Quem não conhece a História, embarca nos equívocos do passado (ou tenta reinventar a roda)

Programa (ou Estratégia) de Saúde da Família: por onde e como andará a política de saúde inaugurada nos anos 90 e que já foi responsável pelo atendimento a mais de 100 milhões de brasileiros? Quem a procurar, por exemplo, no site da Secretaria de Saúde aqui do DF, não encontrará sequer uma palavra ou simples vírgula sobre ela. Na página do Ministério da Saúde o que se encontra são afirmativas genéricas e pouco atualizadas sobre seu conteúdo e alcance, sem mencionar o fato de que o setor está entregue, nos últimos anos, a uma trupe circense de bolsonaristas da espécie “Capitã Cloroquina” e outros negacionistas e fanáticos pseudo-religiosos de igual estirpe. A SF não morreu (ainda) mas é flagrante o descaso com que vem sendo tratada no atual governo, com uma enxurrada de portarias burocráticas que a desfiguram a cada dia, até não chegar a ser sequer mencionada entre as políticas de governo. Por esses e por outros motivos, principalmente pela sua capacidade de adicionar valor à atenção à saúde, fato confirmado em grande parte dos países do mundo, mas desprezado atualmente no Brasil, é que vale a pena resgatar aqui um pouco da história de seus princípios. Recorro ao que escrevi, cerca de 2002, em minha tese de doutorado na Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, cujo link vai ao final (ver Saúde da Família: Boas Práticas e Círculos Virtuosos). E vamos começar por uma regressão temporal radical, à época da Idade Média, prosseguindo depois em direção à modernidade através de outros posts que serão acrescentados a este.

Começo à maneira socrática, duvidando da essência e da validade real de meu objeto. Seria a ESF uma adaptação paliativa e, por assim dizer, cosmética, do modelo de atenção à saúde vigente, pouco capaz de reverter as conhecidas distorções do mesmo, ou quem sabe possível força geradora de mudanças estruturais do modelo assistencial, incorporando os elementos de um novo paradigma, de recorte sanitário-epidemiológico. Ou uma coisa e outra, ao mesmo tempo? De toda forma, pode-se dizer que o modelo desenvolvido aqui no Brasil, nos anos 90, possivelmente resulta de diversificadas influências sociais, políticas e culturais, incorporando diversos e conflituosos elementos ideológicos e conceituais, tendo, como substrato de sua formação e formulação, contextos simultaneamente globais e locais, societários e institucionais, além de técnicos e políticos. A SF seria, assim, um produto da assimilação e do embate, contraditórios às vezes, mas sempre dinâmicos, de propostas resultantes da emanação da política central de governo, de caráter prescritivo e fortemente normatizador, verdadeiro projeto para a realidade. Mas ao mesmo tempo prenhe de contribuições formuladas a partir da realidade, no âmbito dos municípios, de natureza mais criativa e menos normativa, desenvolvidas em ambientes dinâmicos e marcados pela contingência dos fatos sociais com caráter estratégico e adaptado às condições locais.

A História apenas teve oportunidade de esboçar resposta a tais dúvidas socráticas, apontado com relativa segurança para o segundo cenário (forjado a partir da realidade), não fosse as sucessivas intervenções demolidoras que a proposta original vem sofrendo desde sua criação.

Uma aproximação conceitual se faz necessária e neste aspecto é bastante razoável o conceito de Atenção Primária à Saúde (APS), derivado da Conferência de Alma-Ata , realizada  em 1978 sob os auspícios da OMS e da UNICEF, na qual ela é referida  como: Atenção à saúde baseada em métodos e tecnologias práticas, cientificamente demonstrados e socialmente aceitáveis, cujo acesso esteja garantido a todas as pessoas e famílias da comunidade, de maneira que possam sustentá-la, a um custo que tanto a comunidade como cada país possam manter, em cada estágio de desenvolvimento em que se encontrem, com espírito de auto-confiança e auto-determinação. Representa parte integrante do sistema sanitário do país, no qual desempenha uma função central, constituindo-se também o foco principal do desenvolvimento social e econômico da comunidade. É o primeiro nível de contato das pessoas, das famílias e da comunidade com o sistema de saúde do país, levando a assistência à saúde o mais perto possível do lugar onde reside e trabalha a população, representando ainda o primeiro elo de uma atenção continuada à saúde. (WHO, 1978 pp. 5-6).

