No lançamento de um dos livros de Dráuzio Varela (sobre as histórias do Carandiru) aqui em Brasília, faz alguns anos, seguido de debate com o público, tive oportunidade de perguntar a ele se sua causa não seria, em princípio, pouco palatável perante a sociedade, que de modo geral está se lixando com quem está preso e até mesmo deseja – e explicita –mais massacres e condições ainda piores de vida nas cadeias. O médico paulista me deu uma resposta que me chocou pela sinceridade, ao afirmar não ter qualquer preocupação de militância, mas de apenas levantar histórias reveladoras de vida de pessoas, que de outra forma não seriam conhecidas. Pensando bem, mesmo sem preocupações militantes, Dráuzio talvez tenha feito mais por aqueles sujeitos presos no Carandiru do que muita gente supostamente interessada neles. Muito mais, com certeza, do que os juízes e promotores que os colocaram ali sob a alegação inconteste da necessidade de se cumprir a lei. Custe o que custar…
Ora a lei…
A recente e sobejamente citada “crise penitenciária”, para mim, na verdade revela, expõe, denuncia e escancara a situação real do país em que vivemos, no qual leis sem apoio na realidade e de cumprimento impossível são executadas tendo como alvo uma parcela dos cidadãos, sob a alegação costumeira de que “é preciso cumpri-las”, mas sem maior questionamento se há outras maneiras, mais humanas, mais econômicas ou, pelo menos, mais racionais de realizar a mesma coisa, por outros meios. E isso não valeria só para as penitenciárias, mas para muitos outros aspectos da vida social.
É realmente de arrepiar saber que praticamente a metade das pessoas que estão nos presídios sequer foram julgados. Outros o foram, mas por crimes que não comprometeram a vida de ninguém, pequenos furtos, por exemplo, e mesmo assim foram parar nas prisões, lado a lado com grandes traficantes, assassinos em série, estupradores, assaltantes da coisa pública e outros praticantes de crimes hediondos. Muitos estão lá por terem surpreendidos pela polícia com quantidades homeopáticas de drogas no bolso. E há mesmo os que já cumpriram pena e continuam presos, porque a burocracia judicial não se dá conta disso. Já do lado de fora das prisões…
Dessa mistura não pode sair coisa boa, naturalmente.
As raízes do mal são apontadas a esmo. Superlotação, baixos salários dos agentes, pouca disponibilidades destes, formação de “facções” dentro das cadeias, falta de espaço, deterioração do espaço prisional, corrupção dos agentes penitenciários. Tudo isso deve ser verdade. E por cima de tudo, como já antevisto na reflexão amarga do Dr. Varela, a baixa sintonia e visibilidade que a questão penitenciária possui perante a sociedade.
Mas quando vejo tantas excelências se pronunciando, na imprensa e na máquina de governo, noto que uma parte da questão está ligada ao modus operandi da Justiça em nosso país. E ele é funesto. Pessoas que vão para a prisão enquanto aguardam julgamento, e isso se arrasta por décadas; audiências de custódia que são jamais realizadas; progressões de penas que deveriam acontecer e não acontecem; penas que são cumpridas sem que a Justiça, cega por natureza, mostre-se também paralítica e não determine a liberação do condenado. Mas suas excelências colocam isso no grande rol das mazelas, mas não qualificam e nem ponderam devidamente a questão, que passa a fazer parte de um todo no qual está, entre outras miscelâneas, a qualidade das marmitas e dos colchões oferecidos aos presos e a periodicidade das visitas íntimas…. Como se fossem problemas da mesma relevância.
Mas, qual! Não dá para perceber que um dos grandes problemas da falta de justiça em nosso país está na própria instituição da Justiça?
Ah, dirão os meritíssimos: existem leis e nosso dever é fazer cumpri-las! E ainda alegam que a lentidão é condição de se fazer justiça (não seria o contrário?).
Ótimo, cumpramos as leis! É assim que deve ser, sem dúvida. Mas eu, particularmente, estou com a corrente que diz que a justiça que tarda e enxerga de forma vesga não é justiça…
Não nos esqueçamos que as leis são interpretadas ao sabor das circunstâncias – e isso é legítimo. Com efeito, o código penal diz o mesmo para quem rouba um litro de leite para o filho ou uma carga de leite em pó num caminhão para uma quadrilha. Na hora de aplicar a pena, os juízes podem e devem, pelo que sei, contemplar cada caso de acordo com seus agravantes e atenuantes. Assim, não seria necessário fazer toda a reforma do Código Penal para que as prisões não estivessem ainda mais cheias do que estão. A competência dos juízes já seria o bastante para afastar das grades uma grande quantidade de infratores.
Por que não acontece isso no caso das drogas? A interpretação ipsis litteris do código coloca nos carandirus da vida tanto o jovem que leva no bolso a munição para seus baseadinhos semanais, como o chefe do tráfico que lida com toneladas de cocaína e montões de notas de dólar… Aqui, acho que a tradicional hipocrisia da sociedade fala mais alto e são raras as autoridades, nos Três Poderes, que assumem que é preciso, mais do que aplicar irrestritamente as leis, transformá-las – ou pelo menos aplicá-las dentro da margem de manobra que os códigos permitem.
