Escrevi este texto no remoto ano de 2001. Se o faço circular hoje é porque vejo nele coisas que ainda estão no ar… Falta de criatividade, por exemplo, dos que constroem o SUS, em Brasília, nos estados e municípios, nas Academias…
Não tenho, com este texto, a mínima pretensão de me arvorar de observador distante e neutro do SUS. Fujo conscientemente de uma polêmica contumaz, a respeito da “visão de fora” versus a “visão de dentro” do sistema de saúde. Acredito que, em última análise é passar do tempo que mostrará quem tem razão, se é que não apenas fará destacar a importância de visões diferentes, não necessariamente antagônicas, mas complementares em seus aspectos conflituosos. Pois que o conflito, afinal, é parte da própria realidade sobre a qual se debruçam esses olhares.
Apesar das várias mudanças na política brasileira de saúde nos últimos anos, das quais a principal é a emissão do Pacto pela Saúde em 2006, eu afirmaria que as Normas Operacionais Básicas (NOB) dos anos 90, ou a Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS), dos primeiros anos deste século, são instrumentos comparáveis. Podem ter ênfases analíticas um pouco diferentes, mas sem dúvida pode-se afirmar que os processos desencadeados em 1991-1992, 1993 e 1996 tiveram antecedentes e contextos mais ou menos semelhantes para sua formulação e implementação. Com efeito, se a NOB 92 foi tipicamente um “produto de gabinete”, nas outras duas normas dos anos 90 a dimensão do “gabinete” apenas se ampliou. Levemos em consideração, contudo, que existem diferenças de contexto que devem ser destacadas, como, por exemplo, o governo Collor, seu momento imediato, dos dois governos FHC e, finalmente, os dois governos de Lula, com suas trocas sucessivas de ministros na saúde.
Destaque-se, também, alguns atores sociais que participaram ou influíram da formulação das normas, como foi o caso dos secretários municipais de saúde, em uma característica “ação de vanguardas”, tão cara ao ideário político das esquerdas. A adesão municipal, pelo menos no período inicial do SUS, foi, certamente mais intensiva do que aquela capitaneada pelo CONASS.
A verdade é que se pode falar de um “jeito NOB” de construir o SUS, que ainda se mantém, embora tal instrumento esteja ausente do cenário desde o final dos anos 90. A questão, aqui, não é a apenas a de retomar as discussões que alguns analistas vêm promovendo nos últimos anos, externando uma visão bastante crítica não só do processo de formulação e implementação, como também do próprio conteúdo das normas do Ministério da Saúde. Sem querer fazer uma síntese das contribuições dos autores, até porque são hoje muito numerosos, ou menos ainda, uma exegese crítica de seus textos, parto do pressuposto que as questões levantadas pelos mesmos são de grande procedência no panorama atual.
Cito exemplos: o SUS seria o mesmo sem as supostas “amarras” que a normatização “dura” do MS vem tecendo ao longo de sua história? Ou ainda, se o processo desejável de pactuação entre as esferas de governo não viria sendo tolhido por uma excessiva formalização e centralização capitaneadas pelo gestor federal ao se arvorar de legislador? Estes são alguns dos reptos que ainda permanecem no cenário, desde a década passada. De minha parte, pretendo acrescentar alguns outros, mais para ampliar a discussão do que para tentar resolvê-la de vez.
De início, minha preocupação é de não incidir naquilo que Umberto Eco denominou de “ucronia” (por analogia com “utopia”): a tentativa de se determinar como se daria determinado curso histórico, se algum evento ou fator se fizesse (ou não) presente, em dado momento. Por exemplo: não fossem as calmarias de março-abril de 1500, no Atlântico Sul, desviando a rota de Cabral, o que seria do Brasil como Nação? Belos exercícios literários podem surgir de tais elocubrações, mas nem sempre algo de prático.
Isso posto, chego finalmente às questões concretas. A primeira delas: um persistente “jeito NOB de fazer o SUS”, esculpindo-o a “golpes de portaria” (uso a palavra “golpe” aqui não em seu sentido truculento, como é comum no campo da política, mas apenas para representar a ação do escopro sobre a pedra, “retirando dela a escultura”, como dizia Michelangelo – ou teria sido Rodin?). Não seria mais uma evidência do formalismo brasileiro de querer forjar os fatos jurídicos antes que os fatos sociais estivessem construídos pela História?
