Percorri, há algum tempo, o trajeto da chamada Estrada Real entre Itabira – Mariana e descobri coisas interessantes. Aliás, rigorosamente, andei mais um pouco: vim de Confins a Itabira por caminhos que ninguém faz, incluindo no trajeto a bucólica Jaboticatubas, que tem uma simpática igreja barroca e também o belo Mosteiro de Macaúbas, em Santa Luzia. Atravessei a Serra do Espinhaço via Taquaraçu de Minas, só então ganhando a estrada asfaltada, que todo mundo conhece (mas não sabe oque está perdendo!).
Em Itabira, na Casa de Drummond, travei contato pela primeira vez com uma doce e expressiva presença: a das meninas que hoje trabalham na impropriamente denominada “indústria” do turismo, acolhendo visitantes, prestando informações, guiando e mostrando aos interessados o patrimônio histórico e cultural do qual são também herdeiras.
Herdeiras, sim, embora se trate de uma herança recentemente adquirida. Eis que são moças de origem humilde, condição denunciada pelos gestos, pela fala e às vezes pelas vestimentas que usam. Nos seus novos postos de trabalho, porém, a humildade se transforma radicalmente, não em empáfia ou altivez, mas em orgulho e satisfação de fazer algo útil e de muita relevância social. É simplesmente maravilhoso ver o brilho nos olhos das meninas, ao recitarem um poema ou mostrarem os detalhes sutis de uma frisa barroca revelada pelo restauro, debaixo de onze camadas de caiação.
Na Casa de Drummond somos recebidos com um poema do antigo morador, dito com segurança e graça, sem afetação. Os muitos detalhes arquitetônicos do imóvel nos são revelados, bem como a localização dos quartos de cada membro da família, além de sermos apresentados a referências diversas da obra do Poeta sobre a própria casa ou seus moradores pretéritos. E as meninas se revezam nas tarefas, prazerosas, atenciosas, também interessadas nas histórias que os visitantes têm para contar. Sua marca registrada é a empatia com quem chega e o brilho no olhar.
Em Ipoema, nova surpresa, com a equipe que cuida do Museu do Tropeiro – excelente idéia, sem dúvida à frente de seu tempo – felizmente muito bem conservado e cuidado pelas moças que ali labutam. Primeiro elas nos deixam à vontade, se colocam à disposição, não insistem em nos informar de nada, a não ser que as requisitemos. Talvez já tenham recebido más respostas ou a indiferença de algum visitante menos sensível. Mas nos espreitam suavemente, a uma distância respeitosa, acabando por se aproximar ao nos ver interessados nos objetos e textos expostos na casa. Logo já ficamos amigos e já não se sabe quem pergunta e quem responde, é tudo uma interação só. E querem saber de onde e por que viemos, o que fazemos, se estamos gostando. Na voz a empatia já conhecida, no olhar o especial brilho das meninas morenas do Mato-Dentro. Ao sairmos, já nos sentimos como amigos de longa data – nós e asmeninas. A vontade que dá agora é de voltar ali muitas outras vezes, já não tanto para aprender sobre tropeiros, mas para compartilhar a alegria que elas possuem no viver e no fazer as coisas, ingrediente de que somos tão carentes.
E vamos em frente… Em Santa Bárbara, uma outra menina nos recebe na Matriz de Santo Antônio. É a réplica perfeita de suas colegas de Itabira e de Ipoema. Começa de modo pianíssimo, apenas se colocando ao dispor dos visitantes etc. Mas ao perceber nosso interesse pela belíssima Igreja não se contém. Nem uma pintura de Athayde seria capaz de revelar sua alegria, sua atenção e, mais uma vez, seu brilho no olhar.
Por falar em Santa Bárbara, as mudanças que correm por lá são animadoras. Um vasto quadrilátero central, onde se concentram os prédios barrocos, está sendo restaurado a partir, literalmente, das bases. O próprio piso de múltiplas camadas de asfalto e pedras está sendo removido para ser substituído por um novo calçamento de pedras planas, os fios estão sendo escondidos no solo, uma nova iluminação feita por luminárias em estilo antigo, afixadas nas paredes das casas, será colocada, dando brilho antigo à antiga cidade mineradora, portal do Mato-Dentro. Como estamos em época de eleições, a inauguração se dará antes de outubro, claro. Mas é de se esperar que o efeito eleitoral pare por aí e depois seja tudo bem público a ser conservado e respeitado, per omnia secula et secula, diferente do que prevaleceu até agora.
Em Mariana retorna mais uma vez a menina. Ela agora é recepcionista no Hotel Correia e representa uma versão mais expansiva, acostumada, talvez, ao contato com visitantes mais cosmopolitas. Quer saber por onde andamos, se é a primeira vez que estamos em sua terra, se gostamos do que já vimos. Pede desculpas pelo trânsito e pela confusão
do rush que transforma e subverte a outrora pacata sede da arquidiocese, agora grande centro minerador de ferro. Carrega nossas malas pela escada acima e nos mostra o quarto como se estivesse abrindo para nós a sua própria morada. Conversa animada sobre o frio, sobre o festival de inverno, sobre Zeca Baleiro, que cantará no dia seguinte na frente das igrejas gêmeas – insiste que fiquemos para vê-lo. Ao final, como esquecemos uma sacola de presentes na portaria do Hotel, se prontifica, por telefone, a levar o pacote à Rodoviária, mas antes mesmo de fazê-lo despacha a encomenda nas mãos de hóspedes que estão saindo e viajarão a BH dentro de alguns minutos. Melhor, impossível!
Ah, as meninas do Mato-Dentro! Para elas, até a bem poucos anos, restavam poucas opções de trabalho a não ser os ofícios de domésticas, babás, no máximo comerciarias. Agora trabalham com dignidade, compartilham e difundem a herança cultural de sua gente, demonstram orgulho pelo que fazem. No meio de tanta alienação da juventude, de tanta falta de perspectiva econômica e cultural, elas nos fazem acreditar que este país, ou pelo menos o Mato-Dentro, tem jeito. O brilho de seus olhos não mente!