Morre uma criança, nada poderia ser tão terrível. Pior, de forma violenta, por afogamento. E se algo ainda pudesse piorar o drama, morre ao tentar fugir, junto com sua família, do inferno em sua terra natal, a Síria, em busca de uma nova vida na Europa, que por sua vez não lhes favorece abrigo. Assim é o mundo de hoje.
De quem seria a culpa? Da bestialidade, da intolerância, do preconceito, do individualismo, da maldade que parece fazer parte cada vez mais pulsante da natureza humana.
Culpar os Carontes clandestinos é fácil e realmente nada os livrará da nossa revolta e repugnância.
Mas como tudo nessa vida – que mais parece uma cebola com suas múltiplas cascas – é preciso buscar a verdade mais no âmago das meras aparências.
A família Kurdi, como se sabe, fugia de uma guerra… A Síria é um país convulso, onde grandes e médias potências se digladiam sem botar os pés no chão do deserto. Ali só se veem prepostos. Do lado de Al Assad os iranianos e uma vez no passado os próprios ocidentais (USA e UK). Do lado do Estado Islâmico os sauditas e outros árabes.
Desta vez, porém, não dá para colocar a culpa no imperialismo, pelo menos o clássico imperialismo branco e cristão…
A briga na Síria é entre islâmicos…
Aliás, se computarmos todas as mortes no Oriente Médio nos últimos 10 ou 20 anos (talvez mais), excetuando as vítimas dos bombardeios israelenses em Gaza e na Cisjordânia, o resumo é um só: são árabes matando outros árabes, ou, pelo menos, islâmicos matando islâmicos.
Alguém duvida?
Que não se isente de culpa, porém, a Europa branca, cristã e rançosa. Os europeus se acovardam, manipulados, muitos deles por governos de perfil conservador. De repente, é da vilã da vez, a Alemanha de Merkel, que surgem sinais mais alentadores de solidariedade e compaixão. O mundo anda difícil de se compreender… Já na Hungria, paira a sombra do nazismo… Será que os magiares pensar assim: que se danem estes estrangeiros que vêm disputar, não nossas vagas de trabalho já tão escassas, mas apenas as vagas em nossos trens que partem para a Áustria?
Dante teria imaginado uma instância em seu Inferno semelhante a esta que se vê hoje na Europa?
E empurra daqui, refuga dali e se cala mais adiante, o pobre menino Aylan conheceu a morte horrível, por afogamento, na mais tradicional porta da Europa, a costa turca, de históricos significados.
Morreu Aylan afogado, mas antes disso já havia morrido expulso, rejeitado, renegado, exilado. Não basta tê-lo assassinado uma vez, única; o suprassumo do horror exige sua morte múltipla, reproduzida e repercutida nos quatro cantos do Mundo.
Enquanto isso, a barbárie prossegue nos bombardeios de Al Assad, nas decapitações cometidas pelos bandidos jihadistas, no fluxo de dinheiro vindo de Riad e Teerã, na guerra cirúrgica de Obama e Cameron.
E a cada tiro morre mais um Aylan, mais uma família Kurdi, mais um pedaço de nossa humanidade…
Se há alguma racionalidade em tudo isso, deve-se dizer que, mais do que uma xenofobia europeia, talvez o que vigore, de fato, é a islamofobia. Fossem esses expatriados orientais budistas ou cristãos balcânicos a Europa reagiria mais brandamente. Neste ponto, quem sabe, o medo europeu tem raízes fincadas na razão. De fato, pode ser perturbador para um europeu médio um cenário futuro em que se vê uma profusão de minaretes no horizonte das cidades e a assunção de um modo de vida que mistura religião e estado, que trata os que pensam diferente de “infiéis”, que não aceita os direitos das mulheres, que quer impor seus costumes tribais e que, acima de tudo, em nenhum de seus redutos, seja no Oriente Médio, na Ásia ou na África, mostrou-se capaz de promover alguma forma de bem estar social, de estabilidade política, de tolerância com o que é diferente e de realizar a democracia.
Concluindo: na base de tudo, mais uma vez, está o problema chamado Islã… Espero que não venha nenhuma fatwa contra mim.
Minha, sábia, mãe, diz que, tudo isso é sinal dos ‘fins dos tempos’. Espero que ela esteja com razão, até porque, vale a pena convivermos com toda essa beligerância????
Obrigado por seu comentário, Ildecer. Mas acho que ainda não seria o final dos tempos, apenas mais uma manifestação do que Nietzsche já chamou do “humano, demasiadamente humano”. Engana-se quem pensa que o ser humano é “naturalmente” bom…