Nunca deixarei de lembrar, com muito orgulho, o fato de ter feito parte das duas administrações municipais capitaneadas por Zaire Rezende em Uberlândia, ente 1983 e 1988 e depois entre 2001 e 2004, que representaram, para a cidade, o surgimento de um novo modo de operar a gestão municipal, em termos de saúde e de outras políticas públicas, revertendo nestes dois momentos, com maior sucesso no primeiro deles, o modo tradicional desenvolvimentista e especulativo de governar a cidade, como se ela fosse uma capitania hereditária e não um lugar de vida para cidadãos verdadeiros. Eu conheci este sujeito singular através de uma apresentação formal, feita por seu quase primo, ou marido de uma sua prima, José Olympio de Freitas Azevedo que já era meu amigo. Logo pude saber que era médico, como eu, embora mais velho; natural da terra e de família tradicional de Uberlândia; formado no Rio de Janeiro e que passara mais de vinte anos fora da cidade, trabalhando no interior de São Paulo, e que agora voltava, para continuar a clinicar, como gineco-obstetra em um dos hospitais da cidade, onde já tinha amigos e parentes médicos. O que eu não fiquei sabendo naquele momento é que ele tinha aspirações políticas, ainda não totalmente reveladas na ocasião, mas confirmadas para mim algum tempo depois. Zaire nos deixou neste 31 de maio. Foi uma pessoa que me marcou profundamente durante a vida, como chefe, como amigo, como exemplo de cidadão prestante, humanista e responsável – pra dizer pouco. Nas linhas abaixo, eis como eu o deixei registrado em minhas memórias.
Eu o revi apenas dois anos depois da reunião na qual fomos apresentados, em 1980. Então, na sede do Bispado da cidade no bairro Aparecida, tendo como anfitrião D. Estêvão Avelar, um dominicano atrevido, visado como inimigo pela ditadura, que corria solta na época, preparava-se, então a campanha da Fraternidade de 1980, cujo tema era a saúde. Éramos dois médicos apenas no evento: ele e eu. E, ao final das conversas com o Bispo, ele veio conversar comigo, se dizendo bem impressionado com as coisas que eu tinha dito pouco antes e então me revelou que seria candidato a prefeito nas próximas eleições, daí a dois anos e que, se ganhasse, ele gostaria que eu fosse seu secretário de saúde.
Isso me deixou, não sei se lisonjeado ou curioso, dada tanta ousadia e até mesmo, eu diria, certa presunção, daquele sujeito, até então um ilustre outsider na política local. A ele eu me ligaria política e afetivamente mais tarde, pois de fato ganhou aquela eleição que parecia completamente impossível dois anos antes, fazendo de mim um interlocutor até certo privilegiado. Pela primeira vez na minha vida eu me aproximava de um político.
Zaire Rezende ganhou a eleição de 1982, disparado, na frente dos demais candidatos, em uma campanha que ocorreu de casa em casa, de ouvido em ouvido, como pouca grana, como nunca antes acontecera na cidade. Teve o apoio da Igreja Católica, pois era um praticante fiel, ligado aos movimentos mais liberais da Santa Madre, mas pôde contar também com os sindicatos, os mais pobres, além da comunidade universitária. Os uberlandenses tradicionais, não apenas os mais ricos, torciam o nariz, claro, mas o homem empolgou de verdade o eleitorado. Seu segredo era um grande carisma e, mais importante, a quantidade de gente que ele conseguiu acessar na base de “olhos nos olhos”. O dito comum era o de que, quem conversasse com ele sairia convencido. Eu mesmo, apesar da ligeira desconfiança anterior, não exatamente ideológica, claro, já fora inteiramente magnetizado.
Ele era um Rezende, família importante na cidade, com muita gente rica e outros nem tanto. Seu pai era um fazendeiro tradicional, que lhe deixou terras de herança, que a política cuidou de dispersar mais tarde – mas isso é outra história. Sua passagem pelo interior de São Paulo se deu no contexto da formação de grupos médicos progressistas e sintonizados com o ideal cristão das Comunidades Eclesiais de Base. Foi médico em duas cidades, a última delas São Sebastião, onde tinha sido vereador, ligado ao grupo democrata-cristão de Franco Montoro.
