(Em memória de meu avô, Altivo Drummond de Andrade)
Em torno daquela mesa
ou então em uma outra,
de tênue matéria feita,
na etérea carpintaria
onde cola, pregos, táboas,
não são coisas de pegar,
ali te festejaríamos
e festa grande seria,
até maior que a outra
que todo o mundo conhece
pela voz de teu irmão.
Vê-nos todos? Somos tantos,
bem mais que antigamente.
A vida também é bem outra.
Algumas de tuas sementes,
mais sabes delas que nós,
pois te fazem compania
há muito, aí onde moras.
Os que ficamos, cuidamos
de honrar a tua herança,
da maneira que podemos,
às vezes meio canhestros.
Tu eras mil, sendo um,
no cortejo de teus netos,
podes te ver repetido
no porte de um, no jeito
antigo de ser deste outro,
na cabeça um pouco de lado,
e na calva renitente,
nas rugas da longa testa,
no corpo magro e avaro
e no seco modo da fala
(apenas nas aparências).
Como num caleidoscópio,
tu te vês em profusão,
multiplicado em tantos
filhos de filhos de filhos.
Na geometria do afeto,
não és reta, não és plano,
pareces mais a pirâmide,
que em nuvens tem a ponta
e a base em firme terreno
que tua mão bem lavrou.
Já são mais de trinta anos
que partiste. E no entanto,
continuas tão presente.
Entre nós ninguém buscou
profissão igual à tua,
salvo uma única excessão
(da qual te orgulharias).
Mas vêde bem, muitos são
os que buscam te imitar,
sem tanta arte e ciência
no trato com os pomares
e as coisas da natureza.
Vê-se que todos, um pouco,
herdaram de tua paixão
por flores, árvores e frutos
e o gosto inigualável
de brindar-se e aos amigos
com iguarias de quintal.
É assim que mais te guardamos
na memória dos sentidos,
mesmo os que não conviveram
com tua marcante presença.
Sem querer ser egoísta,
retorno ao bairro da Serra
e evoco uns fins de tarde,
sob o zinir das cigarras
e o borborejo do córrego
alí atrás do quintal.
Na grande cama abrigados,
primeiros netos queridos,
qual anjos em privilégio,
como a um convite divino
ao paraiso chamados,
logo virávamos donos
daquele pedaço de céu.
Deitado escutavas o rádio,
ao teu lado circunspectos,
te espiando de soslaio
mal contínhamos nossa ânsia,
logo, o volume abaixado,
um leve chiado de fundo,
sob a luz verde do dial,
entrávamos em outro mundo
de estórias, adivinhas, chistes,
as vezes apenas silêncio,
que quando se prolongava,
logo se tornava em sonho.
Então em ti recostados,
viajávamos, outras terras,
com tudo se sucedendo,
como já fosse esperado.
Despertos por um momento,
logo levados ao leito,
com o sono recomeçado,
num novo dia chegávamos,
e tudo se retomava,
contigo livres seguíamos,
pelo reino que era nosso,
irmãos anjos desgarrados,
sempre perdidos e achados
na imensidão do quintal.
Cem anos terias hoje,
grande festa te fazemos.
Muitos vieram, mesmo estes
que há tantos anos não víamos.
A mesa não é como aquela
que em outros tempos acolhia
vasta e ruidosa família.
Agora, muitos se foram
outros no mundo perderam
a si e ao sentimento
de pertencer a tal clã.
Respeitêmo-los, a vida
talvez lhes forneça razão.
Aqui não viemos julgar
bem outra é a nossa função.
São cem anos e esta data
não ocorre todo dia.
Mesmo sem toda a fartura,
a mesa ainda impressiona:
idades, gestos e ânimos
aqui vêm em tua honra.
Um pouco de tudo trazemos
gordo peru, temperado,
e leitoa bem crocante,
arroz com passas, castanhas,
boas frutas em compota,
preparadas por mãos hábeis,
a queca de receita inglesa,
obrigatório acepipe.
Não faltará boa graspa
a ser sorvida em dedal,
que mais não permitirias.
Alguém teima, não repares,
bebe mais que o razoável,
e logo se denuncia
por falas altas e gestos,
não tardará a dançar
abraçado com a garrafa.
Apenas sorrís, reconheces
o vulto de um velho amigo,
doutor de casos e gentes,
que também te comemora,
como em bons tempos passados.
E os filhos e netos, em roda,
a benção te querem tomar.
