Todo mundo conhece a indisposição que Carlos Drummond de Andrade demonstrou, ao longo de toda sua vida, em relação à exposição de suas questões pessoais na mídia. De certa feira, ele chegou a declarar ao Pasquim, ainda nos anos 70, que realmente não via graça nenhuma em dar entrevistas, visto que sua vida já era suficientemente contada e detalhada nas centenas ou talvez milhares de poemas e crônicas que tinha escrito, tudo extensivamente público e notório desde sempre.
Tal indisposição se estendia ao mundo acadêmico, sempre interessado em devassar os segredos de sua escrita. Para um autor de extensa tese de doutorado na USP, que tinha como objeto apenas e tão somente o famoso poema da pedra no meio do caminho, ele dedicou uma frase preciosa, mal humorada sem deixar de ser respeitosa, ao tomar conhecimento do calhamaço de duas ou três centenas de páginas já abençoadas por uma egrégia banca: isso me fez sentir um monstro de obscuridade e trevas. Ou algo assim.
Drummond morreu há 30 anos e já estaria completando 115 anos… Mas parece longe de ser esquecido. Outros escritores brasileiros igualmente relevantes não parecem ter a mesma sorte (ou quem sabe azar, como talvez CDA interpretasse essa fúria de revival que sua obra ainda desperta). Por que seria?
Certamente não seria pela clarificação dos enigmas da vida… Drummond, mesmo quando fala de um simples pedregulho na estrada, tem uma profundidade que nem sempre está ao alcance do leitor profano. Alguns de seus poemas, como é o caso de Mineração do Outro, que aprecio muito, são de uma profundidade abissal, com referências freudianas e nietzschianas nítidas.
Uma parte do fenômeno, pelo menos, creio que se explica pelo interesse que a Rede Globo demonstrou pela obra do poeta itabirano, pelo menos depois de sua morte. Com efeito, quem nunca assistiu uma récita de Drummond no Fantástico ou em programas especiais levados ao ar não só nos aniversários natalícios ou de morte, mas também por dá cá aquela palha? E tome todo o elenco global, de Paulo José a Faustão, de Angélica a Fernanda Montenegro, empenhado em divulgar ao mundo os poemas e textos de CDA – nem sempre os mais significativos, diga-se de passagem.
Outra parte dessa história seria explicada, sem dúvida, pelos numerosos textos de Drummond que circulam pela internet. Melhor dizer: textos atribuídos a Drummond, porque, pelo que vejo (no que muita gente boa me dá respaldo) boa parte deles simplesmente não vem de tal lavra. O que se vê são pensamentos açucarados, além de frases de autoajuda barata, servindo como legenda para mensagens de dia dos namorados, aniversários, dia da mulher, festas natalinas etc.
Em outras palavras, se não revirasse no túmulo por muitos outros bons motivos, o itabirano talvez se visse obrigado a lamentar não ter sido de fato o tal monstro de obscuridade em que se viu retratado no erudito calhamaço uspiano. Antes um agente das trevas do que um jg-de-araujo-jorge redivivo…
No atual momento dos 115 anos de nascimento, tal hiperexposição drummondiana atinge níveis de paroxismo. Fiquei sabendo, por exemplo, de um conclave em Ouro Preto, realizado no último outubro, em que dois intelectuais e mais o zeloso neto que defende os direitos autorais de Drummond (de sobrenome Grana, diga-se de passagem…) passaram algumas horas, diante de plateia embevecida, a comentar e discutir, como se coisa significante fosse, as anotações sob a forma de diário, agora publicadas, mas que o próprio poeta tinha deixado de aproveitar em resenhas anteriores, talvez por julgá-las irrelevantes ou inconvenientes. Creio que, neste caso, o que Umberto Eco um dia chamou, ironicamente, de “rol de lavanderia”, a não ser confundido com a verdadeira literatura, tenha sido a tônica do caloroso debate.
Há alguns anos estive em Itabira e me surpreendi com a quantidade de estátuas de Drummond existentes por lá, de textos do poeta grifados nos muros, além de diversos endereços relacionados à vida e à trajetória do poeta. Tudo meio abandonado e mal cuidado, como é corriqueiro nas administrações municipais pelo Brasil a fora. Era uma tarde de sábado e tentei conhecer o Memorial erguido a partir de um projeto de Niemeyer. Estava fechado, não para reformas, mas porque era sábado à tarde, momento em que, como se sabe, o mundo se dedica ao trabalho e às atividades dentro de casa. Quem pensaria em visitar um memorial dedicado à literatura em uma ocasião assim?
Naquela hora, me veio à mente uma frase que indicarei para a próxima edição (se houver) da coletânea organizada por Ruy Castro, O Melhor do Mau Humor: aqui tem mais gente vivendo de Drummond do que lendo Drummond. Parece ser esta a situação atual, em termos nacionais também, com eruditos de um lado e parentes de outro, discutindo seriamente listas de roupa suja, para não falar da vasta produção de textos apócrifos pululando pelas redes sociais.
Sem querer ser destrutivo ou excessivamente gauche: será que já não se disse tudo o que havia para dizer sobre Drummond? Todo esse assanhamento em torno do grande poeta ainda se justificaria? Isso me traz de volta uma antiga canção de ninar, do tempo das amas de leite negras, cantada justamente pela babá de Drummond, a preta liberta Siá Maria: que passarim amoroso / frutejo acabou / passarim tá teimoso...
Pobre Drummond… Que tua cova seja larga o bastante para que possas rolar à vontade, já que lamentavelmente não podes sair dela para tomar satisfações por aí, pessoalmente…