Meu Tio, o Heraldo-etê

HERALDOTodos têm tios. Jacques Tati tinha o dele, Tchekov curtia seu Tio Vanya; Guimarães Rosa imortalizou certo Tio Iauaretê.

Mas o meu – ou melhor, o nosso (divido a honra com vocês) – modéstia a parte, é melhor e diferente desses todos. Um tio como poucos…

Meu Tio, o Heraldo, o único – o dos Santos e dos Andrade…

Para dar conta da multidão que nele habita, me aventuro nos dicionários… Vejo que ele pode ser o oficial que na Idade Média tinha a seu encargo transmitir mensagens importantes, além de organizar as festas de cavalaria e cuidar dos registros da nobreza. Ah, sim, é um nome masculino de origem germânico, significando o mesmo que “Rei de Armas”. Como sinônimo, poderia ser simplesmente mensageiro, pessoa que leva uma mensagem, ou aquele que anuncia algo que ainda vai acontecer.

Fico também sabendo que nas cortes da Idade Média, o Heraldo (Araut em francês e Herald em inglês e alemão) era aquele cavaleiro habilitado a transmitir mensagens de importância e comandar as grandes cerimônias, além de (nas horas vagas, possivelmente) exercer cargo e ofício de conhecer e ordenar os brasões das famílias nobres.

Um Heraldo não pode ser pouca coisa, realmente… De onde provém seu nome? Pode ser que seja do alemão herald, que equivale a soldado veterano, aquele condecorado e festejado depois de muitos anos de serviço, com enorme experiência acumulada com o trato das armas, o que o fazia especialmente solicitado nas cortes, daí derivando a ciência chamada heráldica, embora com outros propósitos atualmente. Já outros querem que o nome seja derivado não do alemão, diretamente, mas do latim, heros, daí derivando herói, heroísmo, heróico… Há também uma acepção correlata, em que um Heraldo (agora com maiúscula) equivale a senhor e cavaleiro armado.

Acho que podemos dar a pesquisa por finda, pois estes caminhos de armas, cavalos, guerras, tropelias, brasões, ambientes cortesãos, militarismo etc não nos conduzirão, definitivamente, ao Heraldo que conhecemos…

Falo, então, de como o vejo. Em 1995, nos seu 70 anos e 100 de seu pai e meu avô Altivo, escrevi sobre ele, em poema dedicado a meu avô: “Este outro é tal qual ver-te / se não no corpo, no gesto, / fez teu percurso ao contrário / envelhecendo no berço / da terra que o viu nascer. / Fazendeiro das idéias, / suas lavouras aéreas / fazem grande latifúndio”.

Heraldo, das histórias tantas. Por exemplo, aquela que me foi contada por José Marcos, o irmão precocemente falecido. Dizia ele que, estando em Nova Era, onde na ocasião residia o nosso personagem, recebeu dele, emprestada, uma mula para facilitar sua locomoção pelas ruas da cidade. Ótima montaria, mansa e educada, de bom trote. Só tinha um problema, parava a toda hora nas ruas, bastava que alguém a pé ou montado viesse na direção contrária. Era, então, uma besta empacadeira?  Nada disso! Apenas, em sua rara inteligência muar, agia conforme os hábitos de seu ginete habitual, que dedicava um dedo de prosa para todos que passavam – e que conhecia todo mundo em Nova Era… Assim, a missão montada que deveria durar no máximo uma hora, demorava três vezes mais para se concretizar.

Esta é minha… Cerca de 1997 ou 98 fui matar saudades dele, em Itabira, junto com Maurício, meu filho. Peguei meu carro e rumei para lá; com muito custo o encontrei, apesar de ter combinado a ida, pois não estava nos altos do Campestre e sim em novo endereço, numa barafunda de ruas, pra lá da Estação Ferroviária. Me impressionou o cômodo modesto que lhe servia de escritório, cozinha e, suspeito, também de moradia, ás vezes. Tudo isso dentro de um terreno de uma serraria desativada. Coisas dele… No tal quartinho, me mostrou uma pasta cheia de escritos, poemas, crônicas, textos filosóficos, utopias – coisas assim, a amostra foi rápida, não deu para identificar o teor. De repente me deu um daqueles papéis (que procuro agora e não encontro…). Nele estava escrito um poema, sobre terras compradas por ele, defendidas com muito orgulho e tenacidade, até que, na segunda parte, na finalização, conclui: “a terra não era minha, era da onça”. Texto forte e sensível, de fazer orgulhosos os numerosos ecologistas da família.

Era bom de conselhos, também. Certa vez me disse que se um dia em comprasse terras, devia preferir aquelas que estivessem em mãos de herdeiros, melhor ainda se brigados entre si. “É só ter paciência, se você souber esperar, vai comprar por menos da metade do preço, negociando com cada um”. Bom, pelo menos aprendi duas virtudes que nele eram abundantes como em ninguém: paciência e habilidade para conversar, negociar e, acima de tudo – e nisso ele atinge a perfeição – fazer amigos.

Tia Angelita certa vez me contou outra. Como ele se hospedava na casa dela, quando ainda vivia em Itabira, já em anos mais recentes, um dia resolveu usar suas prerrogativas de irmã e lhe deu uma bronca pelo fato de viajar entre Itabira e BH levando seus pertences em uma reles sacolinha de supermercado. E ato contínuo lhe presenteou com algo bem melhor e mais digno de respeito. Não adiantou nada… Eis que na seguinte vinda dele, aparece trazendo nas mãos outra sacolinha. Imaginem a cena… Justifica-se ele: “que nada, assim é melhor, tem muito ladrão por aí; assim passo mais desapercebido”.

Uma imagem dele me marcou profundamente. Na viagem já citada a Itabira, fomos dar uma volta por lá, à antiga Fazenda Pontal (agora um “vale sinistro”) e a uma propriedade dele, no município, onde havia uma bela cachoeira que lhe tinha despertado a idéia de ali construir um “clube da família”. E viajou nisso, durante longo tempo. Já voltando para a madeireira extinta, em seu Fusca renitente, ao cair da tarde, eu apressado para pegar meu carro e enfrentar a BR 381 na volta para BH, noto que ele praticamente não mais acelerava o carrinho, antes o deixava descer livremente as eventuais ladeiras e depois, tal qual a mula de Nova Era, simplesmente deixava o mesmo estacar, sem mais nem por quê… Eu, com a pressa que estava, confesso que cheguei a ficar um pouco impaciente. Mas logo vi o que o movia (ou melhor, o que NÃO o movia…): a vontade de estender minha companhia e a de Maurício por mais tempo. Voltei já com a noite fechada e não me arrependi.

Assim é este sujeito que hoje homenageamos: meio fazendeiro, meio poeta; muito Andrade, mas Drummond na medida; do ar e da terra; um tanto de monge zen, outro tanto de empresário; um contador de histórias que conta o que viveu, mas se por acaso vier a inventar, fará dessas histórias algo ainda mais acreditável; homem portador das armas da palavra fácil e abridora de caminhos; cavaleiro de mulas que não sabem o que é pressa e param a cada esquina.

E isso tudo sem esquecer uma porção romântica e ousada que certamente ainda vive nele. A do jovem elegante e bem querido na BH dos anos 40 e 50, que não titubeia em organizar uma fuga rocambolesca, junto com seu Amor, a bordo de uma perua Peugeot cinqüenta e um, pelas malévolas estradas do Brasil, até dar em terras paraguaias!

Meu Tio, o Heraldo-etê! Viva ele!

Com um forte abraço de seu Sobrinho, FLAVIO

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