Tributo a Hesio Cordeiro (1942-2020)

Hésio Cordeiro se foi. Para quem não sabe de quem se trata, ele foi um dos principais agentes intelectuais (e mesmo operacionais) da nossa reforma sanitária dos anos 80, ou seja, da própria criação do SUS. Grande perda, não só para o SUS, que perde mais um de seus fundadores para lutar pela sua sobrevivência, mas para o próprio pensamento sanitário no Brasil, infestado hoje em dia por falsos profetas fardados ou dentro do figurino da Faria Lima. Hesio e Sérgio Arouca foram dois gigantes da luta intelectual pela saúde, nos anos 70 e 80, mas ao contrário de Arouca, Hesio era uma pessoa discreta, que nunca se embalou com a política partidária. Seu maior feito, para mim, foi o de ter saído diretamente – e com sucesso – de sua banca acadêmica na UERJ para a Presidência do INAMPS, nos anos 80, comandando diretamente a incorporação deste órgão ao SUS – ou, talvez, vice-versa. Convivi com ele na Comissão Nacional de Reforma Sanitária e nas lutas pela saúde ao longo da Assembleia Nacional Constituinte. É mais uma perda dentro de uma geração de lutadores autênticos em favor da saúde pública no Brasil. Faço a seguir algumas considerações sobre a era de lutas épicas que culminaram na criação de um inédito sistema nacional de saúde para o país, tendo na ativa profissionais de valor humano e intelectual da estatura de Hesio Cordeiro e outros.

A partida de Hesio sinceramente me deixa com a sensação que vivemos, em relação à saúde no Brasil, para o bem e para o mal, um verdadeiro Crepúsculo de Deuses. Isso nos afeta a todos os militantes da esquerda sanitária em geral, que dedicamos nossos esforços àquilo que depois se denominou reforma sanitária brasileira. Reforma? Nada contra tal denominação, mas acredito que a mesma ainda não se completou ou, por outra, em alguns aspectos não encontrou as vias adequadas de se realizar, mesmo com o passar dos anos. E se não foram poucos os acertos, com certeza nos perdemos em alguns enganos e ilusões. Permitam-me lembrar que eu também participei daqueles embates, seja como aluno da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (ENSP) em três ocasiões a partir de 1981; depois, fui Secretário Municipal de Saúde por duas vezes; delegado na VIII e IX Conferências Nacionais de Saúde; membro da Comissão Nacional de Reforma Sanitária; partícipe fundador do Cosems-MG e do Conasems. Isso, creio, me credencia a fazer as presentes considerações.

Mas os acertos de tal movimento sanitário, como ficou conhecido depois, se não foram poucos, mostraram alguns equívocos também. Os tais deuses, afinal, não foram assim tão oniscientes…

O maior desses enganos, a meu ver, foi ter considerado o SUS como autêntico “fruto de movimentos sociais”. Isso veio, por um lado, de certa visão triunfalista, de intelectuais que se viam como correias de transmissão entre as massas e o poder de decisão real (dentro do conhecido figurino leninista), nos moldes do antigo Partidão. De outro, a crença encarnada entre os que depois viraram petistas, de que as massas organizadas diretamente é que tomariam o poder, não valorizando tanto os intermediários. Ambas representam visões triunfalistas sobre o SUS, lembrando o enredo do clássico filme italiano, de Elio Petri: A Classe Operária vai ao Paraiso. Na verdade, não se havia ainda chegado lá, mas para os intelectuais que se envolveram (e foram hegemônicos) na criação do SUS, nos anos da Nova República, Hesio entre eles, a tomada do Palácio de Inverno, e com ela o acesso ao paraíso, estava, de fato, muito próxima. Defendeu-se, então, a ideia de que o SUS não devia nada aos políticos, sendo fruto de conquista efetiva da sociedade civil.

Os políticos de fato pegaram carona na construção de nosso sistema de saúde, mas quanto ao caráter e dimensão real dessa “sociedade civil”, tenho minhas dúvidas. Tudo bem, a não ser que chamemos de “movimento social” uma articulação de intelectuais e membros da burocracia pública, que começou a se adensar entre os anos sessenta e setenta, com localização geográfica preferencial nas capitais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Aí estavam Hesio e muitos outros, mesmo os que negavam a seu pertencimento a tal “vanguarda”, preferindo se declararem como membros de uma pretensa “sociedade civil organizada”. Mas de toda forma acho difícil ampliar o escopo do alcance dos tais movimentos civis, ao ponto de credenciá-los, por si só, como um autêntico “movimento social”. É preciso deixar claro que outros segmentos sociais, igualmente ou mais importantes do que este ilustre punhado de acadêmicos e burocratas, não estavam de fato engajados, pelo menos formalmente, na luta pela reforma do sistema de saúde. Mas se isso foi uma ilusão, certamente ela não deixou de produzir um fato histórico: a inclusão, mesmo que por linhas tortas, pela primeira vez da história do Brasil, da saúde como direito constitucional.

