Na velha Inglaterra

BIG BENAssim como em 1970 e 1990, datas de viagens marcantes que fiz aos EUA e Canadá, em 1993 estive por quinze dias na Inglaterra, desta vez em missão de trabalho, pelo Ministério da Saúde. Se houve resultados práticos para o SUS desta viagem não sei ao certo, pois estávamos em época de troca de ministros (pra variar) e logo após mudou o governo. Ainda me pergunto se alguma coisa teria sobrado desse contato, feito através de uma agência britânica de cooperação técnica overseas? Eu, pelo menos, assim espero, pois não desejo carregar para o juízo final a culpa de ter gasto dinheiro em vão, seja ele brasileiro ou britânico. Mas o que quero falar agora é das descobertas e espantos de um brasileiro no reino de Elizabeth.

A tal viagem teve um início momentoso. Eu havia passado o final de semana na Chapada dos Veadeiros, em meu sítio recém adquirido e era necessário estar em Brasília na segunda feira, para comprar dólares e tomar outras providências relativas à viagem, cujo embarque se daria às três horas da tarde. Mas acontece que meu carro teve uma pane elétrica e assim tive que pegar emprestado de meu amigo Uiles Rosa um Chevette já vintenário – e assim só consegui sair de lá tarde da noite. Foi ainda preciso fazer escala técnica em São João da Aliança, pois o tal carrinho, apelidado carinhosamente pelo dono de Jerry Gonça, engasgava tal qual um portador de megaesôfago, de modo que achei mais prudente dormir no meio do caminho e prosseguir a viagem com o dia claro, já temendo o pior…

Com as primeiras luzes da segunda feira finalmente partimos, eu Luiza e Jerry, para chegar em Brasília ainda a tempo de fazer tudo o que era necessário e arrumar a mala, em minutos contados um a um. Finalmente, às três da tarde embarquei, fiz escala no Galeão e tomei o vôo da Iberia rumo a Heathrow, com breve parada e troca de avião em Madrid. Em Londres demorei quase uma hora para encontrar minha bagagem, em meio a uma multidão multicolorida, dentro da qual circulavam cidadãos cor de azeitona, louros quase albinos, amarelos orientais e negros de diversas tonalidades e vestimentas. Alguma coisa me evocou os tempos vitorianos, pois no conjunto dos países natais de quem estava ali o sol realmente nunca se punha.

Encontradas as malas, tomei a van da agência de cooperação, junto com um etíope e um egípcio que estavam ali pelo mesmo motivo do que eu e finalmente pude conhecer uma parte de Londres, que me agradou muito, aliás, com seus prédios de tijolinhos, ônibus de dois andares e aqueles taxis pretos. Mas esta passagem foi bem curta para minha expectativa curiosa, durando apenas o trajeto de  Heathrow à Victoria Station. E desembarcando nesta última nem pude apreciar direito sua magnífica arquitetura novecentista em aço, pois o trem para Manchester sairia, como pontualmente saiu, em breves minutos.

E assim, depois de um périplo por Alto Paraíso, Brasília, Rio de Janeiro e Londres pude respirar e conhecer a cidade berço da Revolução Industrial. Melhor dizendo, apenas ver alguma coisa pela janela do velho Austin, aquele simpático taxi negro inglês, porque depois de viajar por mais de vinte horas eu estava simplesmente esbodegado. E assim me recolhi aos aposentos de um hotel charmoso, embora velho e barato, onde me abrigaram. Ali achei que fazia jus a um bom banho de banheira e do pensamento passei à ação.

Quando finalmente relaxei na água quente pude me dar conta de que meu corpo era pasto de inumeráveis carrapatos, trazidos diretamente das macegas secas do Moinho. Eles já abandonavam o barco, de modo que não me foi difícil acabar de separá-los de mim, um a um. Quando terminei e me enxuguei é que percebi que eu tinha uma coceira dos diabos, coisa que até então não tinha percebido, dado o dia tão agitado. E deixei aqueles carrapatos ali mesmo, a rodopiarem na água que escoava pelo ralo da banheira, o que mais eu poderia fazer… Seria o caso de convocar a Scotland Yard sanitária deles?

