No final dos anos 80, através de duas amigas, Sonia Terra e Eleonor Conill, eu comecei a prestar atenção no que acontecia no Canadá em matéria de saúde. Eu fazia mestrado na ENSP, tinha intenção de escrever uma dissertação sobre a construção do SUS, sendo que a experiência canadense, já com uma década de consolidação, me parecia sob medida para aprender mais sobre tal objeto. Em uma série de acontecimentos que juntaram virtude, de outros, além de fortuna, de minha parte, consegui financiamento para a passagem e fui. Mas antes de prosseguir, esclareço: quando digo “outros”, refiro-me principalmente a Gladstone Rodrigues da Cunha Filho, meu ex-professor na UFMG e, na ocasião, diretor do Hospital de Clínicas da UFU e presidente de uma Fundação correspondente, que me concedeu o apoio financeiro, sem que eu lhe pedisse nada explicitamente, mas apenas me manifestasse a respeito de meu desejo de viajar ao Canadá. E como dizia, fui.
O que eu sabia do Canadá antes disso? Posso dizer que quase nada. Com efeito, eu até então não conhecia Leonard Cohen nem Joni Mitchell… A visita de Pierre Trudeau ao Brasil marcara muito minha juventude, com sua figura inesquecível, terno branco e tênis, completamente à vontade, totalmente distante daqueles generais carrancudos que o receberam. Conhecia também a garbosa Polícia Montada, de um seriado de TV, bem como identificava aquelas figuras barbadas, com camisas vermelhas de xadrez, como lenhadores canadenses. Lembro-me também vagamente da fama de que gozavam os caminhões Chevrolet Canadenses, na minha infância, afinal eu pertencia a uma família ligada ao ramos dos transportes. Conhecera um mecânico especializado canadense na minha passagem por São Simão, cuja principal performance era comer colheradas inteiras da selvagem pimenta goiana, junto com a comida. Em outras palavras, eu não sabia praticamente nada que realmente importasse a respeito do Canadá…
Consegui um estágio meio informal na Universidade de Montreal, graça a um contato direto com um professor de lá, Giles Doussault, além de uma técnica do Ministério de Relações Exteriores do Quebec, Lise Gravel. Contratei uma professora de francês no Rio, onde eu morava então, e durante aproximadamente um mês tentei me aprofundar no idioma, retomando algo que eu interrompera um quarto de século antes, no Colégio Estadual, com Ana Mazur Spira. Mesmo assim, meu primeiro contato com o país e com a língua foi chocante. No aeroporto de Montreal, quando o sujeito da imigração me fez uma pergunta banal, do tipo combien de jours est’ce que vous resterez ici, eu já embananei, até porque minha primeira indagação, íntima, foi algo como: que língua será essa que me parece familiar, mas eu não entendo patavina…
Sim, porque o primeiro desafio no Quebec é a língua, que mesmo os franceses originais às vezes têm dificuldade de compreender. As coisas por lá soam mais ou menos assim: chuí arivê a landzi significa je suis arrivé a lundi e letó ce mó é o mesmo que l’Etat ces’t moi… Mas no final estava conversando e entendendo até razoavelmente bem, não exatamente os telejornais, mas pelo menos as entrevistas que fiz, como parte de um projeto de estudos que submeti a Gilles e Lise. Os franceses acham graça, pois dizem que os canadenses quebecois têm uma maneira antiga ou demodée de falar.
Como definir o Canadá? Que é um país bonito e pacífico todos já o sabemos, mas gostaria de trazer aqui algumas visões impressionistas a respeito do que vi, sem maior compromisso com alguma forma profunda de interpretação política, social ou antropológica, por me falecer autoridade para tanto.
