O verdadeiro Manuelzão

MANUELZÃOO cidadão Manuel Nardi Filho foi, por assim dizer, descoberto por docentes e pesquisadores  da UFMG nos anos 90. Ele foi objeto até de uma tese acadêmica e se tornou patrono de um amplo projeto de preservação ambiental focado na bacia do Rio das Velhas – o Projeto Manuelzão.

Sua notoriedade derivou basicamente do fato de ele ter conhecido pessoalmente o escritor Guimarães Rosa e ter participado, como vaqueiro, da famosa viagem que o mesmo realizou pelos sertões de Minas no início dos anos 50. Os testemunhos de seus descobridores e dão como um homem de porte avantajado, espadaúdo, muito sagaz, bom proseador, possível defensor da natureza e, acima de tudo, experiente nas coisas do mundo sertanejo. A partir de então, já com mais de 90 anos, ele passou a ser reverenciado no ambiente acadêmico da UFMG, principalmente entre ambientalistas e sanitaristas. Merecida homenagem, sem dúvida.

Entretanto, alguns confundem as coisas, talvez por desconhecerem alguns detalhes cronológicos. Ou quem sabe, mesmo com a melhor das intenções, pretender transformar Manuelzão em algo que ele não foi de verdade…

Vamos aos fatos.

O nome de Manuelzão, Manuel Jesus Rodrigues, ou Manuelzão J. Roiz, a grafia de preferência do personagem, aparece no conto (ou novela) “Uma estória de amor”, que tem como subtítulo “A festa de Manuelzão”. No enredo, o dito cujo, já idoso, com mais de 60 anos – não nos esqueçamos que isso correspondia, na ocasião, a uma idade acima da expectativa de vida no Brasil – resolve organizar uma grande festa de despedida para comemorar sua aposentadoria como vaqueiro. Amigos, ex patrões, fazendeiros, roceiros, artistas e muito mais gente de toda uma vasta redondeza são convidados. Uma capelinha é inaugurada; reza-se missa com padre vindo de fora. Muitos músicos animam a festa, contadores de histórias também comparecem. Foguetório. Comilança. Manuelzão pensou em tudo!

Tudo acontece em dois ou três dias, na Samarra, um lugar imprecisamente localizado pelo autor “entre o Rio e a Serra-dos-Gerais”. “Rio”, assim com “R” maiúsculo só pode ser o São Francisco. A possível proximidade com a tal serra, também conhecida como do Espinhaço, que corta Minas Gerais do centro até o extremo norte, define que tal lugar deve ficar entre Três Marias e Cordisburgo, paragens que se situam ao longo da atual estrada que liga Brasília a Belo Horizonte. Aliás, o Manuelzão de que falamos acima passou parte de sua vida nesta região, mais precisamente na pequena cidade de Andrequicé, que fica a mais ou menos 20 quilômetros a leste de Três Marias.

O especial momento vivido pelo personagem é assim descrito: “Manuelzão, em toda sua vida, nunca havia parado, não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só. Agora, ei, esperava alguma coisa”.

“A festa de Manuelzão” aparece em livro, intitulado inicialmente “Corpo de Baile”, contendo sete estórias, depois desmembrado pelo próprio autor em três diferentes tomos. O primeiro desses volumes recebeu justamente o nome de “Manuelzão e Miguilim”, referência aos personagens principais das duas novelas que o compõem, notáveis figuras humanas: um garoto de no máximo dez anos e o sexagenário Manuel. A obra foi lançada em 1954, é importante frisar.

Pois bem… O Manuelzão que Guimarães Rosa conheceu como vaqueiro, no famoso traslado de uma boiada de Cordisburgo a Araçaí, na região da atual Três Marias – viagem acontecida dois ou três anos antes do lançamento do livro – era um homem bem mais jovem, nascido que fora em 1904. Tinha seus quarenta e poucos anos, portanto.

Certamente que o sonoro nome no aumentativo – Manuelzão – pode ter influenciado o escritor ao nomear o velho vaqueiro que se aposentava, mas também, com toda certeza, era outra a idade do daquele vaqueiro Manuel que ele havia conhecido pouco tempo antes.

Assim, o Manuelzão que o pessoal da UFMG tanto celebrou, por maiores que fossem suas virtudes, não pode ser, portanto, o mesmo homem que dá nome ao conto, como alguns insistem em acreditar ou repetir…

Mas minha digressão vai um pouco mais adiante.

Há outra novela de “O Corpo de Baile”, intitulada “O recado do Morro”, no qual um grupo de peões realiza um périplo entre várias fazendas e lugarejos, acompanhando pessoas que vieram de fora, um estrangeiro, possivelmente alemão e naturalista, chamado Seu Alquiste, um sacerdote (Frei Sinfrão) e mais um outro, não totalmente forasteiro, Jujuca do Açude, “fazendeiro de gado”. Um desses camaradas se destaca, pela sua liderança, pelo seu porte físico, pela sua inteligência e boa conversa. Sua idade não é precisada, mas se trata, com certeza, de um homem jovem.

O nome de tal sujeito é Pedro Orósio, “também acudindo por Pedro Chãbergo ou Pê-Boi”, guia da comitiva. Assim ele nos é apresentado: “moço, a nuca bem feita, graúda membradura, e marcadamente erguido: nem lhe faltavam cinco centímetros para ter um talhe de gigante, capaz de cravar de engolpe em qualquer terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em cruz os ossos da cabeça de um marruás…”. E mais adiante: “… preferisse mesmo viajar a pé, ou talvez, culpa de seu tamanho, nem acharia cavalgadura que lhe assentasse”.

Nessa viagem pelo sertão, de muitas léguas, entre a velha Pirapora e a Cordisburgo mítica de Rosa, aos poucos se percebe que há uma conspiração por parte dos companheiros de Pedrão, ao ponto de prepararem uma cilada para matá-lo, pois sendo o mesmo tão garboso e envolvente, era também um sabido sedutor, seja de mulheres casadas ou solteiras.

A comitiva passa por sete fazendas e, à medida que avança pelo sertão, toma conhecimento de uma espécie de “recado”, supostamente proferido por um monte, no caso o Morro da Garça, que realmente existe entre Corinto e Três Marias, dizendo que Pedro Orósio estava ameaçado. E ele acaba por descobrir qual era tal segredo, livrando-se de um mal maior, o que justifica o nome da novela: “O  Recado do Morro”.

O resto os leitores encontrarão lendo diretamente o texto em pauta…

Resumo da ópera: para mim, o Manuelzão homenageado pela UFMG e que dá nome ao grande projeto do Rio das Velhas e que viveu e morreu em Andrequicé, descoberto tantos anos depois, é encarnado, de fato, por Pedrão Chãbergo. Já o ancião, personagem de tão linda “Estória de Amor” ,é puramente fruto da imaginação de Guimarães Rosa ou mesmo, quem sabe, de alguma outra pessoa que ele tenha conhecido em sua infância em Cordisburgo, ou a soma de várias pessoas, como é comum, aliás, que aconteça na literatura.

 

 

 

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