Causo

 

CAIPIRA“Seus seis e mais seis … É truco, safado!”

A última partida da noite terminara. Estavam alí desde a seis da tarde e já era quase madrugada. Hora de ir embora, uns trabalhavam no dia seguinte e outros tinham mulher brava a esperar em casa. Porém, faltava algo  para completar a noitada.

Os olhares convergiram para Nhô Bom, enrolando seu cigarrinho de palha em um canto. Êle percebera, mas fingia que não era consigo: “Boa noite, moçada, vou saindo, que amanhã tenho coisas…” Ramiro não deixou por menos: “Sem contar um causo não vai embora, não”. “Que nada” – o outro disse – “vocês já estão cansados de minhas histórias, e além do mais, já tem até galo cantando.”  Os companheiros insistiam, “conta, conta, um só!”

Nhô Bom pigarreou e resmungou “vocês não prestam, acabam forçando a Zefinha me proibir de sair”. Zefinha, a patroa, na verdade era a figura de mulher mais mansa que poderia haver. Pelo menos nas aparências.

“Bão, se é para agradar os amigos, lá vai. Acho que ainda não contei esta… Certo dia, quando morava lá no Pontal, chamei uns amigos e saímos para pescar umas traíras. Tinha ali por perto uma lagoa funda, de nome “do Burzigo”, onde quase ninguém chegava e o peixe era farto.  Zefinha, como vocês sabem, sempre ficou contrariada com este negócio de truco, festa, companheirada e para uma pescaria como aquela, não punha serventia nem em procurar minhas botinas, quanto mais em preparar uma matula. Como não tinha mesmo outro jeito, eu mesmo fui para a cozinha e ajeitei, mal e mal, um feijãozinho com farinha, maldizendo a falta de uma linguicinha e outros enfeites para que aquilo virasse um feijão-tropeiro de respeito. Botei a comida num caldeirãozinho, providenciei uma boa de uma pinga e seguimos em frente, enquanto ainda estava dia. No alto do barranco que rodeava a lagoa do Burzigo, deixamos nossas coisas, agasalhos, o barrilete da pinga, caixas de anzóis e o lampeão Coleman, que ficou aceso para ajudar a achar os nossos trens, na volta, que  seria já na escuridão. Aquela noite, porém, não estava prestando para pescarias.

Era um mês de maio – prosseguiu Nhô Bom – e um friozinho começava a entrar até na alma da gente. Logo, logo, o Anídio, que não tinha perseverança nenhuma, resolveu subir o barranco para tomar uma pinga e comer qualquer coisa. Mas voltou daí a pouco, porque ele esperava que algum outro companheiro viesse junto, o que não aconteceu. O Anídio era muito medroso e tinha ojeriza de ficar sozinho. Passado algum tempo, foi a vez do Genéis, que tinha ficado com todos os seus anzóis engastalhados, e já estava nervoso como êle só. Volta o Genéis em pouco tempo, mais calmo, com os anzóis trocados, comentando: “Este meu compadre Nhô Bom é bom mesmo na cozinha… Êta feijãozinho tropeiro supimpa! Nem a comadre  das Dores é capaz de fazer um igual. E que torresminho mais gostoso de mastigar, croc, croc, croc.” Aí eu achei gozado, porque lá em casa não tinha nem um maldito de um torresminho para colocar no feijão, o mais que consegui foi um ovinho, que sobrava solteiro em cima do guarda-comida. “Eta compadre Genéis, você quer é me agradar, este foi o   pior  feijão  que  já fiz. Não tinha nem nenhuma mistura em  casa…” Meu compadre mostrou surpresa, mas falou de brincadeira que, quem sabe, tinha havido um milagre no feijão, e o torresmo apareceu, trazido por um anjo, que desceu do céu para nos presentear, pelo muito que a gente merecía.

Nós ainda ficamos ali de parolagem atoa  mais uma meia hora e então resolvemos todos voltar prá casa, porque a noite estava das mais frias e de peixe, que é bom, nem sinal. Quando chegamos ao alto do barranco, o Coleman já havia se apagado, pois eu tinha me esquecido de colocar mais querosene. Como nesta hora eu também já estava com fome, fui provar do feijão. Meti a mão no caldeirão, que tinha sido largado aberto – vocês sabem, homem nunca que cuida das coisas direito – e comecei a mastigar a massa de feijão e farinha, com muita má vontade por sinal. Mas… Não é que o Genéis tinha razão! O feijão tinha como que criado torresmo! Mastiguei mais um punhado, saborosamente. Mas logo comecei a perceber que aquele torresmo tinha barulho de torresmo, tamanho de torresmo, mas o gosto…, bem o gosto não era de torresmo verdadeiro. Anídio já tinha acendido uma lamparina, que eu pedi emprestado para esclarecer aquele mistério. Foi aí que vimos o que era aquilo, de verdade: uma praga de besourinhos, atraída pela forte luz do Coleman, tinha baixado na panela  de feijão, deixada aberta pelo infeliz do Anídio. O Genéis logo ficou nervoso de novo, danou de xingar o Anídio pelo descuido e já metia o dedo na goela para vomitar aquela porcaria. Eu não me importei, porque já comi muita farofa de bunda de içà e acho que estes bichos são tudo a mesma coisa…

Agora, se os amigos me permitem,  muito boa noite pra todos, que eu vou s´embora para enfrentar o rolo de macarrão da Dona Zéfa”.

 

 

25/03/94

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