Eu fui lá para entender o sistema de saúde, mas logo pude ver coisas especiais, difíceis de comparar com o que via no Brasil, mas mesmo assim muito esclarecedoras. Por exemplo: eu consegui uma abertura para estar presente em reunião de um Conseil de saúde. Lá estavam, além da diretora do que seria aqui um Departamento Regional de Saúde, dois ou três assessores e no máximo uns dez conselheiros, representando associações diversas (moradores, portadores de patologias) e também de instituições filantrópicas prestadoras de serviços ao sistema de saúde, estes últimos majoritários. Tudo muito calmo e organizado. Um relatório impresso estava disposto à frente de cada um na grande mesa redonda. A diretora faz uma apresentação com power-point (novidade total para nós, àquela época), abordando exatamente o conteúdo do documento já entregue. Seguiram-se discussões, também ordenadas e tranqüilas, com duração máxima, todo o processo , de não mais do que uma hora e meia. Ao final foi oferecido um suco de uva com salgadinhos, depois beijinhos e au revoir…
Eu, subdesenvolvido em tal matéria, pensei comigo: mas é apenas “isso” o que chamam de participação? É que eu pensava na multiplicidade de atores, na balbúrdia e nas disputas ideológicas que tais reuniões certamente provocariam no Brasil. O que eu via ali, entretanto, não tinha nada disso. Na hora não entendi, mas apenas mais tarde: é que as tais reuniões eram apenas uma, e singular, das múltiplas possibilidades de participação social no Canadá. Fora ela, havia o voto distrital, a imprensa mais imparcial que a nossa, os vários comitês participativos de políticas públicas e, principalmente, uma consciência política muito maior. Nenhuma presunção de que ali se daria o tal do “controle social” da saúde, como insistentemente se acredita no Brasil. E ponto.
Eu havia marcado uma entrevista com a diretora regional citada e para completar meu espanto narro uma das respostas dela. A pergunta era sobre a influência dos políticos no sistema de saúde, feita por mim com a mente focada nos costumes brasileiros. Ela me olhou em tanto espantada: Monsieur, a influência deles é total! Mas antes que eu ficasse absolutamente perplexo, completou: não são eles que fazem as leis? Nós temos que cumprir…
O pacífico Canadá já se meteu em guerras? Claro que sim, mas ao que parece sempre arrastado por outros países. Até na guerra do Boers, no início século XX, na remota África, estiveram, pois afinal pertenciam (e ainda pertencem) à tal da British Commonwealth – coisa que não os deixa muito felizes. Na Segunda Guerra Mundial morreram, proporcionalmente, mais canadenses do que americanos. Mas, acreditem, quando estive por lá, em 1991 havia uma guerra declarada!
A situação era a seguinte: um grupo indígena da fronteira com os EUA, denominado Oká, aparentados com os antigos moicanos, depois de ser pilhado com frequência em tretas de contrabando de veículos, bebida e cigarros, devidamente apoiado pelos irmãos de sangue do outro lado da fronteira, foi autuado pelo fisco canadense com multas pesadas. De imediato, argumentaram: aqui é nossa “nação” e vocês não têm o direito etc. Depois de certo tempo a paciência do Leão canadense se esgotou e fecharam a fronteira. A nação Oká declarou, então, guerra ao Canadá! E como guerra é guerra os tanques canadenses vieram e estacionaram na “fronteira”. O que assisti nessa guerra brancaleônica foi apenas o que a TV mostrou. Mas me chamou atenção, por exemplo, o médico indígena, canadense típico de classe média, cercado de todo conforto da civilização, chegar em casa, despir-se do jaleco e ser preparado pela esposa, com pintura facial e arranjo de cabelo para cima com gel, e assim tomar o rumo das trincheiras indígenas. Em Montreal, por duas vezes, pude ver um condutor do metrô, indígena, também paramentado para a batalha. Mas sem se deslocar do seu posto, pois se o fizesse, a demissão – ou, pelo menos, o ponto cortado – seria fatal.
Resultado da guerra: ninguém matou, ninguém morreu. Os okás devem ter saído fortalecidos, mas não sem antes fazerem suas concessões ao fisco. E o que seria mais importante: continuaram sendo minorias, portadores de direitos e de uma cultura própria, respeitados pelos demais cidadãos, sem capangas a lhes ameaçar a vida, sem ideológicos militantes brancos a falar em nome deles.
