Eu mato sim: baratas. E também elimino formigas, percevejos, escorpiões. Estou me especializando em lesmas, há uma praga delas aqui na cidade. Acho que é uma profissão de grande interesse para a sociedade.
Mas não vim parar aqui como escolha minha, principal. Eu tentei vestibular para biologia e também veterinária e não consegui passar, Isto é, passei numa escola particular. Mas quem é que dá conta de pagar mensalidade de dois ou três mil reais numa faculdade? Quem vem de escola pública, sabe como é? Eu precisava trabalhar, ganhar a vida.
Criei uma empresa de mentirinha, a Baratinha. Digo isso porque a empresa sou eu mesmo, não tem CNPJ nem nada. Eu, meu celular, minha bombinha e minha bicicleta. E Deus no céu. Pagamentos, só por pix.
No começo me achava meio ridículo, como matador de insetos. Eu tinha colegas de escola que conseguiram até entrar em faculdades de filosofia e pedagogia. É bem verdade que a maioria dos outros fracassou, não foi além do ensino médio. Mas fracasso não é comigo. Comecei a acompanhar um parente do ramo, resolvi ler coisas sobre o assunto, fiz um curso no Senac e entrei para o ramo dos insetos e pragas. E modéstia parte estou me dando bem, é raro o dia que não faço uma ou até duas aplicações. No último final de semana fiz cinco, um recorde absoluto!
O que me surpreende mais é ver como faço parte de uma profissão que as pessoas respeitam. Eu juro que não imaginava que fosse assim. Bem, não posso deixar de reconhecer que também faço minha parte, procuro ser educado com todo mundo, aprendo o nome dos clientes logo de saída, cumprimento e pergunto como estão. E como gosto de conversar, de saber das coisas por inteiro, acabo até fazendo amigos e me entretendo em conversas curiosas.
Mas como eu dizia, é uma profissão respeitada. Afinal, quem é que quer acordar pela madrugada e dar com uma barata no banheiro? Abrir um armário e ver essas bichas correndo para se esconder? Ver uma criança pisar em um escorpião? Para não falar em formigas circulando pelas mesas, armários e pias em total desconsideração com os donos da casa. É comigo mesmo resolver tais problemas.
Me sinto realmente útil para a sociedade. Muito mais do que alguns que circulam por aí, flanelinhas ou vendedores de limão nos semáforos, por exemplo. Eu ando sempre uniformizado, mandei fazer cartão de visita, tenho um logotipo da Baratinha no guidão da bicicleta etc e tal. Sempre fui um cara organizado.
O meu gosto pela conversa e pelo bom trato com as pessoas tem me rendido amizades e satisfações. Como dizia, tem hora que me pegam para uns papos diferentes, que aprecio muito. Outro dia mesmo um cara resolveu me mostrar sua coleção de medalhas. Tinha um baú inteiro delas, de todas as variedades possíveis. E não eram só esportivas não, tinha medalhas de olimpíadas de matemática, encontros de Lions Clube, participação em retiros de igrejas e muita coisa mais. Quis me mostrar seus diplomas também, mas aí apareceu sua mulher, mandou ele parar com aquilo e depois me esclareceu que ele nunca disputara uma partida de nada, e nem mesmo alguma olimpíada . Em faculdades, só entrou como faxineiro. Comprava tudo aquilo em sebos e bancas de rua. Era seu hobby, nada mais. Ele se realizava quando encontrava algum incauto bem educado que tivesse paciência com ele. E foi se desculpando. Não tem problema, falei. Estes aí tenho certeza que me chamam de novo para dar manutenção do controle de suas baratas.
Outro dia atendi uma perua oxigenada. Nenhum preconceito, mas a mulher era muito esquisita mesmo. Cabelo amarelo, parecia um canário. A pintura lhe escorria da cara, o batom ultrapassava em muito os limites da boca. E ainda me atendeu de penhoar transparente, com um sapato cujo salto parecia uma vareta, com uns vinte cm de altura. Vinte é exagero, mas pelos menos uns quinze lá isso tinha. E me veio dizendo, cheia de trejeitos e gritinhos que o-d-i-a-v-a baratas. Quase falei com ela: pois eu amo elas, mas me calei, deveres do ofício sabem como é?