É claro que havia descrédito em relação ao funcionamento dos serviços de saúde dentro modelo então vigente, no qual se fragmentava a atenção previdenciária e aquela pública propriamente dita. Era um tempo em que perdurava uma irremediável divisão e verdadeiro apartheid entre os que portavam a “carteirinha” do Inamps e os que eram obrigados a disputar atendimento no sistema público ou filantrópico, por não dispor de tal passaporte. Isso sem falar nos que iam diretamente aos consultórios privados, desembolsando ali o quanto lhes fosse cobrado para cuidar ou manter a saúde. O que conhecemos hoje como “plano de saúde” ainda era total novidade.

O certo é que não havia uma pauta clara para a questão da saúde, pelo menos fora do circuito intelectual e burocrático referido acima. Assim, quem não tinha a tal carteirinha do Inamps, tudo o que podia querer era ter direito a ela, para o que era necessário ter emprego fixo e formal, com carteira assinada. É bom lembrar que mesmo internamente no sistema previdenciário as diferenças e desigualdades eram enormes. Tudo o que um afiliado ao IAPI (dos industriários), de notória precariedade no atendimento, poderia querer era uma equiparação do IAPB (dos bancários), onde os serviços eram supostamente exemplares.

Assim, é claro que havia insatisfações, sim, mas tudo o que se poderia desejar na ocasião seria uma assistência mais presente e acessível, não necessariamente unificada. Aliás, “unificar” poderia ter significado, para muitos, algo equivalente a “nivelar por baixo”. Não creio, assim, que palavras de ordem do tipo “unificação”, “descentralização”, “integralidade”, “participação”, além de outras que fazem parte do arcabouço filosófico do SUS, estivessem formalmente presentes nas demandas sociais, que de resto eram bastante amorfas e até mesmo quase invisíveis. Presumo, ainda, que falar em estatização ou, pelo menos, em presença estatal forte no sistema, não teria sido uma pauta muito palatável para muitos dos que desejavam melhoria na saúde pública. Os “postinhos” do sistema público espalhados pelo Brasil a fora, além de restritos em número, eram muito precários em qualidade e abrangência de atendimento.

Mesmo o movimento sindical não creio que também tenha se empenhado na criação de algo como o SUS. Ele estava dividido entre os que queriam o aperfeiçoamento da Previdência Social (em busca, quem sabe, de um “padrão IAPB” para a assistência médica) e os que já flertavam com a saúde suplementar, que acabara de ser inventada pelos burocratas do Inamps para si próprios, através do “Fundo Patronal”, hoje GEAP. Depois é que vieram tais novidades para outros trabalhadores, mais privilegiados, através dos hoje onipresentes planos de saúde-empresa. Quanto a querer melhorias no atendimento vigente em saúde, não havia novidade nem dúvidas: todos o queriam de fato.

Outro aspecto central do pensamento da geração de Hesio e muitos outros, era o do verdadeiro wishful thinking, ou seja, do pensamento desejoso, mas também ilusório às vezes, de tomar os impulsos mentais e os simples desejos como se realidade fossem, com raciocínios e decisões assim baseados, não nos fatos ou na racionalidade. Daí vieram palavras de ordem como: “todo poder aos municípios”, “controle social na saúde”, “o SUS deve oferecer tudo para todos”. Isso, entretanto, não impedia e até impelia estes agentes a se baterem como ferrenhos opositores dentro das próprias hostes reformistas, sendo clássicos os embates variados sustentados, por exemplo, entre Arouca e David Capistrano, refletindo tendências em choque, com ataques bem fundamentados, às vezes de alta virulência. Hesio, é bem verdade – e que se faça justiça a ele –não se envolveu em tal fratricídio. Mas não custa lembrar: quem considera o SUS como um produto “da esquerda” ignora o quanto este segmento político esteve dividido nos anos de sua fundação. Um armistício relativo foi firmado quando pessoas como Hesio, com autoridade e poder simbólico relevantes, fizeram sua parte, no processo de mudanças no Inamps, por exemplo.

A prática do wishful thinking tem muito a ver com a noção de militância que permeia o movimento sanitário brasileiro. Aliás, se há uma coisa que nós, da saúde, não podemos nos queixar, é a da falta de militância histórica em nossas fileiras. Mas nem tudo é assim tão brilhante neste terreno. O outro lado da moeda pode resultar de uma lógica de militância que divide o mundo em pedaços e, a partir daí, confunde o mundo, em sua totalidade, com cada pedacinho que se cria a partir dele… Tal lógica, também, não costuma admitir meios-termos, funcionando muito na base do preto no branco e do oito ou oitenta. Não é costume enxergar, ainda, o outro lado que existe em quase tudo que seja obra humana, apesar de exemplos históricos que saltam à vista. E os verdadeiros inimigos não costumam ser os mais alvejados dentro de tal lógica.