Manchester é uma cidade velha e sem muitos prédios altos, apesar de ser uma das maiores da Inglaterra. Depois vi que isso é parte da paisagem deles. A conversação me foi um pouco difícil, pois o pessoal de lá carrega um accent da pesada, o tal do cockney, impenetrável para os menos esclarecidos, como eu. E na base dos gestos fui me virando, seja na portaria do hotel ou com os bobbies nas ruas, sempre simpáticos.

Minha companheira de missão, que havia embarcado uma semana antes de mim, para um seminário em York – a velha – era Patrícia Tavares, psicóloga carioca, que trabalhava junto comigo no Ministério da Saúde, de quem fiquei muito amigo. A maioria das atividades que desenvolvi na Inglaterra foram realizadas na agradável companhia dela. Era a primeira vez que Patrícia estava no Reino de Dona Elizabeth, assim como eu, mas dominava a língua muito bem, do que muito me vali.

Em Manchester, visita obrigatória é ao museu da Revolução Industrial. Todas aquelas máquina a vapor e mesmo suas sucessoras elétricas ou movidas a petróleo estão ali, praticamente em suas versões originais. Tudo dentro da fórmula que eu já havia visto nos museus do Canadá, ou seja, em mostruários interativos onde era possível, a maioria das vezes, tocar e fazer funcionar os objetos expostos. Prato cheio para um curioso como eu. No pátio das locomotivas me deleitei. Um exemplo da criatividade de tal museu era uma usina hidroelétrica instalada dentro de uma privada – isso mesmo! Você puxava a descarga de cordinha e a turbina geradora, instalada sobre o vaso, fazia acender uma lâmpada por alguns instantes. Mesmo alguém muito cru em compreensão de tecnologias seria capaz de sacar, de imediato, o mecanismo de tal usina.

Depois de uma das reuniões que tivemos em Manchester, com autoridades sanitárias locais, pegamos uma carona até o hotel com o diretor do hospital regional de lá, figura que no National Health Sistem tem grandes responsabilidades na política de saúde, mesmo em termos extra municipais. Era um senhor simpático e falastrão, nada british, muito interessado no Brasil (muito além das bundas, ao que parecia…) e que nos crivou de perguntas sobre o SUS. Em dado momento, perguntei o que ele fazia na vida, antes de ser diretor de hospital. Sua resposta me surpreendeu: ele disse que era dono de um banco, ligado ao partido no poder (Tory), que por força de suas ligações políticas tinha agora um cargo de direção na saúde. Para um brasileiro, nada de anormal, em princípio, pois bem conhecemos, em nosso dia a dia, os muitos casos de militantes partidários que são premiados com cargos públicos. O que não se vê por aqui é um banqueiro aceitar algo assim, certamente com remuneração muito inferior ao que seria normal para ele.

Mas de toda forma nos tocou a sinceridade daquele homem, que nos garantiu estar cumprindo em sua missão no NHS apenas como um dever cívico e partidário, mas que gostaria de voltar a seus negócios tão logo fosse liberado.  O fato é que o homem nos pareceu honesto e, no meu caso, só não fiz com ele um contato mais próximo porque me via um tanto assustado, assentado como estava no banco da frente do seu BMW, em posição que até então só tinha frequentado como motorista, ou seja, do lado esquerdo. E o tal banqueiro falastrão era um furacão no volante! Quem nunca passou por isso não pode imaginar como é estranho, procurar – sem achar – o freio ou o volante a cada arrancada ou curva do veículo…

Hotel St. Gilles, em Londres. O ponto é valorizado, quase na Oxford Street, com suas muitas livrarias, restaurantes e lojas chiques, inclusive especializadas em guarda-chuvas (coisa de ingleses), além de entradas para o underground (metrô).  É preciso cuidado para atravessar, não só esta rua como todas as demais no Reino Unido, pois os carros sempre vêm do lado pelo qual não são esperados. Eu mesmo quase fui atropelado. No St. Gilles um daqueles brasileiros furões, padrão Jean Charles, nos saldou já no primeiro café da manhã e cuidou de nós como se nos conhecesse desde sempre. E ainda admoestava seu colega paquistanês ou indiano: Ahmed, take care of the brazilian people! Na madrugada tocou um alarme de incêndio no hotel, o que fez minha amiga Patrícia sair sobressaltada e descabelada pelos corredores e correr até o meu quarto, para nos safarmos juntos. Mas era alarme falso, embora traduzindo a verdadeira neurose com incêndios que aos ingleses têm. Devem ter suas razões, sem dúvida.

