Não foi um amor exemplar, mas o resto não interessa

Eu a vi pela primeira vez na cantina da faculdade onde eu iria cursar uma disciplina indispensável ao meu doutorado. Morena, alta, de cabelos longos e olhos profundos, possuía uma beleza misteriosa, meio mediterrânea, sei lá, talvez misturando, traços árabes e italianos. Descobri logo após que seria minha colega de classe e eu, curioso em saber mais sobre ela, pois que me encantaram aqueles olhos profundos, com poucos minutos de conversa descobri que era formada na área de Humanas, trabalhava em serviço público e estava ali, de retorno à faculdade em que se formara, para se aperfeiçoar e alcançar uma promoção, nada mais. Nada de carreira acadêmica, como eu. Na sequência, fiquei sabendo de sua origem interiorana, denunciada pela maneira como pronunciava os “r”, sendo também um tanto tímida e de conversação restrita ao essencial.

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Apenas mais uma história de amor

Era o primeiro dia de uma primeira semana de aulas na Faculdade de Medicina. Cumpria obedecer ao ritual estabelecido de que os novatos doassem sangue. Ele foi lá, espichar o braço, em conformidade com os trâmites, e percebeu, na maca ao lado, a figura de uma moça de cabelos longos e escorridos, óculos de míope, meio no estilo gatinho, com um narizinho levantado, que de outra forma lhe teria passado como defeito, por dar à criatura um jeito presunçoso. Naquele caso específico, definitivamente não. Ela também recém aprovada no vestibular, tal como ele, se viam pela primeira vez.

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Nós que amávamos a Revolução

Eram dois na noite escura. Esta era a primeira frase do livro que eu ia escrever. Na realidade, éramos dois que perambulávamos pelas ruas estreitas de nosso bairro de ruas calçadas em pedra, onde acordávamos todo dia com o apito da fábrica de tecidos, na nossa casa que pouco se distinguia da moradia dos operários, naquela cidade oprimida entre montanhas, em muitas noites escuras, que a singeleza das luminárias amareladas era incapaz de clarear. Passamos a ser três quando um primo de meu amigo se juntou a nós. Saíamos todas as noites, pela hora da novela, que então já “entorpecia as massas”, como rezava nossa cartilha militante, filosofando, tramando obras literárias, tentando equacionar o futuro da humanidade e, quem sabe um dia, participar da revolução no país.

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Visita ao Velho

Sim, era preciso visitá-lo. Ele, o Velho Tio, fazia parte de nossa vida, desde a mais remota infância. Da minha vida, mais do que da dele, meu irmão mais novo, que teve menos convivência com tal figura, para mim tão marcante. Ele morava longe, cumpria fazermos aquela viagem longa, que deveria ser premeditada, porém sem termos tempo para tanto.

Fizeram uma cachorrada comigo, era como ele explicava a origem dos acontecimentos que o derrubaram, sem apelação, na cama que poucas semanas depois o acolheu na morte. Falava da passagem atabalhoada do velho cão de fila da fazenda pela porta da cozinha, onde ele justamente tomava um café e acendia o cigarro de palha habitual nas manhãs. E sem mais se viu jogado ao chão, gerando um doloroso calombo na coxa, que ele mesmo, no ato, diagnosticou como uma fratura de cabeça do fêmur.

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E a Medicina, a que será que se destina?

Ao começar a escrever esta memória, lembrei-me de uma letra de música de autoria do grande Aldir Blanc, que aliás usei em meu convite de aniversário quando completei 50 anos idade, em 1998. Chama-se 50 anos – Bodas de Sangue e foi musicada pelo pianista Cristóvão Bastos, se não me engano. Dizia assim: Eu vim aqui prestar contas / De poucos acertos / De erros sem fim / Eu tropecei tanto as tontas / Que acabei chegando no fundo de mim / O filme da vida não quer despedida / E me indica: ache a saída. Posso até relativizar esta história de erros e acertos, tropeços, despedidas, sangue, prestação de contas. Não quero ser dramático. Mas de fato, aquilo que o também médico Aldir escreveu me leva a pensar no filme de minha vida, particularmente diante dos 50 anos que completei na prática de medicina – de uma determinada modalidade, mas sempre Medicina. Mas vamos lá.