Roberto Damatta trata disso com profundidade em seu livro Sete ensaios de antropologia brasileira. Ao “formalismo legal”, verdadeira compulsão normalizadora afim ao modo de ser brasílico, acrescento outro viés: o da crença avassaladora em uma verdadeira “utopia isonomista”, que é de tratar a realidade, por mais vária que ela seja, dentro dos limites das normas, de uma norma única. Ingenuidade? Compulsão formalizadora? Manifestação de centralismo exacerbado e malsuperado (ainda) pela nossa precária evolução do fazer político? Boas intenções, porém totalmente descoladas da realidade? Talvez um pouco de cada coisa…
Mas tentando avançar para além do “formalismo” e do “isonomismo”: o que significa afinal, ser gestor do SUS? É necessário, no mínimo, questionar se existem parâmetros suficientes para uma definição capaz de abranger a complexidade da realidade de um país onde, literalmente, cabe de tudo, justamente dentro de um campo de conhecimento e práticas, como o caso da saúde, no qual a complexidade é ainda mais exacerbada. Assim, nos termos dos fatos jurídicos atuais, tão valorizados no pensamento oficial, são gestores do SUS, em plenitude, a maioria dos secretários municipais de saúde, mesmo em localidades que mal possuem uma unidade ambulatorial própria.
E foi dentro de tal panorama que se optou, no passado, por um sistema de normas operacionais… “nacionais”. E no presente, mesmo com todo discurso de pactuação, tal modo de agir continua pujante. Desde o princípio a terminologia ficou bem clara: Norma! E como tal tinha de valer para todos, sem exceção, como é conveniente nos bons regimes democráticos. Mas também logo que se viu que não seria possível tanta rigidez, criando-se a regra de que onde houvesse consensos locais entre os gestores, a norma poderia ser atenuada ou até mudada. Alguém, dotado de uma visão mais formal, questionaria: “mas é norma ou não é norma”?
O resultado se conhece: cada um cumpre como puder ou até como quiser. Como existe sempre, entre nós, um grande espaço entre a intenção e o gesto (menor, talvez, do que aquele existente entre a Bélgica e a Índia que coexistem em nossa realidade, para retomar uma imagem da década de 1980), o que resultou foi certo laissez-faire consentido uma norma que não é norma, um pacto que não passa de declarações bem-intencionadas.
O problema do Brasil, além de sua variedade, é a sua assimetria social. As tentativas de fazer o sistema de saúde avançar através da normatização “dura” refletem bem este desafio. Até a nossa assimetria é assimétrica, com efeito. Nossos entes políticos são profundamente desiguais (ou mesmo deformados) desde o processo de sua criação. Essa assimetria se propaga para os recursos disponíveis, a infra-estrutura urbana, o contingente e a densidade populacional, a capacidade e a tradição administrativa, a cultura institucional etc. etc. e mais etc.
Um desdobramento de tal fenômeno é a prática da separação dos poderes, invenção bi-secular consagrada em toda civilização moderna e tida como uma das marcas de nossa evolução política. Quem já viajou pelo interior do Brasil sabe que em muitas cidades a Câmara de Vereadores ocupa o mesmo prédio da Prefeitura Municipal, o que, materialmente falando, significa que o detentor das chaves do Legislativo acaba sendo o prefeito. Se assimétricos são os Poderes, apenas formalmente separados, também assimétrica é a relação que se estabelece entre os governos estaduais e os governos municipais, para não falar da verdadeira promiscuidade que os parlamentares estaduais e federais mantêm com a coisa pública municipal.
Complicada e geradora de novas formas de assimetria ainda é a alternância dos períodos das administrações estaduais e municipais, colocando o país em um calendário eleitoral bienal totalmente sôfrego, criando o que chamaria de “efeito gangorra”, o gerar instabilidade e dependência política acentuada nos municípios. É dentro de tais cenários que as normas federais almejam colocar ordem na casa, para que seja implementado um sistema de saúde que resida, talvez, menos na realidade e mais nas boas intenções, nos corações e nas mentes dos que o querem implantar de vez, por “controle remoto”, fazendo das portarias o cinzel de suas projetadas esculturas.
“Democratização” tem sido uma palavra muito destacada quando se defende o processo normativo habitual o qual, justiça seja feita, passa por decisão tríplice já há muitos anos. Isso, há que se admitir, representa um ganho substancial permitido pelo processo de escultura do SUS. Mas, se as palavras têm “cor e plumagem” (como disse Guimarães Rosa), possuem também altíssima capacidade mimética, ao dissimular e dizer “des-dizendo”. O que existe debaixo das plumas coloridas da palavra democracia? Um bom exercício, sem dúvida, é tentar descobrir a textura da pele e a qualidade da carne de tal ave.