Havia milhões de baratas no apartamento da loura. E formigas também. Até uma lacraia morta achei na cozinha. Contratei o serviço com ela, pelo preço normal e desci para pegar a bomba na bicicleta. Quando voltei, a dona tinha trocado de roupa. Vestia agora um baby-doll ainda mais transparente, por baixo do qual parecia não usar nada. E foi logo dizendo: meu bem pode entrar. Uma onda de perfume me entrou pelas narinas, me deu até dor de cabeça (e olha que estou acostumado com cheiros fortes, até de venenos). Eu expliquei que precisava descer de novo, para pegar alguma coisa na bicicleta. E me mandei. Afinal sou um profissional, uai.
Um sujeito magro, acinzentado e com o cabelo chegando à cintura me perguntou se meus venenos eram orgânicos, porque ele era adepto do veganismo e tinha dúvidas sobre o que poderia ser usado em sua casa. As baratinhas o incomodavam demais; se fosse só pelas formigas, tudo bem, conseguiria conviver com elas. Eu confesso que vacilei na resposta, dei uma gaguejada enquanto encontrava uma resposta melhor. Ele me disse que gostaria de anotar os nomes dos preparados e que depois me ligaria para confirmar o serviço. Achei melhor mesmo, pois este me pareceu o tipo de cliente que acabaria por me trazer problemas.
Teve um outro que me contatou sem maiores perguntas, mas quando fui fazer o serviço me proibiu de entrar em um dos quartos da casa. Insisti, explicando para ele que o serviço só seria garantido se pudesse ser realizado em todos os cômodos. Ele ficou incomodado e foi taxativo: ou faz do jeito que eu quero ou não faz. E eu fiz, claro. Só avisei que não dava garantia. Ele deu de ombros, tudo bem, o freguês é quem manda. Mas me deu uma baita curiosidade em saber o que ele escondia ali. Depois, da calçada, vi uma placa na janela dele: J. Moraes – Taxidermista.
Fui procurar no dicionário que ofício seria esse? E eu, que respeito os profissionais, fiquei pensando qual seria o problema deste senhor Moraes com os inseticidas. Vi então que tinha a ver com a arte de empalhar animais para estudos científicos ou exibições, utilizando diversas técnicas de preservação. Deus do céu, que tipo de animal o Moraes empalhava ali, ao ponto de não permitir a entrada de ninguém, nem de um dedetizador? Sossega, cabeça… Resolvi guardar minha curiosidade só para mim mesmo.
E as curiosidades da profissão nunca param. Teve um que me chamou, para um serviço, pelo que eu supunha. Na porta do apartamento uma placa: tudo que vive é sagrado. Achei que era uma homenagem a Beto Guedes, mas o nome que estava em baixo era Blake – ou algo assim. Nunca tinha ouvido falar. O sujeito abriu a porta e me convidou para entrar e sentar. Estranhei, quase ninguém faz isso com quem vai a sua casa para simplesmente matar baratas. Cheiro de incenso forte no ar, até gostoso. Perguntou se eu queria um chá. Não aceitei. Daí me perguntou se eu havia lido a placa na porta, se eu sabia quem era o tal Blake. William Blake. Se eu havia entendido a mensagem. Pela minha cara ele viu que eu estava completamente por fora de tudo. Então resolveu me explicar que a vida é sagrada, seja de um homem, de um tigre, de uma minhoca ou de uma barata. Se eu não achava que minha tarefa contrariava certas leis da natureza.
Fiquei sem saber o que dizer. Pedi desculpas e fui saindo de fininho, com ele descendo as escadas atrás de mim, quase gritando agora, que eu abandonasse esta minha profissão infame, assassina e antinatural. Cruzes! Já estava vendo a hora em que o eliminado seria eu, não mais alguma baratinha.
Eita, vou me delongando. É que tenho muitas histórias para contar. Só mais uma… A daquela mulher de tranças e jeito de cigana que me perguntou se eu topava lhe dedetizar a casa dela em troca de uma aula de yoga ou de respiração tântrica, uma coisa assim. Pode?
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