Se estes exemplos não bastarem para definir o Canadá e seus habitantes, trago mais alguns. Por exemplo, o fato de ter lido em primeira página de jornal uma notícia de que uma pobre mulher havia levado uma surra do marido em alguma periferia de Montreal. Na primeira página! Se fosse um costume brasileiro, os jornais daqui teriam como caderno inicial um tipo de “classificados”, como longas listas diárias de “Antônia” a “Zenaide”, com certeza… Nos restaurantes, o silêncio é tão grande, que as pessoas conversam quase tête a tête, para não perturbarem os outros. Ao ver duplas de homens em almoços, confesso que cheguei a pensar que se tratavam de casais gays, não de simples amigos hetero, tal a proximidade dos rostos nas conversas. E para completar o quadro impressionista: a família islâmica em um final de semana no metrô, pai, mãe, três ou quatro filhos, todos vestidos a caráter, à moda egípcia, absolutamente tranqüilos e incorporados à paisagem humana que os cercava.
Dizem que na política, na culinária e no relevo o Canadá é um país absolutamente monótono e previsível. Não sei se concordo totalmente. Na culinária, há menos dúvidas, pois tirando a soupe a l’oignon quebecois, de resto tipicamente francesa, o resto é comida americana regada a muito ketchup. No relevo, é bom lembrar das Montanhas Rochosas, distantes das regiões costeiras mais populosas, mas ainda assim pertencentes ao grande país. Na política talvez seja isso mesmo, mas quem sabe seria uma vantagem, não uma desgraça? Talvez, longe da ideologia militante partidária, o que prevaleça nos políticos, nos partidos, nos parlamentos e nos eleitores seja um sentimento de fazer o melhor para o bem coletivo. Simples assim.
Aliás, em um belo domingo de novembro, andando por Montreal, eu descobri que era dia de eleições legislativas, as quais, diga-se de passagem, são aquelas que definem tudo na política canadense, dado vigorar ali um regime parlamentarista. E só pude perceber que era dia de eleições porque havia alguns cartazes com cavaletes nas ruas, com aquelas caras manjadas de políticos sorridentes e confiantes, com uma breve menção à sigla partidária e mais nada, nada de papéis pelo chão, de cartazes em postes, de out-doors. Nos dias anteriores imediatos não vi também propaganda, fosse gratuita ou aparentemente paga, na TV. Aquele domingo era um dia absolutamente normal na vida dos cidadãos, pois sendo o próprio voto não compulsório, só estava nas ruas quem se dispusesse a tanto. Confirmei uma impressão que já tinha sobre a política brasileira, dominada pelos “comícios” de todo tipo, além da compulsoriedade do voto. Afinal, comicial, em termos médicos, é palavra que designa os estados convulsivos, que cabe debelar… A política canadense pode ser monótona, de fato, mas pelo menos não é circense nem comicial…
Também nos domingos, me chamou atenção em Montreal, pelo menos na região da cidade onde eu me encontrava, o predomínio católico. Há igrejas para todo lado e dedicadas a diversos santos, da mesma forma que nomes de logradouros e cidades: Joseph, Jean, Catherine, Flavien, Marie Goretti, Sebastien, Christophe, Bon Dieu e por aí vai. E são igrejas frequentadas pelo conjunto das famílias, pais, filhos e avós, em trajes quase de gala, dando aos domingos, em torno de dez horas da manhã, uma movimentação especial, que me fizeram lembrar das missas de minha infância, em São Cristóvão, São Sebastião do Barro Preto ou Cura D’Ars, no Prado. Em outras partes da cidade pontificam as igrejas protestantes tradicionais, talvez com domínio Anglicano, além de sinagogas e mesquitas. Tudo em santa e perfeita paz. Depois daquele onze de setembro, sei não, pode ter mudado…
Quando estive no Canadá o filme As invasões bárbaras, de Dennis Arcand, ainda não fora produzido. Eu só o vi dez anos depois. Eu o colocaria dentro da dúzia de melhores que já tenha visto, não tanto por me trazer de volta o país que eu tanto apreciara antes, mas pela delicadeza em tratar o drama humano da despedida da vida. Desde então se tornou um símbolo para mim, aquele professor quebecois em seu leito de morte, rodeado pelas ex-mulheres, filho e nora, além dos amigos da vida a fora. Cena especial foi a dos ex-alunos que o visitaram no hospital (depois se vê que devidamente subsidiados pelo filho yuppie), que também o emocionam, mas que na verdade faziam parte de um quadro aflitivo para o personagem, dada a indiferença, o distanciamento e o olhar cinzento e perdido no longe de tais figuras durante as aulas. Tal cena me colocou uma ideia fixa na cabeça, da qual só me livrei quando fiz o que ela me sugeria: aposentar-me da carreira de professor na UnB, onde o tal olhar cinzento e tal indiferença eram regra geral. E quem sabe – mas espero que isso demore a chegar – merecer um ritual de despedida como o daquele homem!