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Triste (mas nem tanto) Horizonte

Drummond se indagava: “por que não vais a Belo Horizonte? a saudade cicia e continua, branda: Volta lá.” Sem maiores pretensões de querer me comparar com o poeta-maior, devo admitir que às vezes tal pergunta também me passa pela cabeça. Assim como ele, vivi um tempo na cidade e depois me mudei, para voltar ali apenas esporadicamente. Neste aspecto, contudo, levo por assim dizer uma vantagem sobre ele, que viveu lá, ao que me parece, no máximo uma década, quando eu ali passei os primeiros 22 anos de minha vida. E, ao contrário dele, volto lá no mínimo duas ou três vezes ao ano, sem me fazer de rogado, por ainda ter na cidade filha, netos, irmãos, sobrinhos, e principalmente uma mãe. De modo que não me seria coerente proferir como ele um carrancudo: Não. Não voltarei para ver o que não merece ser visto, o que merece ser esquecido, se revogado não pode ser. Confesso que às vezes me sinto assim, meio gauche com a cidade, portador de duas alegrias quando vou até lá: a de chegar e a de sair, não sei qual das duas a mais significativa. Mas não posso negar que ali passei anos bem felizes, mas não somente isso, foi nela que pude fazer toda minha formação escolar, profissional, intelectual, amorosa, espiritual. No meu caso particular, com efeito, não dá para esquecer aquela urbe provinciana saudável, de carnes leves pesseguíneas e para tanto, realmente, nem preciso me esforçar. Penso que um pouco de minha sintonia (não direi admiração e nem mesmo amor…) com Belo Horizonte pude trazer à luz em meu livro de memórias Vaga, lembrança (ver link) e resgato aqui alguns trechos que falam da minha relação com esta cidade, afinal, detentora de um horizonte que definitivamente não me traz tristeza e muito menos algum amor mal resolvido ou destroçado. Aqui vai…

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Três Marias

A primeira delas é personagem da minha infância. Convivi com ela pelo menos até os dez anos de idade. Era uma daquelas pobres garotas nascidas na roça, negra ainda por cima, que alguma pessoa da cidade, supostamente bondosa, ou caridosa, pegava “para criar”. Tal foi o caso dela, sobre o qual minha mãe, que via em tal atitude algo muito honroso para si, não se furtava a dizer algumas vezes: “sei que me dá muito trabalho criar uma menina que nem é da família, mas é o que posso fazer por gente tão pobre”. E por falar em trabalho, vale a pena lembrar a quem isso afetava de verdade. Ela acordava antes de nós todos, para preparar o Toddy matinal, passar margarina nas fatias de pão, fiscalizar a nossa escovação de dentes, nos aprontar para a escola ou nos deixar prontos para começar o dia com roupas trocadas, fraldas retiradas, boca limpa. Não era pouca coisa, éramos quatro na ocasião, com disposições e manias diferentes, que às vezes faziam com que tais operações matutinas adquirissem uma morosidade enorme, a desafiar a paciência de qualquer um. Mas não a dela, que o máximo que fazia contra nós era ameaçar contar tais novidades para nossa mãe, sem concretizar, todavia, tal disposição a maioria das vezes.

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Pavana para uma Princesa Morta

Ela nos chegou em um dia de abril, quase 10 anos atrás. Veio desconfiada, com o rabinho meio recolhido ao meio das patas, o olhar atento a tudo que ia em volta. A desconfiança durou pouco, entretanto. Quando percebeu a receptividade dos três humanos que a esperavam, um grande, que ela logo percebeu ser o Alfa e dois pequenos, menino e menina, relaxou e se entregou. Encontrando a porta do carro aberta, subiu no banco dianteiro imediatamente, como se ali fosse o lugar dela, desde sempre.

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Médico e diabético: um depoimento

Já reparei – e certamente os leitores também – que tem se tornado comum o gesto de se solicitar aos médicos que registrem as maneiras peculiares de como lidam com as doenças quando se tornam pacientes. Não deixa de ser uma coisa arriscada essa de abrir o jogo sobre nossos hábitos saudáveis (ou nem tanto). É sempre possível que nos denunciemos aos pacientes e estes percebam que somos muitas vezes bons para ensinar as pessoas a lidar com seu corpo, mas já nossas práticas pessoais costumam deixar a desejar, como, aliás, todo mundo sabe. Mas deixemos de prolegômenos e vamos lá.

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Para uma amiga que partiu

A nossa Maria Helena partiu. Deixou para mim muitas lembranças. Por exemplo e para começar: a amizade e verdadeira devoção que tive a uma figura verdadeiramente paterna para mim, Dr. José Garcia Brandão, seu pai. E também do que ele me dizia de sua filha, que morava em BH na época em que eu o conheci, anos setenta: você vai gostar dela; pensa as mesmas coisas que você…

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