Coisas entre o Céu e a Terra

Há mais coisas, Horácio, entre o céu e a terra, do que sonha nossa vã filosofia. Hamlet – Shakespeare (Ato I – Cena V)

Logo que viu aquele negro jovem e corpulento, com um tosco cartaz escrito a pincel atômico com seu nome, a esperá-lo na calçada do aeroporto, sentiu de imediato certa empatia pela figura. Em cada movimento seguinte viu confirmada suas impressões, nos votos de boas-vindas, na mala que lhe foi retirada pressurosamente das mãos, na indagação se havia feito boa viagem. Quando entrou no carro havia a sua disposição pastilhas de menta e água mineral, meio quente, mas sempre um agrado, pensou, mas que mais ainda lhe aumentou a simpatia pelo motorista, que o conduziria para uma viagem noite a dentro.

Estava ali para uma visita técnica à prefeitura do município, situado a quase 200 km daquela cidade polo, para onde o avião trouxera. Era bem acostumado com este tipo de viagem e as recepções que lhe faziam costumava ser variadas em termos de qualidade, mas aquela lhe parecia estar entre as mais calorosas que já experimentara.

E aquele motorista se esmerava. Ofereceu-lhe o lugar no banco de trás, que ele recusou. Insistiu que que ele aceitasse as pastilhas de Mentex e a água, além de indagar se ele gostaria de ouvir alguma música. O carro não era novo, mas rebrilhava de limpeza e bons odores. Mais do que isso, contudo, lhe tocou a habilidade que a figura tinha em praticar o que ele denominava de render assunto, aspecto pelo qual ele tinha especial simpatia e atenção em relação às pessoas com quem interagia.

E assim, conversa vai, conversa vem, descobriu que o sujeito era também baixista nas horas vagas, ganhando até um dinheirinho com isso (toco tudo, seu doutor, vou do rock ao sertanejo); que era separado da mulher, com a qual tinha dois filhos e que na prefeitura dirigia também caminhão, até de lixo, quando lhe determinavam isso. E de quebra, revelou que apreciava participar, também como músico, das manifestações de congado, que eram populares na terra.

Realmente, para uma viagem noite a dentro, na qual cumpria espantar o sono e o tédio, não haveria companhia melhor.

A certa altura Joaquim (mas pode me chamar de Quincas) lhe perguntou se já ouvira falar de um sitio arqueológico situado nas redondezas da cidade, onde supostamente se instalara um antigo quilombo, destruído em refregas sanguinolentas com as tropas do governo português da época. Não, ele nunca ouvira falar disso, mas bem que gostaria de conhecer. Então fale com o prefeito que o senhor quer ir lá, pois com certeza vão me encarregar de levá-lo, o que vou fazer com o maior prazer retorquiu o músico, motorista e folclorista, agora se autoproclamando também guia turístico.

Sugestão feita, sugestão aceita. Encerrados os dias de trabalho na cidade, de acordo com combinação antecipada, às sete da manhã Quincas já o esperava na porta do hotel, para irem ao quilombo, antes do retorno ao aeroporto. E naquela breve meia hora de viagem a conversa continuou a rolar, receptiva e cheia de espírito, como três dias antes na jornada noturna.

O tal sitio arqueológico era apenas um pedaço de cerrado, circundado, mal e mal, por um valo pouco profundo. O que o distinguia do resto da paisagem era uma vegetação um pouco mais densa, preservada, por algum motivo, das queimadas comuns por ali. Quincas cumpria com louvor seu papel de guia, explicando que aquilo estava abandonado, ou melhor ignorado, por todo mundo na região, até que o povo de uma universidade tinha vindo fazer os primeiros exames do local. Segundo ele, acharam apenas pedaços de cerâmica, alguns ossos de animais ou talvez humanos, além de pedaços de carvão, que eram examinados em aparelhos especiais que revelavam a idade daquilo. E deu mais de duzentos anos, imagine o senhor!

Quincas parecia muito entusiasmado de início, dizendo mesmo que para ele aquilo era como uma missão, uma maneira de reverenciar e honrar seus antepassados que viveram e lutaram naquele sítio. Mas aqui teve muito sofrimento, moço – por várias vezes repetiu.