Eu trouxe o filme até aqui para comentar, de passagem, uma de suas mensagens: a da falência relativa daquele sistema de saúde que eu tanto admirava e que me serviu de referência para meus estudos de dez anos antes. Com efeito, o hospital canadense em que se interna o personagem é vítima de uma série de problemas, tais como burocratização, desleixo e, principalmente, estar sendo vítima da invasão bárbara de um sindicalismo selvagem e ávido por resultados corporativos, ignorando o interesse geral. Pensando bem, o SUS, trinta anos depois de sua criação, percorre caminhos semelhantes. Mas ao contrário de seu contraparte canadense, não chegou a conhecer anos gloriosos.
Lado pitoresco do Canadá, às vezes até meio chatinho, é ser país em que o politicamente correto assume foros de compulsoriedade. Acho que foi de lá que veio aquele horrendo – e felizmente já fora de moda – bom dia a todos e todas que nos assolou por aqui. A turma no Quebec, por exemplo, ao fazer a uma saudação de uma platéia de estudantes, não deixa por menos, ao se referir a eles como etudiants et etudiantes, embora a pronúncia das duas palavras seja praticamente a mesma em francês. Mas respeito é bom e aquela gente gosta… E neste aspecto á bacana ver a preocupação geral com a informação aos citoyens usagers dos serviços públicos. No Canadá, a começar das embalagens dos produtos, de pastas de dentes e refrigerantes até os manuais complexos dos equipamentos de informática – é tudo compulsoriamente bilíngüe! Nas unidades de saúde me fartei em recolher folders, folhetos e outros tipos de materiais também bilíngües, muito bem impressos, para levar de lembrança e mesmo me inspirar, a começar por uma inédita (para nós) Chart des Usagers, na qual todos ficam sabendo do que é oferecido ali, dos direitos dos que frequentam o serviço, para onde dirigir reclamações, além dos nomes dos responsáveis e demais membros das equipes locais. Achei refinado e de muito bom gosto, também, o costume de que, na porta dos serviços públicos, de qualquer natureza (e mesmo na Universidade de Montreal, que é pública, mas não estatal) estejam afixados as fotos (sempre sorridentes) dos que ali trabalham, com os nomes e funções. Um dia, quem sabe, nós todos e todas, brasileiros e brasileiras, chegaremos lá, sem frescuras, sem empulhações.
É claro que em um país assim as mulheres estarão sempre prenhes de direitos , sem duplo sentido. E nesse campo constatei algumas curiosidades também. Por exemplo, que a profissão de motorista de ônibus é mais feminina do que masculina. É bem verdade que aqueles monstros que urram pelas ruas são tão maleáveis como automóveis, com seus câmbios automáticos e direções hidráulicas. E o que distingue “as motoristas” de seus colegas machos é o uniforme azul em dois tons, quase igual nos dois gêneros, mas com o detalhe distintivo das blusinhas de mangas fofas e gravatas em laçada. Muito bonitinhas! Mas espero que esta expressão não seja considerada politicamente incorreta… E vale também anotar que só vi meninas jogando futebol (soccer). Os machinhos preferem a brutalidade do futebol americano, do rugby e do hockey, ao que parece.