Marca registrada de Londres é a gravação monótona e repetitiva que se ouve no underground, quando você entra nos vagões: mind the gap, mind the gap, mind the gap, que lembra um bingo modorrento. O formato dos trens e dos túneis, que se referem ao seu outro nome local, The Tube, associado à cantilena a respeito dos espaços entre os vagões e as plataformas, não tornam o ambiente muito acolhedor, ali debaixo do solo. Como minha amiga um dia se recusasse a entrar pelo cano daquela maneira, tive que lhe dar uma ajuda não muito cortês, aplicando-lhe um bom empurrão seguido de uma puxada para dentro do vagão, caso contrário ela se partiria ao meio quando o trem se movesse. Mas fui perdoado após alguns minutos de amuo (compreensível).

Na Oxford Street fiz duas das compras mais significativas de minha excursão britânica:  o disco de trinta anos de carreira de Bob Dylan, que ainda não havia sido lançado no Brasil e uma hurricane lamp naval legítima, que ainda hoje enfeita minha coleção de lampiões.  No mercado de Camdem Lock comprei uma camisa pólo de manga comprida, de marca Gap (legítima?) que me acompanha até hoje, vinte e cinco anos depois.

Em viagem de trem a Souhthampton, ao sul de Londres, para um encontro de trabalho, pude ver com mais detalhe  uma das maravilhas da ilha: o campo inglês. Verde como o mar da Bahia, segundo Gil. Disposto em colinas suaves, com graciosos muros de pedra, casinhas brancas de telhado alto e janelas quadriculadas, pequenos canais de navegação cortando a planura por toda a parte, repleto de ovelhinhas – uma graça. Vê-se que mora muita gente ali, mas sempre em casas afastadas umas das outras ou em aldeias minúsculas.  Eu já conhecia tal paisagem dos romances de A. J. Cronin e foi um prazer ter este contato “pessoal” com ela.

No nosso último dia na capital, Patrícia me convidou para acompanhá-la a visitar dois de seus ídolos, Freud e Marx. A casa do primeiro e o túmulo do segundo. O tempo, de chuva fria já ameaçando um fog, não ajudava muito, mas fomos assim mesmo. Depois de diversas trocas de estações in the tube, desembarcamos na esquina freudiana. Para desgosto de minha amiga, a casa estava fechada para reformas e totalmente coberta de tapumes.  O remédio era ir agora ao cemitério marxiano, conhecido como Highsgate. E depois de voltas e mais voltas no underground lá chegamos. Mas era tarde e o lugar já estava fechado para visitas, permitindo só a permanência dos moradores àquela altura do dia. Fazer o quê? Voltar à City foi a nossa decisão e por sorte vimos que a linha do metrô tinha agora uma parada na Oxford Street, próximo ao nosso hotel. Lá chegando, ao voltar à superfície, constatamos que estávamos frente a um pub dos mais simpáticos e tradicionais – The Red Lion Tavern.  Entramos, tomamos mesa para saborear uma Guiness e verificamos que a um metro acima de nossas cabeças um senhor de cabeleira farta e cenho carregado nos observava, de dentro de um grande quadro na parede. E em uma pequena placa de bronze vinha a explicação: Just in this tavern, Karl Marx wrotes The Communist Party Manifesto. Precisaria de algo melhor para completar o dia?

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Um comentário sobre “Na velha Inglaterra

  1. Esta história tão singela ainda me trouxe alegrias e surpresas quase vinte e cinco anos depois de ocorrida. Foi o seguinte: logo depois de escrever o texto, de bateu uma enorme saudade de Patrícia Tavares, a quem não vejo pessoalmente faz alguns anos (embora volta e meia tenha notícias dela e até mesmo trocamos alguns comentários nas “redes”). Resolvi, então, compartilhar com ela o escrito e algumas horas depois já tinha a resposta, que me emocionou muito. A seguinte:
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