De papos e papudos

No tempo que havia papudos...
No tempo que havia papudos…

João Guimarães Rosa é autor que oferece inúmeras possibilidades de leitura. Até em matéria de doenças, médico que era. Em Grande Sertão: Veredas, por exemplo, existe todo um cortejo de entisicados, mofinos, leprosos, cegos e raquíticos, além de lunáticos. Um conto de Sagarana, que apresento aos leitores, traz uma interessante saga sertaneja, na qual a doença e a vingança da honra se misturam.

O personagem central é Turíbio Todo, nascido à beira do Borrachudo e seleiro de profissão. No começo desta história, adverte o autor, ele estava com a razão, pois encontrara a esposa, Dona Silvana, que tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta, no maior dos romances com o cidadão Cassiano Nunes, militar reformado, mas suficientemente destro em artes bélicas para infundir respeito e temor ao marido traído. Turíbio, em ímpeto vingativo, acaba por matar à socapa, mas por engano, o irmão de Cassiano. Aí começa a história, muito apropriadamente denominada de Duelo.

Mas a parte da estória que nos interessa agora é outra. Turíbio, além de seleiro, marido traído, sujeito vingativo e meio dado a vagabundagens era também papudo. Portador de um papo pequeno e discreto é bem verdade, mas cuja existência seria impossível negar. Sua descrição é um primor de observação clínica: …bilobado e pouco móvel – para cima, para baixo, para os lados – e não o escandaloso «papo de bola, quando anda, pede esmola». JGR ainda acrescenta:  ninguém nasce papudo ou arranja papo por gosto, e vai recorrer ao conhecimento vigente na época (década de 30), hoje superado, para justificá-lo como o resultado das tentativas que o grande percevejo do mato faz para se tornar um animal doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há também cúmplices, camaradas do barbeiro, cinco espécies, mais ou menos, de tatus.

E prossegue, falando de tal personagem, neste momento do conto mais importante do que seu próprio portador: … e tão modesto papúsculo, incapaz de tentar o bisturi de um operador, não enfeava seu proprietário; antes o fazia até simpático: forçado a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo elegante.

O papo de Turíbio Todo volta à cena em outros momentos do conto, agora dominado por uma frenética perseguição ao longo dos sertões de Minas, digna de um filme de Peckinpah. Cassiano, o desafeto do seleiro papudo, este sim, vai se revelar vítima autêntica do grande percevejo do mato, ao falecer em estado de congestão cardíaca, em pleno périplo de perseguição ao papudo. Mas nem por isso deixa de consumar a vingança pela morte do irmão… Para quem já conhece a história, seria supérfluo repeti-la. Para quem não a leu, é uma boa oportunidade de incentivar a tomada de contato com este monumento da literatura brasileira e universal que é Sagarana.

Para encerrar: onde foram parar os papudos destes brasis? Lembro-me bem da minha infância em Belo Horizonte, quando levas de papudos se reuniam nas escadarias das igrejas para esmolar. Que tempos aqueles, da carteirinha do INPS e da assistência pública, quando um mero bócio empurrava as pessoas à mendicância e à caridade da população! E ainda há quem deles tenha saudades… Neste assunto, aliás, nós sanitaristas temos do que nos gabar: os papos foram banidos e ficaram fora de moda neste país por força de medidas de pura saúde pública e não, pelo menos desta vez,  pela obra e pela graça de cirurgiões ou de endocrinologistas… Neste duelo fomos nós os vencedores: viva nós e viva a iodação do  sal de cozinha, medida que tem a genialidade das coisas obviamente simples!

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4 comentários sobre “De papos e papudos

  1. É isso aí – inversão total no cenário! Hoje, ao invés do PP (Partido dos Papudos) já poderia ser criado o MST (Movimento dos Sem Tireóide) graças não só à tireoidite de Hashimoto e doenças congêneres, como também ao câncer, cirurgias canhestras e outros problemas frequentes por aí. Obrigado pelo comment! P.

  2. Que delícia de ler! Que lembrança perfeita!
    Estou agora pegar meu velho e maravilhoso Sagarana !
    Parabéns .

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