Barbara Starfield  (2001), autora que constitui referência obrigatória em tal tema, define a APS como o “centro da política sanitária”, ou seja, um nível do sistema de saúde de amplo acesso para todo novo problema ou necessidade, de efeito temporal duradouro, centrado mais na pessoa do que na doença, coordenado e integrado em termos de lugares e profissionais que nele atuam e além do mais capaz de oferecer atenção à maioria dos agravos à saúde, com exceção daqueles mais raros ou pouco habituais. A APS representaria, além disso, a base do sistema de saúde e um enfoque que determinaria o modo de atuar dos níveis restantes do sistema.

Uma síntese da literatura disponível, que é bastante vasta, indica que APS integra prevenção, assistência e cura; como conteúdo a promoção da saúde e a atenção continuada e integral; como base organizacional, os médicos generalistas ou de família, além de outros profissionais de saúde integrados em uma equipe; como responsabilidade a colaboração intersetorial, a participação da comunidade e a auto responsabilização. Isso implicaria necessidade de mudança nos sistemas de saúde tradicionais, ancorada em objetivos como: a cura de doenças; o conteúdo baseado em terapias e atenção episódica referente a problemas específicos; a organização baseada em médicos e especialistas envolvidos com o trabalho individual e, finalmente, a responsabilidade centrada de forma restrita no próprio setor saúde, com predomínio técnico-profissional nos cuidados de saúde.

Ainda no campo do contraditório, Vasconcelos (1999) aponta diferentes concepções e propostas de APS: a assistência médica primária; a atenção primária seletiva e a atenção primária integral (comprehensive, conforme o original em língua inglesa). As duas primeiras representam formas mais limitadas de atenção, uma vinda por transplante direto dos consultórios médicos e, a outra, marcada pelo caráter racionalizador e poupador de custos de sua prática. Apenas última derivaria dos enunciados difundidos a partir de Alma Ata e tem como função principal o “apoio aos indivíduos e grupos sociais para que assumam cada vez mais o controle de suas vidas e de sua saúde”. Mas já nos anos 90 este autor via a Saúde da Família no Brasil como uma prática limitada pelas “tradições positivistas e mecanicistas” que rodeiam a assistência à saúde, como, também, por restrições políticas e as certas “exigências de produtivismo numérico”.

Em todo caso, a formulação original da SF fazia uso de algumas categorias-chave, que vale a pena recordar aqui: (a) ser a porta de entrada de um sistema regionalizado e hierarquizado de saúde; (b) ter um território definido com uma população delimitada sob sua responsabilidade; (c) ter como centro de atenção a família, inserida em seu meio social; (d) intervir sobre os fatores de risco aos quais a comunidade está exposta; (e) prestar assistência integral, permanente e de qualidade; (f) realizar atividades de educação e de promoção da saúde; (g) estabelecer vínculos de compromisso e de co-responsabilidade entre o serviço de saúde e a população; (h) estimular a organização das comunidades para exercer o efetivo controle social das ações e serviços de saúde; (i) utilizar os sistemas de informação para o monitoramento das ações e para a tomada de decisões. (Ministério da Saúde , 2001)

Assim, como uma aproximação poder-se-ia destacar os componentes essenciais que unem os conceitos de APS e de Saúde da Família, a saber: (a) As práticas de saúde como objeto da intervenção do Estado, o que as caracterizaria como partes de um corpo de políticas sociais; (b) o processo de trabalho tendo como resultado a intervenção do médico e de outros profissionais dentro de um âmbito generalista, ou seja, fora do caráter especializado que recorta e separa o objeto das práticas em saúde em faixas de idade, gênero, sistemas e órgãos, ou mesmo de tipos de doenças; (c) os modos de pensar e de praticar os cuidados à saúde baseados na ampliação e superação dos conceitos tradicionais antinômicos entre individual e coletivo; prevenção e cura; biológico e social; humano e ambiental; oficial e não-oficial; (d) a proteção voltada não apenas para indivíduos-singulares, mas para coletivos (famílias, grupos, comunidades), resultando em um novo tipo de práticas sociais de saúde; (e) a promoção de vínculos entre a clientela e os prestadores de serviços, de natureza administrativa, geográfica, cultural ou mesmo ética.

E como se dá a História disso tudo?

