Aqui vai mais um conto…

A JANELA INDISCRETA

Eu bem vi que o porteiro tentava me avisar de alguma coisa. Não dei muita atenção, pensei que ele falava dos pivetes que andam por ali. Com estes já estou acostumado, não levam a melhor comigo. Mas dessa vez o perigo era outro, uma calçada escorregadia. E assim eu fui parar no chão. Ato contínuo, no Pronto Socorro.

E agora em casa estou eu, com a tíbia partida, mínimo vinte dias de repouso forçado, me arranjaram até uma cadeira de rodas, para me locomover pela área na qual um simples degrau não se interporia como uma muralha.

Meus pensamentos iniciais foram para James Stewart, o fotógrafo acidentado no filme de Hitchcock, A Janela Indiscreta, que acaba descobrindo um crime, graças à sua observação dos vizinhos. Em sintonia com ele tenho à minha disposição apenas esta janela nos fundos de casa, pois não sou fotógrafo, muito menos profissional. Neste quesito, aliás, tenho apenas a câmera do celular, embora não chegue a dominar todos os recursos que ela me oferece. Ah, sim: me falta também uma boa Grace Kelly. Mas aí seria querer demais.

Mas nesta primeira semana de prisão domiciliar comecei a praticar uma coisa que em minha vida normal não fazia. Primeiro, perceber que também existem vizinhos por aqui. E também perceber que eles têm vida e se agitam o dia inteiro. Além de começar a sentir certo prazer em bisbilhotar seus movimentos.

E o melhor é que, mesmo não sendo fotógrafo, descobri que também disponho de um instrumento que faz meus dias menos monótonos. Ou seja, na falta de uma câmera e capacidade para manuseá-la, conto com um computador portátil, no qual brinco de fazer uns textinhos despretensiosos – ou nem tanto. Mas agora a ocasião se me oferece de mão cheia, e assim me inflo com a habitual veleidade de finalmente ser um quase – ou pseudo – escritor. Quem sabe também descubro algum crime por aqui como fonte de narrativa?

Esta mulher da casa do lado, por exemplo. Já vi que tem um filho, uma criança de quatro ou cinco anos. Trata-o com carinho e zelo, mas curiosamente não o tem consigo durante todo o tempo. No último final de semana, por exemplo, ele nem apareceu por ali. Em seu lugar um sujeito de barba e cabelo ruivos, portador do hábito de dormir e acordar tarde, fumar a toda hora alguma coisa com odor de corda queimada e tocar sanfona em altas horas. E de quebra andar pelado pela casa, aproveitando para fazer uns passos de dança em tal estado. Enquanto isso sua hospedeira passa horas e horas concentrada em seu computador, com a devoção de quem está escrevendo uma tese de doutorado ou algo assim.

Há também uma faxineira que vem uma vez ou duas por semana, mas limpeza mesmo aparentemente só acontece quando ali chega uma outra mulher, esta de cabelos brancos, que tem todo o ar de mãe da dona da casa e inclusive é chamada pela criança de vovó. Parentesco esclarecido, portanto. Quando vovó está em casa, o ruivo não aparece e, portanto, não faz o habitual desfile em pelo. E vovó bem que se esmera nas tarefas de faxina, que incluem até mesmo limpar a caca do cachorro. Quem não queria ter uma mãe assim?

Do outro lado, mas ainda com visão acessível através do meu novo veículo de duas rodas paralelas, uma mulher que aparentemente mora com um filho. Ou, pelo menos, com uma criatura que somente aparece por lá depois de altas horas, se é que aparece. A moradora principal é da minha idade, longe de ser uma jovem, portanto. Mas trabalha como uma condenada, todo o dia. É uma casa grande, de três pavimentos e com frequência a vejo na sacada do andar de cima, na janela do que parece ser a cozinha logo abaixo, e também no quintal. Sempre com uma vassoura ou espanador na mão, chegando ao cúmulo de se apresentar com tais instrumentos às vezes por duas ou três vezes ao dia nos diferentes cômodos da casa. Isso quando não está no quintal, varrendo folhas secas ou tratando das galinhas.