Sem negar o avanço obtido nos últimos anos, com a multiplicação dos atores que hoje discutem e decidem as questões da saúde, é preciso questionar o quanto ainda falta para “chegarmos lá”. Penso que a contribuição das normas, tal como as conhecemos, para uma real democratização da saúde, ainda está por ser demonstrada. Mesmo com os conselhos de saúde disseminados pelos quatro cantos do país, ampliando cada vez mais sua atuação de controle, algumas questões ainda precisam ser mais bem resolvidas, por exemplo: para além do formalismo a participação social tem sido efetivamente emancipadora? Os mecanismos não-conselhistas de participação (algo como a grass-roots democracy) têm avançado? A consciência sanitária da sociedade e a compreensão de direitos estão em alta? Pode-se separar o que é produto de um processo histórico (Era dos direitos, conforme Bobbio) da mera implantação de um conjunto de normas? E assim por diante…
A própria “transferência de poder” que supostamente teria sido assegurada pelo processo normativo em pauta mereceria ser questionada, não sendo recente a discussão de que a descentralização (muitas vezes sacralizada e transformada em autêntica panacéia) também criou seus feudos, seus anéis espúrios, seu formalismo gattopardiano, de fazer tudo mudar ficando tudo como está. O “feudalismo predatório” é uma realidade no Brasil, mas certamente tem dupla via, seja a dos mecanismos autoritários e clientelistas de exercício do poder pelas esferas centrais, seja a da postura dependente, isolacionista e parasitária do outro lado da linha.
A “mudança do modelo assistencial”, outro tópico geralmente associado às antigas NOB, teria ocorrido de fato? Sem querer negar que existe um processo de mudança em curso no país, creio que também aqui algum questionamento (e alguma relativização) merece ser feito. São inquestionáveis, pelo menos como discurso sempre presente, as referências positivas aos conceitos politicamente corretos de vigilância, promoção, responsabilização, vinculação, regionalização etc. É preciso saber, entretanto, se tal discurso vem realmente impregnando as práticas dos que o recebem, do outro lado da linha; e também verificar se não é o formalismo que mais uma vez impera e se as mudanças ocorridas chegam a ser substantivas.
Sem dúvida, a formulação das normas do MS pode ter contribuído expressivamente para uma incorporação de novas práticas no cenário da saúde, mesmo em caráter pontual, o que não deixa de ser positivo. Porém quanto às transformações mais sistêmicas e abrangentes da prestação de cuidados à saúde, penso que seria temerário atribuir apenas ao poder normativo federal o avanço ocorrido. Pelo menos em relação ao “todo” (o qual certamente, no sistema de saúde, nem de longe representa a soma das partes), a resposta é sem dúvida negativa. A dificuldade em associar de forma coerente e integrada a assistência individual e as ações coletivas no corpo das normas, mostra que ainda há grande percurso a fazer neste campo.
Em outras palavras, a velha dicotomia entre o INAMPS e o Ministério da Saúde nunca chegou a ser totalmente erradicada nem mesmo dentro daquela que se chamou de NOAS, na qual se resolveu assumir de vez que a mesma tinha essência apenas “assistencial”, abrindo mão da perspectiva de mais abrangência e integralidade.
A NOB de 1993, sem duvida, hoje é coisa de um passado remoto, embora haja quem a considere um instrumento de avanço no SUS, ainda hoje não superado. Contudo, como fui, no caso, mais do que observador, ator do processo, na condição de técnico e coordenador de área do MS, justamente aquela na qual desaguavam as demandas municipais na época, creio que posso me aventurar a tecer alguns comentários, que penso serem ainda pertinentes.
Em primeiro lugar, vivíamos a Era Itamar, com toda sua carga de civismo e de sentimento de que talvez um novo tempo pudesse finalmente chegar na saúde, depois do frustrado entusiasmo dos primeiros anos do governo Sarney e do desastre PC-Collorido. A nomeação, em setembro de 1992, para o Ministério da Saúde, de um ministro e de uma equipe de assessores vinculados ao ideário de esquerda, muitos deles de incontestável militância na Reforma Sanitária só fazia aumentar e tornar positivas as expectativas de todos. Acrescia-se a isto a indicação para postos-chave do MS de ex-secretários municipais de saúde, como foi o caso do antigo Departamento do SUS e posteriormente da própria SAS.
