Pavana para uma Princesa Morta

Ela nos chegou em um dia de abril, quase 10 anos atrás. Veio desconfiada, com o rabinho meio recolhido ao meio das patas, o olhar atento a tudo que ia em volta. A desconfiança durou pouco, entretanto. Quando percebeu a receptividade dos três humanos que a esperavam, um grande, que ela logo percebeu ser o Alfa e dois pequenos, menino e menina, relaxou e se entregou. Encontrando a porta do carro aberta, subiu no banco dianteiro imediatamente, como se ali fosse o lugar dela, desde sempre.

Por pouco não deixou a menina, dona do assento, entrar também e se acomodar. Mas logo parece ter refletido e cedeu generosamente o lugar, desde que se lhe permitissem acomodar bem juntinho à outra, humana verdadeira, não aspirante como ela.

Ali começava uma história de amor.

Chegando em casa, a preocupação dos acompanhantes, de que ela pudesse se estranhar com o cão mais velho da casa, logo foi, entretanto, dissipada. Cheiraram-se protocolarmente e deram início a um silencioso e discreto relacionamento, que durou enquanto tal morador sobreviveu, anos depois. Mostrou a todos, com isso, um traço peculiar de sua personalidade, de não querer confusão com ninguém, salvo com um ou outro ser de sua espécie, na rua, por motivos insondáveis. Mas isso sempre foi exceção.

Mas uma coisa era certa: ela sempre se deu melhor com humanos do que com outros seres de quatro patas, embora latisse com algum vigor para as vacas na fazenda vizinha, contudo sem levar tal gesto muito a sério, mais um protocolo genérico, poder-se-ia dizer.

Com os gatos, tidos como inimigos dos cães, todavia, seu relacionamento era distante, se não ausente. Parecia simplesmente não os enxergar quando apareciam nos passeios diários pela rua, sendo correspondida com a mesma invisibilidade e distanciamento por parte dos bichanos.

Com os humanos, teve um único entrevero, ao receber um entregador de gás, aplicando-lhe uma traiçoeira mordida na canela, felizmente aparada pela calça jeans que o mesmo usava. Foi perdoada imediatamente por ele e pelo Alfa, já que parecia ter calculado a mordida para servir apenas como advertência, não chegando a provocar ferimento ou mesmo um rasgo na calça do homem.

Recompondo tal história da mordida, uma parte do perdão lhe foi facultada quando se imaginou sua surpresa e susto ao deparar, a menos de meio metro do chão, aquele ser de duas patas dotado de terrível armadura cilíndrica e metálica à frente da barriga. Ela não sabia o que era aquilo, não havia visto nada igual e o certo é que aquilo conferia àquele representante da raça humana um aspecto que lhe pareceu muito ameaçador e digno de uma reação intempestiva.

Em um momento de mau humor atacou uma cadelinha no portão de casa, quando esta passeava com os donos, talvez por temer invasão de seu território. Era um mimoso e delicado poodle, que teve que ser levado ao hospital veterinário para fazer uma costura, causando preocupação a uns e prejuízo financeiro a outros. Em todo caso, o episódio ficou registrado não como prova de delito, mas pela sua ocorrência rara na vida da criatura.

Ela era sobretudo a companheira sempre feliz em estar junto ao Alfa, seu grande amigo de fé, nos habituais passeios matinais e noturnos que este fazia no bairro. Tinha a incrível capacidade de perceber suas intenções, já desde o momento que ele se vestia ou calçava o tênis que utilizava para tais andanças. Era o Alfa vestir a bermuda e ela já aparecia na porta do quarto para avisar que estava totalmente a postos. Aliás, sempre.

Disciplinada em boa parte de sua vida, não aparecia para mendigar migalhas nas horas das refeições da família. Mas isso mudou radicalmente quando certa dama protetora de animais apareceu no território. Mas quem não comete erros na vida? Sim, esta observação fica valendo para a dama caridosa e para a criatura, que não era de recusar comida.

Notável sensibilidade a sua. Não tinha autorização para subir nas camas da família, mas um dia, quando o Alfa chegou em casa doente, febril, procurando cama para se deitar, ela, de forma inédita até então escalou o móvel e foi se acomodar bem ao lado dele, coladinha a suas costas, como se fosse para confortar e acalentar aquele paciente tão importante para ela.

E assim se passaram os anos. Quando a família se mudou da vasta casa com espaços de sobra para ela se expandir, indo para um apartamento, a criatura imediatamente se adaptou às novas rotinas, que incluíam menos passeios e horários mais rígidos para as necessidades fisiológicas, como se isso fizesse parte de sua vida desde sempre.

No novo endereço, um apartamento de terceiro andar, adaptou-se com rapidez espantosa. Quando o Alfa descia com ela, mesmo que fosse tardiamente, ela cumpria com pontualidade a sequência das necessidades do corpo e até mesmo o lugar onde as depositava. Sistemática, poderíamos dizer. Deixou escapar urina no apartamento da família uma única vez, mesmo assim depois de longas horas sem descer ao local apropriado, cuidando, porém, de fazer sua pocinha diretamente no banheiro, ambiente que, já tinha percebido, os humanos usavam para tal finalidade.

Tinha gostos e preferências bem dela, sistemáticas como tudo que fazia. Pelas manhãs deitava-se na réstia de sol que cruzava a sala. Mais tarde recolhia-se a um canto debaixo da mesa de refeições. Em horas quentes o piso de cerâmica da cozinha era seu recanto predileto. Os passeios representavam para ela o ponto alto do dia e quando ouvia a simples palavra passear se punha imediatamente de prontidão, o que também acontecia ao escutar os sapatos do Alfa serem movidos no quarto ou mesmo calçados por ele. Depois que aprendeu a comer na mesa com os humanos, por artes daquela visita generosa, ao perceber o cheiro da comida ou mesmo o barulho dos pratos sendo trazidos à mesa, vinha logo se postar nos arredores, mas nunca invadindo o espaço dos outros seres presentes, pelo contrário, mantendo uma distância respeitosa das cadeiras e de seus pés no chão. E assim, jamais ultrapassava tal espaço auto imposto

Quando solta no território sua marcha em busca dos odores disponíveis, com as providenciais estacadas, configuraria, com perfeição, uma representação gráfica da palavra aleatoriedade. Aquele nariz era, de fato, o aparelho que a ligava diretamente a algum emérito antepassado caçador.

Mas tão bom aparelho nasal não lhe livrou de, um dia, catar no chão algum resto de alimento deteriorado ou quem sabe, envenenado. Começou com dores fortes na barriga e desarranjo intestinal, suportados com estoicismo e depois, durante 15 dias, foi levada a clínicas veterinárias sem que nelas se chegasse a um diagnóstico e tratamento adequados para seus males. Um dia, depois de uma semana de inapetência quase absoluta e de prostração profunda, levantou-se na pequena jaula onde estava hospedada no hospital de bichos, bebeu água à farta e comeu com certo vigor a ração regulamentar que lhe era oferecida. Deitou-se depois disso para um descanso e viveu assim, em paz, suas últimas horas.

Princesa, nossa Majestade, para nós todos você está viva. Sua presença representou a continuidade de outras existências que já povoaram nossas vidas. Você já viveu entre nós como Rank, Jujuba, Gizmo, Flika, Bustica 01 e Bustica 02, Bolt. Obrigado por ter cumprido tão bem a sua função de trazer alegria, amor e dedicação a este mundo tão áspero.

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