
Reginaldo Hollanda, meu médico, médico de médicos e de muita gente mais, me pede um texto para esta página. Ele está interessado em registrar o depoimento de um médico que também seja diabético. No meu caso, um diabético que virou médico…
Já reparei – e certamente os leitores também – que tem se tornado comum o gesto de se solicitar aos médicos que registrem as maneiras peculiares de como lidam com as doenças quando se tornam pacientes. Não deixa de ser uma coisa arriscada essa de abrir o jogo sobre nossos hábitos saudáveis (ou não?). É sempre possível que nos denunciemos aos pacientes e estes percebam que somos muitas vezes bons para ensinar as pessoas a lidar com seu corpo, mas já nossas práticas pessoais (…) costumam deixar a desejar, como, aliás, todo mundo sabe.
Mas deixemos de prolegômenos e vamos lá.
Fiquei diabético com 21 anos, em pleno curso de Medicina na UFMG. Curiosamente, cursava a disciplina de Endocrinologia, quando comecei a perceber que aquela ladainha de poliúria, boca seca, visão turva e emagrecimento estava acontecendo comigo. Um professor com quem eu tinha ligação mais próxima e que tinha a esposa diabética, tornando-se por conta disso um expert no assunto (sem ser endocrinologista, diga-se de passagem), praticamente me arrastou ao pequeno laboratório do Hospital Carlos Chagas, onde eu era estagiário. Aleguei que não estava em jejum e preparado para o exame, mas ele mesmo assim insistiu. O resultado quase me matou de susto: mais de 450 mg% de glicose no sangue!
O primeiro impacto foi um Deus nos acuda! A família entrou em pânico e, confesso, eu também. O pai de minha namorada achou que ela devia terminar o namoro comigo. Como eu estava de namoro muito firme, já falando em casamento, meus pais acharam que a causa de minha moléstia poderia ser o tal compromisso. E foi por aí…
Como sempre acontece, comecei meu tratamento seriamente, numa espécie de lua de mel com a insulina, seringas, agulhas e dosagens (sou do tempo do Benedict na urina!) e em poucos dias estava bem melhor. Uma ou outra vez inverti a dose de insulina regular e NPH e veio aquela hipoglicemia de fazer gosto. Literalmente: “de fazer gosto”, pois como bom diabético, eu também aprecio uma hipoglicemia que me dá a oportunidade de comer um docinho…
Por falar em hipoglicemia, aqui vai a opinião de um paciente (não de um médico): não recomendem a um paciente com a glicose no rodapé a resolver seu problema com suco de laranja e bolachas água e sal! A cura só acontecerá com um bom brigadeiro ou dois, (dependendo do tamanho)!
Mal mesmo, só fiquei uma vez, quando um colega ortopedista cismou de me fazer umas aplicações de cortisona em um joelho lesado no futebol, alegando que a absorção da droga pelo sangue seria mínima. Minha glicose chegou aos seiscentos e eu quase “vi a vó pela greta”! Cruz-credo, nunca mais!
Sou diabético há 34 anos e só agora começo a ter pequenas (assim as considero…) complicações, como neurite periférica leve e uma mioartropatia supostamente atribuída à diabetes – meu grande martírio. Meu fundo de olho é subnormal e está praticamente inalterado há dez anos. Confesso que me descuidei do peso, preciso perder uns vinte quilos hoje. Uma parte é culpa minha, mas outra é da genética e também dessa sociedade glutona e voltada para o consumo de calorias em que nós vivemos. Eu sou também uma vítima!
Sou um bom paciente? Mereceria uma medalha Joslin? Isso quem pode dizer é meu médico, o Dr. Reginaldo. Mas posso dizer que aprendi muita coisa com a minha condição de paciente. Primeiro que a informação clara por parte do médico é muito importante. E também que a autonomia do paciente deve ser incentivada e respeitada; que as broncas resolvem muito pouco; que é importante trabalhar com resultados; que nós, pacientes, devemos sempre ser ouvidos, mesmo quando nossas opiniões e impressões parecerem esdrúxulas; que temos muito a ensinar uns aos outros (receita daquela mousse de chocolate ma-ra-vi-lho-sa e sem açúcar, por exemplo!). Ah, sim: e que não se deve tratar hipoglicemia com bolachas água e sal!
(Texto escrito em 2009)