Havia, assim, um clima de mudança no ar e se houve frustrações posteriormente, tivemos pelo menos uma dúzia de meses de relativa euforia e esperança. Essa equipe não tardou, aliás, a mostrar a que veio, e já nos primeiros meses de sua atuação, ainda em 1992, havia transformado em rotina dentro das paredes do MS, ou na SAS pelo menos, as reuniões de caráter tripartite, muitas vezes “bipartite” na verdade, dada a presença mais assídua e marcante de secretários municipais e técnicos ligados ao CONASEMS do que daqueles da esfera estadual. O fato é que já nos primeiros meses de 1993 já havia um esboço de NOB em discussão e circulação entre os pares, ocorrendo sua edição, mediante portaria, antes de completar um ano da nova gestão federal da saúde.
A nova gestão, que tinha como titular o médico e político carioca Jamil Hadad, havia encontrado também, visivelmente, uma marcante paralisia decisória no Ministério da Saúde, como de resto em outros setores da administração federal, agravada nos estertores do governo Collor. O MS, após a saída de Alceni Guerra em janeiro de 1992, havia passado por uma gestão interina relâmpago de José Goldenberg, na qual naturalmente não houve avanços. A primeira gestão Jatene, entronizada em final de março, tampouco obteve grandes resultados, dado o clima de instabilidade do país e o descrédito do ministério, alvo de fortes suspeitas de corrupção durante o período anterior dentro do contexto geral do governo Collor. O ministro Adib Jatene mal teve tempo de “arrumar a casa”, como declarou em seu discurso de despedida, e já fora tragado pela onda anti-Collor, deixando o cargo em setembro.
Mesmo a IX Conferência Nacional de Saúde, realizada ainda em 1992, defendida e conduzida com ardor e coragem por Jatene, com notável participação municipal, foi mais um evento político a demonstrar a insatisfação do país. Não havia grandes propostas de avanço, a não ser a de “cumprir a lei”; mesmo que as houvesse a conjuntura era francamente desfavorável a qualquer implementação de inovações.
Naquele momento, a sensação de se ter alcançado o fundo do poço teve, sem dúvida, um papel importante na tessitura da ação dos novos gestores federais, que chegaram imbuídos da necessidade e da imperiosidade de uma ação transformadora. Contavam eles, além do mais, com um respeitável arco de forças políticas favoráveis à mudança na saúde no esquema de alianças do governo Itamar Franco, tendo também o fator positivo de se ter um presidente mais preocupado com a economia (e talvez com o resgate de sua imagem perante a sociedade) do que com os detalhes da gestão em saúde. Assim, os ventos corriam a favor das propostas de transformação, traduzidas pelas palavras de ordem daqueles tempos: “a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”.
Neste contexto é que foi criado, no início de 1993, o GED (Grupo Executivo de Descentralização), dentro do Ministério da Saúde, formalizando a prática tripartite já em vigor nos meses anteriores. O GED tinha em sua composição técnicos de várias áreas do MS (SAS, Planejamento), da FUNASA, da CEME, bem como representações do CONASS e do CONASEMS. Sua atribuição, inspirada na máxima é preciso continuar pedalando enquanto se conserta a bicicleta, era de discutir e aprofundar as questões ligadas à descentralização dos serviços de saúde, dentro de uma perspectiva intergestionária e operacional.
Curiosamente, o GED, capitaneado pela área de planejamento da Secretaria Executiva do MS, teve participação muito mais ativa dos atores externos, como foi o caso da representação municipal, do que dos setores internos do ministério, salvo o caso da SAS. No meu entendimento, a atuação do GED, embora curta (com a promulgação da NOB ele se viu praticamente desativado), teve enorme importância na geração de uma cultura de negociação tripartite dentro do Ministério da Saúde.
Cabe destacar, também, que todo o período de formulação e implementação da NOB 93 foi de tremendos conflitos e antagonismos, fora e dentro do MS. As dificuldades interpostas internamente não foram desprezíveis, embora naturalmente houvesse, para o público em geral, um discurso de adesão. Particularmente os setores ligados à estrutura tradicional do MS, tais como Auditoria, Finanças, Fundo Nacional de Saúde e outros, geralmente ocupados por funcionários de carreira egressos das antigas secretarias nacionais, bem como do INAMPS e da FUNASA, atuaram o tempo todo criando o que se chamaria hoje de “factóides”, seja levantando obstáculos normativos (dentro do espírito de que só se pode fazer o que está explicitado na lei, vedando qualquer incursão por terrenos em que ela se omite), seja ressuscitando tecnicalidades, sempre de forma a obstaculizar o processo de descentralização, principalmente nos repasses fundo a fundo, pagamentos dos fatores de incentivo e critérios de auditagem de recursos ditos “federais”.
