Quem já estava no mundo nos anos 60, como eu, então criança e depois adolescente, certamente deve ter tido sua vida marcada pela criação de Brasília. Não se falava de outra coisa em todo o Brasil: JK prá lá e prá cá, ensejando desde marchinhas de carnaval a toada de Juca Chaves; estradas sendo rasgadas no Cerrado; a morte de Bernardo Sayão por suposto ataque de índios; o êxtase de visitantes estrangeiros diante das imensas obras em meio ao Cerrado; a descoberta da palavra Candango; as suspeitas de que o lago do Paranoá jamais se encheria; as denúncias de corrupção; a oposição ressentida da UDN e o entusiasmo sem peia de outros tantos. Acima de tudo era um país em desabalada carreira, seja para se encontrar seu futuro, ou pelo menos trazer esperança à multidão de analfabetos e marginalizados que aqui habitava. Um dos fatores que fomentava o clima de desconfiança que se instalara em alguns dos críticos da novacap era a questão do funcionalismo público, supostamente acostumado às “delícias” do Rio de Janeiro e totalmente infenso ou indiferente ao que o governo prometia na transferência para Brasília. E não eram poucas as promessas então, sendo a mais vistosa delas a tal “dobradinha” (não confundir com “rachadinha”), que permitia aos barnabés ousados que a ela aderissem simplesmente a multiplicação de seus salários pelo fator “2”. Mas mesmo assim havia os que resistiam. Foi o caso de Billy Blanco, compositor e cantor que já fazia sucesso nos tempos do rádio, mas antes de tudo funcionário público federal, lotado no antigo DNER, se não me engano.
Billy, originalmente William Blanco Abrunhosa Trindade, nascera em Belém, nos anos 20, mas pegara “um Ita no Norte”, fazia anos, e viera para o Rio de Janeiro a fim melhorar de vida, como tantos outros patrícios. Ele era formado em arquitetura, mas gostava de música, compunha e escrevia muito bem e logo fez sucesso na Capital Federal. Mas manteve seu pé na repartição pública enquanto pôde, se não por toda a vida.
Entre seus inúmeros sucessos estão verdadeiras pérolas da MPB, como foco no samba e na bossa nova, entre eles “Tereza da Praia”, “O Morro”, “Estatuto da Gafieira”, “Mocinho Bonito”, “Samba Triste”, “Viva meu Samba”, “Samba de Morro”, “Pra Variar”, “Sinfonia do Rio de Janeiro” e “Canto Livre”. Esta sinfonia do Rio de Janeiro, de 1960, composta por dez canções, é resultado de uma parceria com Tom Jobim.
Billy Blanco, até pela temática de suas músicas, certamente apreciava o Rio, como artista e amante de suas praias, paisagens, recantos, bares, mulheres, estilo de vida. Para ele, não haveria nenhuma “dobradinha” que o convencesse de vir explorar o longínquo (e talvez selvagem) Planalto Central. Isso ele confirma em um sambinha de 1960, intitulado “Não vou pra Brasília” – cuja letra é a seguinte:
Eu não sou índio nem nada
Não tenho orelha furada
Nem uso argola
Pendurada no nariz
Não uso tanga de pena
E a minha pele é morena
Do sol da praia onde nasci
E me criei feliz
Não vou, não vou pra Brasília
Nem eu nem minha família
Mesmo que seja
Pra ficar cheio da grana
A vida não se compara
Mesmo difícil, tão cara
Eu caio duro
Mas fico em Copacabana
Palavras meio que politicamente incorretas, como se vê, ao caçoar dos nossos estimados habitantes primevos. Mas naquela ocasião ninguém ligava pra isso, muito menos no Rio de Janeiro, onde já não havia indígenas havia alguns séculos. Da mesma época era a marchinha índio quer apito, menos incorreta na essência, embora sujeita a versões que descambavam para o pornográfico. Mas uma coisa é certa: Billy Blanco traduziu não só a sua visão de cidadão carioca, embora adventício, mas também a do funcionário público resistente a mudanças, talvez não só de cidade, mas de hábitos laborais também.
Fico pensando se esta simples letra de samba não conteria mensagens mais profundas. Quem sabe ela se ajusta a uma visão que o servidor público que veio espontaneamente (ou os que vieram, forçados) para Brasília tiveram como um lema e assim a repassaram às gerações que vieram depois? Sim, porque aquele miserê salarial geralmente associado às carreiras estatais (nem todas na verdade) nos outros entes da Federação, aqui definitivamente não se aplica. Temos não só carreiras bem remuneradas, algumas inclusive cobertas diretamente por recursos federais, imunes às oscilações da economia local, com níveis de vencimentos definitivamente superiores à média do país, tanto na comparação com o setor privado como, principalmente, no público. Isso, por si só, deveria transformar o DF numa espécie de xangrilá da burocracia estatal, mas a realidade está longe de mostrar isso. O que se vê por aqui são reivindicações permanentes, em escala, em cascata, que não raramente evoluem para greves, operações-tartaruga e ameaças de paralizações. E nas carreiras cobertas diretamente pelo governo federal, como no caso das polícias, isso é mais visível ainda.
Assim, me parece que um lema permanente entre os servidores públicos por aqui seja inspirado em Billy Blanco, ou seja, já que eu vim para cá (ou em nome de alguém que veio antes de mim), não hei de cair duro; já que não tenho Copacabana, pelo menos que me sejam oferecidas outras vantagens. Afinal, não pode ser pecado aspirar a ficar cheio da grana.
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