As práticas de saúde sempre tiveram, em sua origem e determinação, a influência dos modos de conceber e agir da sociedade face ao corpo humano e a respectiva valorização concedida à saúde e à doença. Os diversos modelos de práticas (ou, mesmo de políticas de saúde) daí advindos, ao variarem intensamente ao longo da história, mantiveram correlação com a estrutura da sociedade, em cada período, em face da visão de mundo dominante (Sigerist, 1974).  Por outro lado, como lembra Rosen (1994), em toda a história das sociedades humanas, os problemas de saúde enfrentados tiveram, em sua origem, uma relação com a vida em comunidade e, embora com ênfases diferentes, com as variadas maneiras com que tais sociedades procuraram resolvê-los, por exemplo controlando as doenças e melhorando as condições ambientais.

Já na antiga Babilônia, por exemplo, como também acontecia em outras sociedades antigas, códigos como o de Hamurabi prescreviam a necessidade de se cuidar da saúde da coletividade, mediante o controle das condutas dos médicos. Há, por exemplo, relatos sobre a história de um médico mesopotâmico, chamado Arad-Nana, que serviu à corte do rei assírio Asarhaddon, cerca de 670 a. C., na qual se destacou como clínico e conselheiro, atendendo não só ao rei como a sua mulher e a seus filhos. O historiador grego Heródoto, em sua famosa viagem pelo Egito, em torno do ano 450 a. C., descreveu a prática de verdadeiras especialidades médicas na sociedade de então, mas observações posteriores, a partir de lápides de pedra encontrados em túmulos reais do Vale das Pirâmides, mostraram que, na verdade, em períodos tão remotos quanto o da IV dinastia (cerca de 2500 a. C.), era grande o prestígio dos médicos generalistas, como foi o caso de um deles, Iry, médico da corte do faraó e uma espécie de autoridade sanitária da época. No Egito antigo havia, também, médicos contratados para prestar assistência integral aos trabalhadores mobilizados para a construção das pirâmides (Thorwald , 1985).

Na Grécia antiga, Platão justificava a presença dos médicos na Polis, insistindo na necessidade de que os cidadãos, como um todo, fossem pessoas sadias. Na sociedade grega, como destaca Rosen (1994), os termos mais associados com a saúde eram higiene, harmonia, bem, equilíbrio, organização; os praticantes, naturalmente, deveriam ser bastante imbuídos dos mesmos. Já havia serviços públicos rudimentares de drenagem e suprimento de água nas cidades. Os médicos gregos tinham seu salário fixado por um imposto especial e possuíam uma base territorial de ação, tendendo a se concentrar, de forma permanente, apenas nas cidades maiores, onde estabeleciam o iatréion, uma espécie de consultório. Nos vilarejos havia, por vezes, a figura de médicos itinerantes, e era comum que os mesmos batessem à porta das famílias, oferecendo seus trabalhos. Cerca de 600 a. C., passou a ser comum a nomeação pública de médicos para atuarem nas cidades, garantindo-se-lhes proventos anuais, mesmo que não houvesse enfermos para tratar – uma forma primeva do que hoje se conhece como capitação. A medicina grega, por influência de Hipócrates, que viveu em torno de 450 a. C., tinha também como aspecto marcante a prática generalista dos médicos (Sigerist, 1974).

Houve marcante migração de médicos gregos para Roma, nas décadas próximas ao nascimento de Cristo, sendo em alguns casos oferecida a eles a cidadania romana – uma notável distinção para a época. Em Roma, os médicos trabalhavam em bases territorializadas, ou seja, com populações adscritas, estabelecendo-se, por decreto, o numerus clausus, que limitava seu número dentro de cada cidade. Era costume, também, que as famílias estivesse ligadas a um autêntico médico de família, com atuação integral referente a todos os membros da mesma, recebendo um salário mediante cotização de seus assistidos. A partir do segundo século, aparece um serviço público de atenção à saúde, com a nomeação de funcionários médicos, os archiatri, com responsabilidades de atenção à pobreza. (Rosen, 1994; Sigerist, 1974).

