Filosofia e Pipocas

Vai aí um novo conto de minha autoria (ou, pelo menos, uma tentativa de fazê-lo)… Começa assim: Eu vendo pipoca na rua, em portas de colégio, de preferência. Não nasci fazendo isso, pelo contrário, estudei, cheguei até o curso médio, fiz concurso para banco e nisso trabalhei alguns anos. Depois os donos, trambiqueiros como eles só, deram um tombo no mercado e eu fiquei desempregado. Eu e mais uns dois mil… Se você gostou desta introdução, siga em frente.

Filosofia e Pipocas

Eu vendo pipoca na rua, em portas de colégio, de preferência. Não nasci fazendo isso, pelo contrário, estudei, cheguei até o curso médio, fiz concurso para banco e nisso trabalhei alguns anos. Depois os donos, trambiqueiros como eles só, deram um tombo no mercado e eu fiquei desempregado. Eu e mais uns dois mil. Tentei vender bilhetes de loteria, réstias de alho e até mesmo livros, de porta em porta. Aí resolvi trabalhar por conta própria, comprei este carrinho de pipoca quase novo, reformei e me pus no mercado. Assim vou sustentando minha família, mulher e dois filhos pequenos. A patroa faz faxina, a vida é apertada pra nós, mas mesmo assim, vamos levando.

Qual o problema de ser pipoqueiro? Já ouvi dizer que fizeram uma pesquisa, não sei onde, e esta foi uma das profissões que conta com mais simpatia das pessoas, ao lado dos carteiros e dos professores. Bem distante da polícia e dos agentes funerários, do outro lado.

Como trabalho na rua, me considero um privilegiado, pois posso observar o movimento das pessoas, conversar e trocar ideias com quem passa – e assim vou me ilustrando. Gosto também de ler, de preferência romances ou poesia, mas coisas mais técnicas ou eruditas, como Filosofia e Sociologia, não me pegam muito, pois tenho dificuldade com a linguagem e as frases empoladas dos autores. Deve ser por ignorância minha, claro.

Aqui na porta do Colégio Pequeno Principe, onde passo todas as tardes, tenho uma vitrine do que é o mundo – eu, pelo menos acho isso. É que mais à frente tem comércio e oficinas mecânicas, aqui é mais residencial, mas na rua de baixo, que parece bem família durante o dia, na verdade funcionam várias boates, onde trabalham garotas de programa. Não bastasse isso, não muito longe daqui tem o que chamam de cracolândia, com um monte de gente drogada, no último furo da degradação, se arrastando pela vida. Fico triste só de ver… Mas isso aqui é, sem dúvida, uma imagem do nosso país, ou talvez do mundo, com todas as suas alegrias, tristezas, misérias, sujeiras e mais o que houver.     

Aliás, esta turma do crack me faz dar giros nas ideias. O que os faz assim? Vejo por ali até uns engravatados, mas a maioria é pobre, pobre de doer, gente que nem pode ter perdido tudo na vida porque, na verdade, nunca teve nada para perder. As pessoas falam: é o sistema. Também acho, mas não sei se aquilo a que dão este nome – sistema -confere com que eu penso.

Para mim, este tal de sistema tem a ver com o que chama de capitalismo, este negócio do lucro de algumas pessoas, que vem da exploração de outros. Também vem da grande diferença entre aquilo que gera lucro para uns, os patrões, e o que é pago aos trabalhadores, que é uma miséria. Não que aqueles caras que estão se drogando lá sejam diretamente explorados por algum patrão sacana, mas no começo de tudo, acho que sempre pode ter acontecido coisa assim. Não posso aceitar esta diferença toda entre uns e outros. Este lance da propriedade privada de uns – e não de outros, da maioria – e também da tal liberdade, como o povo rico gosta de dizer, de boca cheia, mas todo mundo sabe que ela não é pra todo mundo. Na base de tudo isso o lucro, que é o que comanda o mundo, de verdade. Pensando bem, neste tal de “sistema” ao trabalhador não cabe outra coisa a não ser obedecer e vender seu muque – e assim o bem-bom fica somente pra quem tem o dim-dim.