Em outros setores do governo (Planejamento, Previdência Social e Secretaria de Orçamento e Finanças) o jogo não foi menos pesado. Em reuniões interministeriais para discutir a questão orçamentária da saúde ouvia-se, com freqüência, a argumentação por parte dos técnicos desses setores, devidamente apoiados pelos titulares, de que a solução para os problemas da saúde estaria na criação de barreiras financeiras para o usuário, distribuição de vauchers etc. Ou, ironizando um pouco: a saúde apontava a lua, os técnicos das outras áreas viam o dedo…
Um golpe fatal veio ainda em 1993, quando Antônio Britto, então ministro da Previdência Social cancelou sumariamente a transferência de recursos da contribuição sobre a folha de salários para a saúde. Como se não bastasse, em 1994 novo golpe: o secretário de Planejamento do governo federal, Beni Veras, declara o MS suspeito na gestão dos recursos que lhe eram alocados e abre uma Comissão de Avaliação interministerial, comandada por Raul Jungmann, secretário-executivo da pasta. Foi esse também, é bom lembrar, o tempo da reforma monetária, com a criação da URV e depois do Real, processos que acabaram por agravar os problemas financeiros da saúde, através de fórmulas de conversão muito questionadas na época.
O resultado concreto dessa seqüência de conflitos foi, na prática, a quase inviabilização da implementação da NOB 93, agravada pela lentidão na elaboração de instrumentos complementares, como foi o caso do decreto do repasse fundo a fundo e da lei do Sistema Nacional de Auditoria, entre outros.
Tudo isso ainda teve um outro agravante: a substituição intempestiva de Jamil Hadad por Henrique Santillo, portador de perfil mais conservador e acomodado, além de mais disposto a realizações de efeito político localista para seu estado ou de repercussão mais imediata, como foi o caso do incentivo ao PACS, criação do Programa de Saúde da Família, Programa de Interiorização do SUS, deixando quase intocadas as questões mais estruturais, como descentralização e financiamento. Numa coisa, porém Haddad e Santillo se equivaliam: eram ambos muito frágeis nos seus embates com a área econômica do governo.
Dado o grau de embaraço criado no caso das transferências e alocação de recursos, a contabilização de êxitos da NOB 93 neste campo foi realmente escassa. Mesmo o decreto que regulamentou as transferências fundo a fundo só produziu seus efeitos muito lentamente, além de ter sido assinado um tanto tardiamente (1994). A ação residual da antiga auditoria federal do INAMPS, tanto na ponta da linha como nos escalões centrais, foi muito eficaz em embargar os avanços que a NOB permitia, sempre permeada por um “discurso competente” formal e legalista, no qual estava muitas vezes explícita a idéia de que o SUS havia fracassado e que seria temerário aumentar o poder dos gestores subnacionais.
O que já chamei de “cultura tripartite” surge como real conquista desses tempos difíceis, talvez a maior daquelas alcançadas pela vigência da NOB 93. Assim, os problemas e o atraso na implementação desta norma não precisam ser propriamente “perdoados”, mas compreendidos à luz das contingências do tumultuado período 1992-1994. Tempo de turbilhões, mas sem dúvida de muito criatividade. O futuro o confirmou.
O “jeito NOB” de construir o SUS estaria superado?
Sem cair em exercícios pouco produtivos de “ucronia”, a resposta a tal questão talvez ainda demore a surgir. O verso de Machado, a respeito do camiño (que) se hace al camiñar, embora um tanto surrado, continua perfeito para descrever a trajetória do SUS em seus anos de decolagem, que ainda estão em curso. É bom lembrar, todavia, que a experiência internacional de reformas na saúde mostra sobejamente o caráter de processo de que estão imbuídas tais transformações, não sendo compreendidas inteiramente nas análises de curto prazo.
A construção do SUS é sem dúvida rica em mudanças, mas também em conflitos. Uma linearidade na ação, mesmo que provisória, raramente foi obtida até agora nessa história. Talvez normatização federal tenha sido justificável, quando analisada do ponto de vista dos contextos históricos que a gerou e lhe deram suporte. O próprio fato de terem as normas, muitas vezes, vida curta, mostra que, pelo menos, não existe qualquer tendência a cristalizar os erros e os obstáculos. Mas cabe também a pergunta de que se o sistema de saúde, na medida em que vai sendo consolidado e amadurecido, não haverá de requerer regras mais assentadas e de consenso geral?