A Idade Média mostra uma inflexão da tendência de cuidado e manutenção da saúde por parte de profissionais médicos. Em primeiro lugar, a doença passou a ser concebida como purificação e graça, um privilégio proporcionado por Deus. Como consequência, a prática médica se recolheu aos mosteiros, limitando-se a processos curativos, ainda assim mais voltados para a alma do que para o corpo. Contudo, no final deste período, os médicos leigos aumentaram de número e passaram a ter sua atuação tolerada e até mesmo estimulada pela Igreja, que havia mudado sua conduta em relação ao corpo humano, agora considerado “morada da alma”. No século XIII, em Salerno (atual Itália), verifica-se um primórdio de intervenção estatal em saúde, com a publicação de decretos imperiais sobre a prática e a formação médica. Ainda na Idade Média, ocorre na Suíça o advento de uma espécie de médico de família, inspirado no modelo de profissional que prestava atendimento à nobreza e à aristocracia eclesiástica – o médico de câmara. É possível encontrar também neste período histórico um rudimento de sistema de saúde pública nas cidades, dirigido por um conselho seleto, dotado de um mandato temporário e geralmente formado por não-médicos. Tais organismos tiveram destaque, particularmente, na França, nos Países Baixos e na Inglaterra. O enfoque das práticas de saúde, em toda a Idade Média, foi sempre o do cuidado à pobreza, com forte influência religiosa. Apesar de todo o atraso científico e social da época, havia certa ênfase na educação e na promoção de hábitos higiênicos e de saúde, conforme se aprecia no Regimen Sanitatis Salernitanun [1]  (Rosen, 1994; Sigerist, 1974).

Embora algumas das bases das práticas de saúde modernas calcadas na proteção social coletiva já estivessem lançadas desde a Antiguidade e a Idade Média, como se viu acima, as transformações que ocorrem a partir do século XVI é que se tornam cada vez mais expressivas. Neste período, os acontecimentos da Inglaterra passam a ter especial relevância, dada a ocorrência precoce, em relação a outras nações, da ascensão da burguesia ao poder e suas decorrências políticas econômicas e sociais. Entre tais eventos, podem ser destacados: (a) a revolução tecnológica (Primeira Revolução Industrial); (b) a urbanização acelerada; (c) a formação gradual de uma nova classe, o proletariado urbano; (d) o advento de legislação de proteção social, tendo como parâmetro a Lei dos Pobres Elizabeteana, de 1601; (e) o aparecimento de um pensamento social em saúde; (f) a transição gradual entre a responsabilização local das freguesias (parishes) pela proteção social e a do Estado Moderno – o Leviatã de Hobbes. Inaugura-se assim, segundo Rosen (1994), a Era do Homem Econômico, de marcantes influências nas políticas de proteção social até os dias de hoje. Darcy Ribeiro, (2000) destaca o período como um novo processo civilizatório, enfatizando a compulsoriedade dos processos de integração entre culturas e nações, tendo como mediador o mercado e, também, o aparecimento da força de trabalho assalariada, com novas funções atribuídas aos trabalhadores pelos detentores dos meios de produção, tendo como parâmetro principal a produtividade. Trataremos disso em próximo post.

É isso aí: conhecer a história é uma boa maneira não só de evitar os erros do passado, mas também de se orientar a respeito de coisas já existentes e que de fato funcionam bem, evitando onerosas (e desnecessárias) reinvenções da roda.

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Bibliografia citada

MS (Ministério da Saúde), 2001. Saúde da Família: Uma estratégia para a organização da atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde.

RIBEIRO, D., 2000. O processo civilizatório. São Paulo: Companhia das Letras/ Publifolha.

ROSEN, G., 1994. Uma história da Saúde Pública. São Paulo/ Rio de Janeiro: Editora Unesp/ Hucitec/ Abrasco.

SIGERIST, H., 1974. Historia y Sociologia de la Medicina: Selecciones. Bogotá: Editora Gustavo Molina.

STARFIELD, B., 2001. Atención primária: Equilíbrio entre necessidades de salud, servicios y tecnología. Barcelona: Masson.

THORWALD, J., 1985. O segredo dos médicos antigos. São Paulo: Melhoramentos.

VASCONCELLOS, M.P., 1998. Reflexões sobre a saúde da família. In: A organização da saúde no nível local (E. V. Mendes, org.), pp. 155-172, São Paulo: Hucitec.

WHO (World Health Organization), 1978. Primary health care. Geneve: World Health Organization.

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Acessos web:



[1] Obra do Século XII que teve notoriedade e divulgação na Europa até o século XIX. Um trecho: «A mente mantenha livre de cuidados, e de ira o coração / Não beba muito vinho, ceie pouco, levante cedo, / Depois de comer ficar sentado causa danos; / …. /  quando sentir as necessidades da natureza, / não as retenha, pois isto é muito perigoso. / e use ainda três médicos, primeiro o Doutor Descanso, / Depois o Doutor Alegria, e o doutor Dieta.

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