O filho, ou aquele sujeito que supostamente possui tal condição, raramente aparece, a não ser nos finais de semana, quando enche a casa de sons, parecendo aficionado nos standards americanos dos anos 50. Esta é a parte boa, pelo grau, digamos, democrático com que coloca botão de volume de seu aparelho de som ao alcance dos vizinhos. Mas não se pode negar, tem bom gosto na sua seleção. Gosto especialmente das faixas instrumentais com Brubeck, Duke Welington, Armstrong e outros monstros do jazz. Não me incomoda, em absoluto. Aliás, dou graças a Deus por não ter na casa ao lado um apreciador do gênero sertanejo, como é o caso do casal dos fundos.

Nos finais de semana, porém, o panorama proporcionado por tais vizinhos é outro. A eterna faxineira descansa a vassoura e o espanador, bem como da lida do galinheiro. Ali pela seis da tarde da sexta-feira aparece toda empetecada, cabelo arrumado, salto alto, lindos vestidos em cores metálicas e brilhosas. Aparentemente vai a algum lugar de pompa e circunstância. Um clube de dança, ou algo assim. Mas o pequeno volume retangular escuro que leva a tiracolo me desperta suspeitas de que talvez seja uma bíblia. Sabe-se lá. Do alto de minha cadeira de rodas é impossível descobrir. Mas me deixa curioso, sem dúvida.

Após a saída da matriarca, o apreciador de jazz entra em cena, não tão aprontado como sua suposta mãe, mas vestido mais casualmente, de camiseta e shorts, às vezes apenas de cueca. Transita entre os andares sempre com um copo na mão, sem deixar de abastecê-lo a cada aparição. Não raramente recebe convidados, sendo o mais frequente desses uma moça que chega em moto-taxi. Esta, pelo visto, é a visitante preferida, pois costumeiramente atravessa a noite junto dele, escutando Glenn Miller, Ray Charles, Nat King Cole and others. Quando chega a vez de Chat Baker as luzes geralmente se apagam e isso me impede de dar notícias sobre o que mais acontece.

Não sei dizer, contudo, a que horas retorna à sua morada aquela dama de salto alto e vestido metálico. Certamente estou em pleno sono quando isso acontece.

Mas eu falava de dois apreciadores de música sertaneja. Sim, porque na casa dos fundos mora um casal. Não os vejo, aliás, nunca os vi, sendo o nosso território confrontante ocupado por uma sebe de bambus bem alta, plantada por mim mesmo alguns anos atrás, exatamente com a finalidade de me oferecer isolamento, pelo menos visual. Tudo bem com relação à visão, mas infelizmente sou obrigado a ouvi-los, não só em sua impressionante seleção de fulanos & beltranos, em seus trinados chorosos, a narrar amores perdidos e traições. Se fosse somente isso, tudo bem. Mas tem mais: brigam o tempo todo, em altos brados e em total variedade de impropérios, dirigidos não só a si mesmos, como a outras pessoas da família, a relacionamentos pretéritos e até a gerações passadas, pelo que deduzo.

Outro dia creio ter ouvido homem dizer algo como: um dia acabo com você – não sabendo exatamente o que “acabar” poderia significar. A mulher gritou de seu lado: pois acabe agora, se for homem. Seguiram-se, porém, alguns minutos de obsequioso silêncio, interrompidos pelas vozes de uma das tais duplas preferidas deles, gemendo em glorioso falsete é o amooooor…

Semana passada percebi que o homem tinha ficado sozinho em casa. Como soube disso? Eu os ouvi se despedindo, ora essa! E o sujeito ficou por ali fazendo telefonemas para Deus e todo o mundo, sempre em altos brados. E ouvi que ele chamava, a plenas onze horas da noite, uma tal de Roberta – que aparentemente negava a ele algo muito desejado. E eu o ouvia argumentar, quase choramingando: deixa disso meu bem, está tudo tranquilo aqui, ela foi para a casa da mãe, só volta semana que vem, estou esperando você… E por aí a fora.

De fato, ele tinha razão na sua conversa com Roberta. Depois de uma semana ela voltou. E não haviam se passado duas horas de sua chegada quando as brigas furiosas recomeçaram. E as rodadas sertanejas também.

Pois é, a vida não é nenhum filme. A comédia humana real é bem pior e nem se fazem enredos como os de antigamente. Só sei que não posso me queixar: este caldo ralo e reles de platitudes, paixões, baixarias e algum mistério que percebo através de minhas janelas deve ter me ajudado na formação do calo ósseo pelo qual minha tíbia tanto ansiava.

E melhor ainda, eu finalmente encontrei um tema para desenvolver neste meu querido Dell, que há tempos só andava em modo off.

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