O senso comum de muitos que militam no SUS, seja como dirigentes, técnicos, conselheiros e estudiosos já aspira, certamente, à maior permanência e solidez no panorama normativo. É fácil constatar, aliás, marcante desencanto com as mudanças freqüentes e o que é pior, com a densidade e a complexidade dos dispositivos das normas.
E por falar em complexidade e densidade, não se pode deixar de destacar o fato negativo de que as normas ministeriais têm se constituído, a cada emissão, em autênticos alfarrábios cifrados, de compreensão cada vez mais dificultosa ao saber profano. Mesmo pessoas experimentadas nas áreas jurídica e administrativa, egressas de outros setores, manifestam-se por vezes surpresas e até confusas com o grau de obscuridade e de detalhismo com que tais peças são apresentadas ao público. O que não dizer dos humildes secretários, técnicos e conselheiros da saúde perdidos nos rincões deste Brasil, sem outro acesso às informações que não seja os textos hard-core publicados nos diários oficiais ou reproduzidos tout court?
Pode-se até se suspeitar que uma autêntica “indústria de interpretações”, sediada nos já notórios birôs de contabilidade e processamento de dados que proliferam pelo país a fora, já esteja faturando com tanta novidade no mercado. Nesta questão, uma boa dose de “agir comunicativo” seria extremamente desejável, traduzida em meios adequados de difusão e discussão das informações disponíveis. No meu entendimento, contudo, os meios atualmente disponíveis ainda são muito tímidos e pouco coerentes.
Com efeito, não basta apenas ter boas normas (assumindo que de fato elas sejam boas…). É preciso também dispor de processos de divulgação, de persuasão e de construção permanente de consensos. Constato que ainda estamos longe disso.
Vamos construir o SUS sem normas federais ou quaisquer outras? A resposta continua sendo difícil… Abandonar tal via, já consolidada pelos seus muitos anos de prática definitivamente não vem a ser a melhor solução. Talvez seja melhor insistir em dois aspectos fundamentais, ao invés de tentar resolver os dilemas, como quem resolve uma equação.
Em primeiro lugar: melhor não seria conduzir a política de forma mais modesta e realista, mediante pactos ou quem sabe, em certas circunstâncias, até mesmo declarações de intenções mais pontuais? A proposta de uma Agenda Nacional de Saúde poderia se consolidar como processo de entendimento e negociação amplo entre gestores nacionais em torno de metas e objetivos comuns, constituindo-se como boa estratégia para orientar o processo normativo no futuro. Nesse aspecto o maior fortalecimento das comissões intergestores é essencial, de forma a se instalar um processo de negociação que seja fundamentado, ao mesmo tempo, em normas (leves) e jurisprudências firmadas, com as últimas assumindo gradativamente maior importância.
Em segundo lugar, concentrar e manter a atenção nos processos criativos fundamentados na negociação que sempre existiram no seio das práticas locais seja entre os gestores da mesma esfera, de esferas diferentes, entre setores diferentes, envolvendo Estado e sociedade etc. Registrar, documentar, difundir as inovações resultantes desse grass-roots management pode ser um ingrediente que ainda falta ao SUS, construído como tem sido de forma piramidal, totalizadora, construtivista, isonomista, formalista e até mesmo, em algumas circunstâncias, “imperial”.
Concluindo, se existiu e ainda existe um “jeito NOB” de construir o SUS, ou de “esculpi-lo a golpes de portaria”, da mesma forma que existe (devendo também ser superado) o “jeito burocrático” de construir as instituições modernas, é hora de começar a pensar em um “jeito pós-NOB”, pós-burocrático, criativo e dinâmico, ao invés de apenas gastar energias com portarias que se repetem e que se sucederão ad infinitum. É tarefa para todos buscar essa criatividade e sair das amarras que pertencem mais a uma maneira, entre outras, de pensar e de ver o mundo, do que propriamente a uma fatalidade imposta pelas estruturas políticas e institucionais.
Afinal, o que se viu até agora pode ser apenas a parte, não o todo; a contingência e não a essência do processo de escultura do SUS. Como diz Domenico de Masi: a diferença entre o criativo e o burocrata é que este último erra pouco, mas aquele, quando acerta, muda o panorama das instituições. Criatividade, já! Por um SUS fundado em pactos, em jurisprudência descentralizada e em negociação entre gestores, com menos normatização rígida burocrática e complicada no futuro!