Aos poucos, contudo, mudou seu estado de espírito. Como acontece aos negros quando empalidecem, sua pele foi tomando uma coloração cinzenta. E a loquacidade aos poucos foi se esgotando. No final apenas dizia ao visitante, também se repetindo: está escutando, doutor? O visitante não percebia nada mais do que o ruído do vento na folhagem, além de alguma cigarra ou pássaro próximo. E agora, o senhor ouviu?

Em certo momento o visitante notou, com certo susto, como Quincas havia se tornado mais taciturno e até mesmo seu cinzento foi se clareando. Achou que valia a pena encerrar o passeio.

Mas de repente ele próprio sentiu algo estranho dentro de si. Uma coisa difícil de descrever, algo de que ele tinha apenas uma vaga lembrança, que vinha de tempos remotos da infância. Uma sensação de vazio, um gosto estranho na garganta, uma espécie de vibração, uma delicada sensação na pele de todo o corpo, como se estivesse sendo tocado por uma nuvem ao mesmo tempo diáfana e penetrante. Lembrou-se que era algo assim que sentia quando tinha febre, principalmente acordar neste estado durante a noite, e que perdurava até que tomasse a novalgina trazida pela mãe. Nunca mais sentira aquilo, mas era algo bem semelhante, que agora o tocava com grande nitidez sensorial e de memória.

Quincas, mais cinzento do que nunca, ainda lhe disse: é assim, eles ficam cochichando sem parar, não entendo o que dizem, mas parece que não é coisa boa. Muito sofrimento por aí, seu moço…

E assim voltaram para a cidade e dali ao aeroporto, em viagem que transcorreu sem incidentes, com Quincas recuperando totalmente as cores e a bonomia. Na despedida, recusou com gentileza, mas também com firmeza, a nota de cem reais que o visitante lhe estendera. 

Seguiu-se a vida. Um ano depois, ou por aí, o consultor de prefeituras fez outra viagem de serviço, desta vez acompanhado da esposa, para assim aproveitarem os atrativos turísticos do lugar, uma cidade histórica, da época das ricas minas. Havia nas proximidades um roteiro conhecido como Caminho dos Escravos, que levava a outra cidade próxima, atravessando matas densas e morros íngremes, através de uma senda quase todo o tempo calçada de pedras mais ou menos planas, supostamente obra de escravizados. Um instrutivo e notável passeio na verdade, cabia perfazê-lo.

Em certo do ponto do trajeto, como já passava das quatro horas e a mulher se queixasse de cansaço, além de já revelar um certo temor com a noite se aproximando, ele se adiantou uma centena de metros, para explorar um pouco mais a calçada que se estendia mata a dentro. Parou numa clareira para sentir o ar fresco e perfumado do lugar e numa respirada mais profunda sentiu de novo a sensação que experimentara no passeio ao quilombo. Aquele mesmo vazio no peito, acompanhado de um gosto esquisito na garganta, uma vibração que parecia vir de fora, a lhe tocar a pele por todo o corpo. A ida ao quilombo era recente e ele teve a sensação de coisa já vista e agora repetida, um daqueles clássicos dejà-vu, com grande nitidez neste momento.

Mas não foi só isso. Em algum lugar da mata havia vozes, mas que agora não eram cochichos, mas bem audíveis. E diziam algo como ter dado a hora de se voltar para casa, eis que o dia de trabalho terminara, culminando isso com risadas e palavras de entusiasmo. Ele procurou voltar para junto da mulher, deixada sozinha alguns metros atrás e logo a alcançou, ficando por ali até que passassem por eles aqueles loquazes companheiros de caminhada.

Mas ninguém passou. As sensações que experimentara logo desapareceram. Depois de uma meia hora de espera, com a esposa já um tanto amedrontada pela escuridão que rapidamente se instalava, decidiu voltar, morro abaixo, contudo, sem revelar a ela as sensações estranhas, internas e auditivas, que acabara de experimentar.

De repente, lembrou-se de Quincas. Quem sabe ele lhe daria uma luz sobre aquilo? Ou talvez conseguisse captar por inteiro aquela conversa apenas fragmentada e distante. Lembrou-se também de algo que lera ou ouvira há tempos, já não se lembrava mais de que fonte ou em qual lugar: há mais coisas do que podemos imaginar entre o céu e a terra

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