Já ouvi gente dizendo, até algum de meus fregueses de pipoca mesmo, que é tudo uma questão de ajeitar as coisas para o tal sistema funcionar, ajustando os interesses entre aqueles que compram o trabalho e os demais, que vendem seu esforço à custa de muito suor. Ajustar? Acho que não é bem assim. As pessoas pertencem a grupos diferentes no mundo e ao longo dos tempos sempre um grupo dominou outro, através da violência, das guerras, da busca de mão de obra barata, do trabalho mal pago. Uma coisa assim, tipo trabalha ou morre – sabem? Isso vale para qualquer quitanda de esquina, mas também para a Shell, a General Motors, o Unibanco e sei lá o que mais. Fico vendo essas crianças aqui do Pequeno Principe, todas de classe alta, e percebo nelas e em seus pais uma grande demonstração do que é a luta pela vida, que alguns sempre ganham, enquanto outros sempre perdem. Nisso, não tem ajuste ou conciliação possível, acho eu. Mas em todo caso tenho certeza que mudanças não vão surgir de alguém como este pipoqueiro aqui, mas certamente de gente mais ilustrada e com capacidade de liderança – mas que no fundo tenha ideias semelhantes às minhas, totalmente distantes dessa tal de conciliação entre gente tão desigual, coisa em que eu realmente não boto fé.

Mas como eu dizia, o pedaço aqui é movimentado. Todas as desgraças – e também as graças – do mundo parecem passar nessas ruas. Se eu fosse um escritor de verdade, ia escrever um livro só com o que vejo por aqui. Com ele acho que estaria contando a verdadeira história da raça humana. Quem sabe um dia chego lá? Outro dia, por exemplo, a polícia resolveu dar uma batida na zona do crack e foi um barata-voa dos diabos. Mas os craqueiros – e mais gente que apareceu – logo se juntaram, mais adiante e vieram pelas ruas botando pra quebrar. Não sobrou vitrine inteira. Por pouco perco meu ganha pão. Ai de mim se não guardasse o meu pobre carrinho de pipoca na área interna aqui da escola. Ainda bem, que eles deixam, não fazem questão.

Mas esses craqueiros também me fizeram girar a manivela das ideias… Meu Deus, será de onde eles tiram essa força toda? Cada um por si só, não valem nada, mas quando se juntam como aconteceu na semana passada, o mundo vem abaixo. Essa força parece vir de alguma camada profunda das ideias deles, sei lá – e só aparece de verdade na multidão, na massa. Será que tem coisa aí que é herdada, dos pais, por exemplo? Acho que não… Tem muita gente ali que vem de famílias ordeiras, submissas, lá do último interior do Brasil. Seriam então coisas comuns a todos os seres humanos? Essa força da massa, da gente ajuntada, pega o que cada um tem na cabeça, levando junto ideias as mais estranhas e variadas, adquiridas ao longo da vida. São imagens e registros que cada um e todos têm na mente, mas que de repente se juntam e, desculpem o trocadilho, pipocam em alguma ocasião especial, como foi o bota-pra-quebrar dessa gente, coisa de uma semana atrás.

Outro dia estava conversando com um freguês meu, pai da Aninha, aluna aqui da escola, que adora as minhas pipocas. Falei dessas coisas para ele, especialmente desse lance da força das pessoas quando se ajuntam. Ele é legal, ficou meu amigo, apesar de ser um intelectual, professor na Universidade, gente fina. De repente me perguntou se eu já tinha lido uns caras, sei lá, parece que de nome Marques, Gramis e Iung. Eu disse que nunca tinha ouvido falar dessa gente e ele duvidou, disse que eu estava fazendo hora com a cara dele. Mas era verdade, jurei. Falei que se tiver tempo vou até correr atrás dessas leituras, mas o professor parece que não quis acreditar em mim. Ainda bem que Aninha faz questão de minhas pipocas e assim o pai mantem o contato e a amizade comigo. Mas não perde oportunidade de me perguntar se eu conheço um tal de Froid, ou coisa assim, depois que eu comentei com ele umas tretas dos caras que vão atrás das garotas de programa da rua de baixo. Que coisa, parece que esse cara pensa que ideias são só aquelas que a gente tira dos outros! Comigo não, eu tenho as minhas…