Para encerrar, talvez fosse o caso de retomar uma pergunta que me fiz e aos meus pares na ENSP há quase 40 anos, sem obter outra resposta que não fosse um olhar enviesado ou espantado, de quem encontra na rua um ET: onde os planos de saúde estão formando seus quadros técnicos e dirigentes? Na ENSP e no IMS/UERJ certamente não era. Pois ali o afã era o de desmonte do sistema dicotômico e fragmentado que o Inamps começava a deixar como herança, mas muito pouco se falava em uma pluralidade de prestação de serviços, não necessariamente fragmentada, que certamente se instalaria, a partir do crescimento já notável de outras modalidades de assistência, longe do slogan otimista (e irreal) do “tudo pra todos”. E deu no que deu. Enfim, creio que estávamos nos preparando para criar um sistema de saúde ideal, mas não fomos capazes de lidar com as contradições que a realidade nos impunha. 

Mas Hesio foi mais do que simplesmente um ator importante nesta luta. Desde sempre ele pertenceu à categoria dos imprescindíveis, como dizia Brecht. Talvez tenha sido embalado, como muitos outros, por alguns dos enganos citados, em extrema boa fé, sem dúvida. Mas ele teve ao mesmo tempo equilíbrio e compreensão estratégica da situação, possibilitando que fosse separado o certo do duvidoso e feitas as escolhas corretas na ação, ou pelo menos as mais honestas e possíveis.

Grande perda, sem dúvida.

***

Como disse Umberto Eco, são apenas “ucronias“, coisas que poderiam ter acontecido, se não fosse outro o curso da história. Não adianta chorar pelo leite derramado. Trago isso aqui apenas para efeito de refletir um pouco sobre o processo da construção do SUS. Seja como for, Hesio Cordeiro e outros estão totalmente absolvidos e reconhecidos por sua enorme e generosa contribuição nisso.

***

Nota de pesar: Hesio Cordeiro, ex-reitor da Uerj e um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS)

08/11/202021:31

Diretoria de Comunicação da UERJ

A ciência, a saúde pública e a educação brasileiras lamentam a partida de um de seus grandes intelectuais. Consternada, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) comunica o falecimento do ex-reitor Hesio de Albuquerque Cordeiro neste domingo, 8 de novembro, no Rio de Janeiro. Hesio Cordeiro tinha 78 anos e sofria de doença degenerativa. Ele não deixa filhos.

Mineiro de Juiz de Fora, Hesio Cordeiro tem sua trajetória entrelaçada à própria história do movimento sanitário do país e dos acontecimentos mais marcantes da saúde, nos últimos 45 anos. Da mesma forma, sua atuação como reitor da Uerj entre 1992 e 1995 constitui um marco, ao promover a capacitação docente e estabelecer as bases para o crescimento da Universidade como instituição dedicada não apenas ao ensino de graduação, mas também à pós-graduação, à extensão e à pesquisa científica.

Formado em Medicina pela Uerj em 1965, cursou mestrado na instituição em 1978 e doutorado na Universidade de São Paulo, em 1981. Desde 1971 até aposentar-se, em 1996, lecionou no Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj), unidade que ajudou a fundar e dirigiu entre 1983 e 1984. Hesio trabalhou também como consultor da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), atuando em diversos países. No biênio 1983-1985, presidiu a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), onde se destacou em defesa do Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira.

Crítico da mercantilização da medicina e das políticas privatizantes, Hesio Cordeiro teve presença marcante no cenário político nacional e intensa participação nos debates sobre saúde, tornando-se o primeiro sanitarista a assumir a presidência do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). Enquanto exerceu o cargo, de 1985 a 1988, investiu na reestruturação do órgão e na implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), tendo sido um dos principais articuladores durante o processo constituinte.

Foi sob a coordenação de Hesio Cordeiro, em 1986, que foi realizada a VIII Conferência Nacional de Saúde, consagrando as ideias defendidas pela reforma sanitária e que vieram a constituir princípios fundamentais do SUS: saúde como dever do Estado, universalização e integralidade na assistência à população, sistema único, descentralização, participação e controle dos serviços de saúde por seus usuários. Um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, o SUS completou 30 anos em setembro, mostrando sua importância diante da pandemia de Covid-19.

Hesio Cordeiro foi ainda diretor da Agência Nacional de Saúde de 2007 a 2010 e, em 2015, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Relembre o pensamento de Hesio Cordeiro sobre o papel da universidade neste trecho do Programa Campus, produzido pelo Centro de Tecnologia Educacional da Uerj em 1993.

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