuo, em que estejamos dispostos a aprender uns com os outros”. Tal estratégia, segundo ele “embora de longo prazo, seria a única capaz de resolver uma situação que se assemelha cada vez mais a um campo minado, saturado de explosivos materiais e espirituais, salvaguardados pelos governos para manter a tensão em alta. Enquanto as relações humanas não tomarem o caminho indicado por Francisco, é mínima a esperança de limpar um terreno que produzirá novas explosões, mesmo que não saibamos prever com exatidão as coordenadas.

Bauman endossa a ideia muito difundida hoje que existe de fato, em tais cenários, ameaças fortes à democracia. Para ele a ideia de cidadania, além das tarefas a ela ligadas, correm o risco de serem liquidadas ou remodeladas, já que o medo de que os políticos se servem é recurso muito convidativo para trocar argumentação por demagogia e processos democráticos por políticas autoritárias, com os visíveis e constantes apelos de tal tipo de líderes à necessidade de um Estado de exceção.

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