Dos mortos, pouco falamos
deles sabes mais que nós:
Clara, Virgílio, Zé Marcos,
Altivo, Marcos, Mateus,
privam tua compania,
a mesa é para eles também,
mas os vivos vêm na frente.
Este aqui, de te herdou
do mundo o sentimento,
como tu, povoou a terra
com muitos e muitos filhos,
um patriarca veraz.
Parece uma enciclopédia,
mas seus melhores verbetes,
são a poesia mais pura,
que conhece de memória.
Este outro é tal qual ver-te
se não no corpo, no gesto,
fez teu percurso ao contrário
envelhecendo no berço
da terra que o viu nascer.
Fazendeiro das idéias,
suas lavouras aéreas
fazem grande latifúndio.
Vês mais este, já grisalho,
senhor das coisas da vida,
perorando entre sobrinhos.
Quem o vê, nem desconfia
dos trabalhos que te deu.
Tu o acolhes, sorrindo,
afinal, não é a vida
um grande estorvo ela mesma,
que carregamos para sempre?
Perdoá-lo, é o que fazes,
sempre e mais uma vez,
e teu perdão nos tocando
nos faz, se não os melhores,
pelo menos bem mais leves,
absolvidos, e basta!
antes mesmo de pecar.
Vejo um lado feminino
aqui ela está, guardiã
de todos os sentimentos
mantido em nossos baús.
Na mesa o que se come,
é obra dela e só ela
de tudo seria capaz.
Mais faria – se desculpa –
não fosse a pouca prestança
do corpo um tanto rebelde,
passou-se o tempo, se vê,
e nada é já como antes.
E o cortejo das mulheres
mal se inicia – esta outra
não é mestra de comidas,
seu estro é de outro feitio,
com ele exerce o mister,
de tecer flores, pedrinhas,
com pequenos ramos secos.
E tudo assim se transforma,
com seus poderes de fada:
tua mesa de cem anos
vira vasto território
de sonhos e maravilhas.
Esta outra, te é bem cara,
caçula por algum tempo,
não perdeu contudo o estilo,
é o centro de toda atenção.
Cozinharia, se quisesse,
também enfeites faria,
mas prefere exercitar
o que é sua arte maior,
a boa conversa, a costura
entre tantas gerações.
Eis que chega, já bem tarde,
a filha que é quase neta.
Não vive aqui e a distância
não se mede com uma régua
ou instrumento afim.
Seu tempo é outro e muda
a noção que temos de espaço.
De longe vem, basta isso
– não cabe justificar –
eis que chega e é bem vinda
a rapa doce do tacho,
rara flor de tua velhice.
Foi ingrata a vida: partiste
sem ao menos vê-la moça,
e ir cumprir seu destino
de repetir em exílio
a saga de teu irmão.
Somos tantos ao teu redor,
todos queremos tocar-te,
és um só e te repartes,
por milagre de doçura.
Agora és dois, bem se vê,
que reduplica o afago,
carinhos, palavras doces.
Quem é que assim, de repente
aqui nesta mesa consegue
estar em todas as partes?
Vai e volta pressurosa,
leva bolo aos pequeninos,
atende a todas as fomes,
é vista aqui e acolá,
mais do que o corpo permite.
Então fitas, carinhoso,
o melhor de tua vida,
a companheira de décadas,
ninguém melhor do que ela,
para compartir tal momento.
Já é tarde e finda a festa,
teus pares já te convocam,
na outra morada de sonho.
Algo é tristeza e um frio
nos penetra o coração.
Cada um a si pergunta:
de novo se ensejaria
outro dia assim como este?
Uma certeza é visível,
a vida é bruta, sabemos,
mas ao redor desta mesa,
nesta festa de cem anos
do pai-avô patriarca,
se pôde achar o sentido,
mais uma vez confirmado,
que longa é a vida e segue
traçando uma linha imensa
através das gerações.
E mesmo teu tetraneto,
que gerado ainda não foi,
confirmará este fato.
E vos saudamos, Altivo,
Dodora, Carlos, Julieta,
também Francisco e Tereza,
nossos avós, nossos fios,
ligados com a eternidade.
Outubro, 1995.
DRUMMOND, falando de seu irmão ALTIVO: “Este outro aqui é doutor, / o bacharel da família,/ mas suas letras mais doutas, / são as escritas no sangue, / ou sobre a casca das árvores. / Sabe o nome da florzinha / e não esquece o da fruta / mais rara que se prepara / num casamento genético. / Mora nele a nostalgia, / citadino, do ar agreste, / e, camponês, do letrado. / Então vira patriarca”. CDA (A Mesa)
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