Teve sete ou oito filhos, com a esposa, Neusa, companheira solidária de suas andanças e aventuras. Vi nele desde o início um homem atencioso, calmo, portador de um olhar realmente diferenciado e dedicado a seus interlocutores. Assim ele era não só em família, como também com eleitores, servidores da Prefeitura, colaboradores, membros do partido. Muitas vezes creio que pagou duramente por isso, pela incompreensão que um homem público sofre, até mesmo (ou principalmente?) quando é honesto e justo. Em sua primeira visita a minha casa, meus gêmeos Mauricio e Fernanda, que tinham quatro anos de idade, o rodearam curiosos e em poucos minutos já tinham se instalado, sem nenhuma cerimônia, em seu colo. Acho que isso ilustra bem a matéria de que Zaire é feito.
Ele procurou fazer um governo ambicioso, instilando na política da cidade muitas coisas novas, sob um lema que ele respeitava e acreditava com sinceridade – democracia participativa – resistindo brava, ou melhor, suavemente, às investidas críticas de gente que queria pulso mais forte com a população, dentro e fora do governo – às vezes mais dentro do que fora. Foi a primeira vez que a cidade teve secretarias destinadas à saúde e ao meio ambiente, por exemplo. Na saúde colocou um sanitarista; na educação, um educador; no meio ambiente, um ambientalista; na cultura, uma professora de literatura. É claro que na vala comum dos maus governos também há exemplos assim, mas naquele momento, principalmente nos primeiros quatro anos de gestão, acho que fizemos mais do que em todo um século anterior.
A eleição para o sucessor foi perdida, em parte porque a figura escolhida tinha a cintura e a simpatia pessoal dignas de um poste. E forçosamente o contraste como prefeito que saía (não havia segundo turno na época) era inevitável. Mas aspectos culturais também pesaram certamente, por exemplo, aquilo que me disse um frentista de posto de gasolina para justificar seu voto “nos outros”, a oligarquia da cidade: uai, eles fizeram o Camaru… Tal obra era um centro de exposições de gado e máquinas agrícolas, construído na administração anterior à nossa, com grande consumo de recursos. Mas para aquele gasolineiro era “a obra”. Não resisti de lhe provocar perguntando quantas cabeças de gado ele possuía…
Seu segundo mandato, entre 2001 e 2004, do qual participei novamente, foi malsucedido por inteiro, já dentro de um quadro político muito adverso, marcado por uma estratégia de coalizão e de verdadeira obsessão precoce com a sucessão, já em regime de dois turnos. Foram criadas secretarias em excesso, a crise fiscal mordeu fundo na carne, os aliados à esquerda e à direita se mostraram pouco ou nada confiáveis e já na metade do mandato não se pensava em outra coisa a não ser nas eleições vindouras. Zaire se candidatou, contra a minha opinião e de outros secretários e assessores, acabando colocado em posição totalmente desfavorável naquele pleito.
Na época eu fiz ver a ele já ter tido realizações perfeitas na vida: dois mandatos de prefeito, dois de deputado federal, duas décadas de carreira médica bem-sucedida, uma geração inteira de família bem-criada. E fui além: por que não deixa a política e vai curtir a vida e criar sua filhinha mais nova? Não adiantou nada. Ainda insistiu em ser candidato a vice-governador em chapa do PT (ele sempre foi PMDB, ninguém é perfeito) e mais uma vez foi derrotado, tendo sido antes abandonado pela própria companheirada, que certamente o tinha como estranho no ninho.
Como herança da prefeitura, carregou uma série de processos judiciais por improbidade administrativa, aos quais respondeu penosamente por uma década inteira, tendo perdido grande parte do patrimônio que recebeu do pai. Isso é o de menos… No Brasil de hoje os tais processos abertos sofregamente pelos luminares do Ministério Público às vezes servem apenas para comprovar que o gestor acusado tentou fazer as coisas acontecerem, além de revelarem o ativismo político de suas excelências. Se servir de consolo, a mim ou a ele, também fui alvo de um dos tais processos.
Zaire resumido em uma única frase: um homem que não precisou fazer força para ser bom. Ele foi sempre naturalmente bom, sem qualquer esforço ou demagogia, valendo isso para a família, para a política, para administração, para os amigos. Político fracassado? Jamais! Apenas derrotado por excesso de qualidades.
Ele foi realmente, sem nenhum favor, um daqueles homens imprescindíveis, de que falava Bertold Brecht.