Penso , realmente, que a justiça tem alto grau de responsabilidade na atual questão carcerária, por exemplo: (1) quando ela protela indevidamente as medidas que estão inteiramente a seu alcance, como é o caso das audiências de custódia); (2) quando ela se rende à hipocrisia e ao conservadorismo da sociedade e manda para a cadeia gente que não ameaça, em absoluto, o tecido social; (3) quando ela simplesmente deixar de cumprir o que é seu estatuto legal, por omissão e irresponsabilidade, como no caso da protelação indevida das penas; (4) quando os promotores e juízes acham que seu papel social é apenas o de mandar gente para a cadeia, sem atentar às consequências que isso traz; (5) quando esta sacrossanta instituição se faz cega, muda, paralítica (e soberba) diante das exigências da sociedade contemporânea, nem sempre correlacionadas as textos doutrinários dos tratados de Direito Penal.
E olha que estamos falando de um Poder de Estado que tem no Brasil, reconhecidamente, os melhores instalações físicas, os melhores salários, as grandes mordomias, resquícios de um feudalismo que para eles parece não ter acabado. E que se exacerba na soberba…
As medidas que as autoridades propõem na hora da crise são risíveis, além de quase sempre óbvias e já experimentadas, sem resultado. Chamar as Forças Armadas, por exemplo… sem comentários. Apelar à “integração”, como se isso não fosse algo obviamente ululante… Criar organismos de “inteligência”… E por aí vai. E de onde vem o dinheiro, silêncio!
Por que não se explicita logo que a Instituição chamada Justiça deveria ser mais ágil e competente, além de compromissada socialmente, ao invés de apenas cuidar dos escândalos que dão IBOPE e refletores da mídia?
E por que não incorporar novas tecnologias, por exemplo. O comando que as lideranças criminosas possuem têm um só instrumento: os telefones celulares que abundam nas prisões – e nada é feito para coibi-los, embora exista tecnologia simples e adequada para tato. Quanto custa uma tornozeleira eletrônica? Certamente é muito menos do que custa um preso para o Estado. Por que, então, não liberar os presos de baixa periculosidade e responsáveis por crimes pés de chinelo, deixando-os levar a vida fora das prisões com tais adereços? A resistência que os tribunais ainda têm em aceitar audiências por comunicação eletrônica são um bom exemplo de como a Justiça se coloca além do bem, do mal e das tecnologias de informação.
E tem mais: que tal utilizar, meritíssimos, parte da enorme energia consumida em justificar a necessidade de cumprimento restrito das leis, em esforços e mobilização social para sua mudança e aperfeiçoamento, naquilo que precisa ser mudado. Por que pensar, enfim, que leis de séculos passados, já caducas na maior parte do mundo civilizado, ainda devem servir para o Brasil?
Antes que me esqueça: por que não transformar as prisões, definitivamente, em ambientes de trabalho, pesado se for o caso. Pelo que sei, o fato de um preso trabalhar atualmente é considerado um prêmio para ele, a ser alcançado por merecimento. Devia fazer parte do castigo…
São coisas óbvias à procura de um profeta que as anuncie – como já dizia o velho e bom Nelson Rodrigues.
Flávio,
Obrigado por essas reflexões. Foi muito bom para me ajudar a pensar o problema que estamos vivendo.
Coisas muito simples, como o trabalho nos presídios é visto como recompensa e não como parte do castigo, como você muito bem coloca.
Parece que existem muitas saídas e pouca disposição para executá-las
Enviei o seu artigo para uns amigos.
Um deles me respondeu abaixo.
Achei que você poderia gostar de ler os comentários que fez
Um abraço amigo do
Pedro Tauil
De: Tetsuo Nakagawa [mailto:tecenakagawa@yahoo.com.br]
Enviada em: quinta-feira, 19 de janeiro de 2017 15:40
Para: Pedro Luiz Tauil
Assunto: Re: “Crise penitenciária: obviedades a procura de um Profeta.” – Artigo de Flávio Goulart
Meu caro amigo-irmão: Pax!
Muito boas as colocações! Conheci o Carandiru, por dentro. O que meu também amigo Dráuzio Varella retratou é a coisificação humana. Quanto aos meretíssimos, promotores etc. carecem-lhes uma visão sistêmico-contingencial-estratégica dos problemas que o presente articulista tem. Nenhum sistema vivo funciona adequadamente sem um subssistema de autocontrole. O controle externo é por si só caro e lento, portanto ineficiente e ineficaz. O tempo de resposta, quando chega, é muito tarde. A mentalidade burocrática típica de Weber é o que predomina neste país. Se quantificarmos e qualificarmos esse sistema de controle e analisarmos os resultados que produzem é tangenciando a abcissa.
Muito há o que comentar acerca do artigo. Pena que os luminares cheios de si não o façam.
Abraços,
Tetsuo
De: ronaldo.nunes amaral [mailto:ronaldo.nunes.samaral@gmail.com]
Enviada em: quinta-feira, 19 de janeiro de 2017 11:36
Para: Pedro Luiz Tauil
Assunto: Re: “Crise penitenciária: obviedades a procura de um Profeta.” – Artigo de Flávio Goulart
Caro Pedro,
Excelente texto.
Talvez possa ser acrescentado outras poucas sugestões por algum especialista. Não é o nosso caso.
Mas falta de sugestão para amenizar o problema penitenciário não é o mais importante. O autor do texto já listou tantas!
O mais importante é o que está no título perfeito: A falta de um profeta/autoridade que queira executar as obviedades.
Abraços,
Ronaldo