Mas aproveitei para perguntar o que ele afinal de contas via de tão interessante no meu modo pensar. Por que será que ele presta tanta atenção nas coisas que este pipoqueiro aqui diz?

Ele achou graça e começou a me explicar. Disse que algumas pessoas, talvez a maior parte delas, tem uma maneira idealista de pensar. Ou seja, como princípio e finalidade de tudo haveria as ideias, nada mais. Achei que era o meu caso, mas ele negou: – Espere que vou lhe explicar direitinho! Ele me disse que esta era a maneira de pensar de um tal de Platão, e também de seus seguidores, muitos anos antes de Cristo, na antiga Grécia. Para este grupo, disse ele, o mundo seria algo capaz de ser capturado pela inteligência dos homens, e só uma visão assim seria a mais verdadeira e confiável. Mas do outro lado havia um mundo material, percebido mal e mal, e que não passaria de uma ilusão, que na verdade mais confundiria do que esclareceria as pessoas. Me falou também da caverna, como um símbolo da dificuldade os homens se aproximarem da verdade, pois dali de dentro só poderiam perceber o mundo de forma distorcida.

Nossa! Aquilo mais me confundia do que esclarecia… Mas indaguei dele: e eu, meus pensamentos, como ficamos nisso?

Então ele me explicou uma tal de dialética, que era a maneira dele pensar – e minha também, segundo ele. Mas que havia mais de uma dialética, sendo a nossa chamada de materialista. Protestei, disse pra ele que eu era seguidor de Kardek, acreditava na reencarnação, essas coisas, mas ele explicou que isso não tinha nada a ver com o uso de tal palavra, que aqui fazia parte do campo da filosofia, não da religião.  Que eu ficasse tranquilo com o meu materialismo, que não seria nenhum pecado.

E avançou sua explicação, com variadas palavras novas para mim, tais como tese, antítese, síntese, contradição, superação, aparência, essência, lógica e outras, ditas até mesmo em alemão. Mas isso eu não sei reproduzir por escrito. Me deu alguns exemplos sobre a transformação da água em vapor e depois em chuva, das estações do ano com suas marcas características, falou do jogo da política atual e outras coisas. Disse que um verdadeiro resumo dessas ideias era uma frase de um outro grego antigo, este chamado Heráclito, se não me engano. E que este gregário disse um dia algo como tudo passa, nada permanece, o que eu achei até meio banal.

Nisso Aninha sai da escola para comer sua pipoca, eu tive uma ideia e indaguei do pai: – Será que a tal dialética seria assim como esta menina que agora chega aqui não ser mais a mesma que entrou na escola de manhãzinha, porque ela já mudou, aprendeu coisas; a escola já não é a mesma, porque ficou mais velha; a natureza também, porque começou a chover e o vento varreu a calçada? Seria alguma coisa assim que o tal do grego queria dizer?   

O pai de Aninha botou dois olhos a r r e g a l a d í s s i m o s em mim, me deu um abraço forte e me convidou para tomar uma cerveja com ele logo que deixasse a filha em casa. Fiquei pensando no que teria feito de tão certo, aparentemente. Ou de errado… O que significava aquele convite, assim, de supetão? Quem sabe o pai de Aninha queria me corrigir de algumas ideias tortas que eu havia deixado escapar?

Mas se é para aprender mais, não recusarei tal convite. Vou lá.

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