Não posso deixar de registrar aqui os museus em que você não só pode, mas é convidado, a tocar e manusear algumas das peças expostas, muitas vezes “ocultas” dentro de gavetas e armários. É tudo lúdico, inclusive aquelas janelas nas profundezas da terra, nas estações de metrô e galerias subterrâneas, onde se podem ver e ler informações didáticas sobre as rochas assim expostas. Mas o melhor exemplo de tal espírito comunicativo e didático canadense me foi dada por uma cena do Museu de Ciência de Tecnologia de Toronto. Ali, em uma mostra sobre hábitos alimentares, dois carrinhos de supermercado estavam postados lado a lado para comprar o modus de consumo canadense com o africano, em determinado período de tempo. Um carrinho cheio de folhas, raízes, frutos e legumes; o outro com uma pilha interminável de caixas e outras embalagens de alimentos industrializados, tão grande que ia até o teto, seis ou oito metros acima, e mesmo o perfurava… Mas o melhor estava por vir: a caixinha de vidro com exemplares comparativos de fezes – sim, isso mesmo! – de um canadense e de um africano, espetáculo ganho por este último com larga margem de gramas e centímetros… Sem faltar a devida explicação em termos de teor de fibras na dieta. Porque no Canadá é assim: tudo muito bem explicadinho!
Ville de Quebec é a capital da Província francófona. Muita gente pensa que é Montreal, mas esta é apenas a cidade maior. O poder político parlamentarista reside na Ville, com seus três ou mais poderes. Gracinha de cidade, cercada por muralhas, com suas casas de águas furtadas e mansardas, todas de no máximo quatro andares. O Chateau Frontenac, possível réplica de algo Outre-Mer, hoje um hotel, domina o cenário. Diárias de uma ou mais centenas de dólares, para quem se habilitar. Cena inesquecível de Quebec: a estátua de um combatente canadense na estranha Guerra do Boers, ao lado da odiada Inglaterra, coberta por uma grande lata de lixo emborcada sobre ela, tendo ao seu redor o conteúdo do recipiente devidamente espalhado. Fiquei sabendo que se tratava de uma “comemoração” anual, ligada ao aniversário do erguimento de tal monumento. Na mesma praça, em ambiente um tanto desleixado e trágico, seringas descartáveis jogadas por todo lado, resultado da política de redução de danos para os clochards marginalizados que ali faziam ponto.
O Canadá ainda me mostrou mais. A viagem de Quebec até Tadoussac, uns trezentos quilômetros ao norte, me apresentou ao país profundo, com as estradinhas de terra pelas quais circulavam velhas camionetes e caminhões carregados de lenha para abastecer as lareiras no inverno que se aproximava. E mais: as pessoas sentadas em cadeiras postas nas calçadas, em papos coletivos, aproveitando as últimas semanas do Outono, antes que o terrível frio polar chegasse. E aquelas cidadezinhas tão organizadas, mas ao mesmo tempo bucólicas e despretensiosas, quase sempre cortadas pelas estradas, mas sem a presença de um único quebra-molas, eis que lá os imprudentes ou não existem ou têm muito medo da Lei…
Finalizando, acho que das viagens que fiz na vida, que não foram poucas, duas me marcaram profundamente: aquela aos EUA, em 1970 e esta ao Quebec, vinte anos depois. Na primeira, conheci a vida fora do Brasil, numa época que a juventude me permitia absorver tudo, com alegria, excitação e até certo furor, mas de modo menos crítico ou profundo. Não foi a toa que minha amiga Lia Ribeiro me disse, na ocasião, que eu tinha sido “contaminado” (ou algo assim) pelo Tio Sam. Ao Canadá, todavia, eu fui com mais de quarenta anos. E minha maior maturidade me permitiu ver ali, de fato, um país em que qualquer um gostaria de ver o Brasil um dia espelhado. Mas já se vão quase trinta anos dessa segunda viagem e o espelho parece ter se partido para sempre. Os canadenses se dão ao luxo de ter um Trudeau jovem, contemporâneo e respeitado no Poder. Os Estados Unidos, no lugar disso, têm um Trump paleozóico. Já nós brasileiros temos tudo a temer… Chegamos onde estamos, a anos luz de exemplos civilizados, com tristeza e vergonha cada vez maior. No Canadá, apesar das mudanças globais, os imigrantes, pelo que sabemos, ainda são acolhidos e respeitados; nos EUA enfrentam um muro simbólico e já em fase de se tornar concreto; aqui começam a ser molestados pelos bossais-naros.
Como dizia o mestre Rosa: o mundo não muda nada; apenas vai ficando piorzinho. Espero que o Canadá continue sendo uma exceção…