O Redentor

Não foi nada não, lhe asseguro. Os pipocos que o senhor ouviu não foram de briga de homem. É coisa minha mesmo, gosto de praticar a pontaria, quase todo dia faço isso. Agora, com o preço da munição pela hora da morte – desculpe a brincadeira – está ficando mais difícil, mas mesmo assim não deixo de dar meus tirinhos, sempre num barranco aqui do quintal, para não acertar ninguém – Deus me livre.

Já fiz disso profissão e acho que até criei fama. Mas agora o que me interessa são essas galinhas, essa horta de couves, algum leitão que engordo para o Natal. Armas quase não tenho mais, só uma zinha a Flobé, quase um cisco de carabina, brinquedo de menino perto do que já tive nas mãos, em tempos passados. Mas isso já acabou para mim, total: o senhor fique sabendo.

Minha vida agora é outra. Vi que o senhor arregalou o olho quando eu falei que já vivi disso. Caçador? Espere que eu conto. Reparei no susto seu quando falei de coisas minhas, antigas. Não me ofendi. Longe de mim fazer qualquer julgamento de pessoa tão educada, cidadão de verdade, como é o senhor. Não carece dizer que espero isso das outras pessoas também, e do amigo mesmo, por que não? Mas relevo seu jeito de me olhar, os costumes daqui sempre foram meio brutos mesmo. Gente que vem de fora, ainda mais se for mais fina, como o amigo, não está acostumada, e com razão até estranha. Agora está melhorando, mas tem umas coisas agarradas em demasia na cabeça das pessoas. Ou será na alma delas?

Viver de arma na mão, de tocaia, preferir um fundão de mundo para morar… Não, não era bem de caçadas que eu vivia. Ou um pouco disso, sim, dependendo do bicho em que se pense. E se eu disser para o senhor da natureza desse que eu caçava, sem penas, sem rabo, apoiando-se no chão em dois pés? Bichos falantes, parece que até pensantes, mas sempre a engenhar malfeitos por aí? Bichos-homens, claro, não faço segredo; não se assuste comigo. Mas nunca, nunquinha, bichos de saia, ou em idade de brincar. Mas aqui no fundão, o senhor sabe, se brinca muito pouco tempo na vida…

Profissão de família: avô, tios, primos. De pai, não sei, nem conheci o meu. Minha mãe me disse uma vez que ele foi morto por um primo dela, a mando de meu avô. Mas não sei muita coisa sobre isso; e para falar a verdade, prefiro nem saber. O que sei é que serviço desse tipo era demais por aqui, em antes. Esse mundão de terra era tudo de uma família só e assim o povo foi devagarzinho dando um jeito. Uns morriam de tiro, outros de facada, uns tantos de veneno, outros sumiam no mundo, de medo ou mesmo para escapar de coisa pior. Depois se arrumava o resto, papéis em cartório, certidões, registros, alvarás, essas coisas da lei. Da noite para o dia o arame farpado corria solto. Minha família era do ramo, mas não sujava as mãos nisso de papelório e fazimento de cercas na calada da noite; pegava a empreita de fazer limpeza e só. Aqui teve gente que botou fogo num cartório inteiro! Questão de honra para nós não se meter em tal tipo de empreita, dizia meu avô, que Deus o tenha. O resto era com a rabulice dos advogados e outros iguais a eles, na cidade: um povo que nunca soube o que era honra ou compromisso; umas pestes. Assim meu avô falava deles.

E era coisa organizada. Meu avô, por exemplo, é o que diz o povo ainda hoje, só pegava serviço certo, de gente que tinha dinheiro e até conta em banco. Nunca ia atrás de trabalho; os interessados é que vinham até ele. E era gente de longe, muitas vezes. Um fazendeiro, dizem, viajou mais de uma semana só para combinar serviço. Dar conta de bagrinhos era coisa que ele passava para algum filho ou à sobrinhada. Ele, não. Só pegava serviço grosso. Mas mão de obra para o ofício não faltava. E houve caso até de gente que se deu mal por tentar pegar o serviço que era para outro fazer. Como uma empresa verdadeira, dessas da capital, assim donas de meio mundo.

E olha que este meu avô morreu tarde, na cama, cercado de família, mulher oficial, padre e tudo mais. Nas quermesses da igreja sempre oferecia um novilho ou uma leitoa no ponto para o leilão. E até confessava no padre… Era assim: só iam parar na cadeia os mais sem sorte ou que queriam mudar o jeito certo de se fazer as coisas.

Mas o senhor quer saber como começou isso para mim e vou contar. Só sei que um tio meu, certa vez, tinha pegado um servicinho desses, mais um na rotina dele, e adoeceu, não pôde cumprir. Aí, passou pra mim, que na verdade já andava me preparando para quando chegasse minha vez. E com facilidade e nenhum medo ou remorso despachei um sujeito ruim como quê, que devia dinheiro pra todo mundo e ainda tinha mania de se engraçar com a mulher dos outros. O mundo ficou livre desse aí, graças a mim – e este já foi tarde. Entre o contrato que me fizeram e a questão bem resolvida passou menos de uma semana e quando deram com o infeliz, os urubus já tinham feito isso antes, no fundo de uma grota. Assim foi que criei fama e aos poucos fui vencendo na profissão.

Mire e veja: só de garanhão abusado já livrei o mundo de uns cinco ou seis; de genros metidos a besta e caçadores de herança, além de outros sujeitos perdulários, outros tantos; assassinos, já perdi a conta; confrontantes renitentes, nem sei quantos, isso é o que mais dá serviço por aqui. Tinha também aqueles que queriam inverter as regras da natureza, me envergonha dizer, aqueles homens que se deitam com outros, como se fossem mulheres. Esses, não perdoava. Mas recusava certas coisas também: mulher que bota chifre em marido, por exemplo, deixava por conta dele mesmo, para criar tento. Mas se a encomenda era para dar um conserto no garanhão, era comigo mesmo. E emendava o tal sujeito para sempre, aliás. Encomenda para moleques não pegava, a não ser de uns danados aí que com quinze ou dezesseis anos já cometem coisas como se tivessem dezoito ou vinte. Um, por exemplo, nessa idade, quis se engraçar com uma mulher honesta, vinte anos mais velha do que ele, esposa de um sitiante lá adiante. Ficou nessa proeza, não foi adiante. Minha lei era a seguinte: se podem votar, também podem pagar pelas estrepolias que fazem. Ora se podem!     

Teve uns casos estranhos, diferentes, também; é da profissão. Por exemplo, um que me chamou porque queria desistir de viver e não tinha coragem para fazer isso. Eu fiz para ele. Qual o problema? Acho que é tipo da questão que cabe às pessoas decidir – e só elas mesmas. Eu apenas fiz o que aquele sujeito me pedia, ou melhor, me pagava para fazer no lugar dele. 

Outro caso foi o daquele homem que pegou doença ruim, parece que o tal do fogo-selvagem. O corpo dele virou uma chaga só. De manhã, quando lhe abanavam o lençol, caía pra mais de meio-quilo de pele solta, em pedaços, no chão. E aquilo fedia a mijo de rato. A mulher o abandonou e os filhos foram levados pelos parentes, por caridade. E o coitado mandou me chamar. Achei que era para dar conta de algum desafeto, porque ele tinha motivos para isso, mas não: era ele mesmo que queria dar um jeito naquilo, acabando com aquela vida que para ele faltava sentido. Mas dessa vez recuei. Eu sabia de coisas que ele fazia quando estava sadio, tomando terra dos outros, emprestando dinheiro e até mesmo mandando matar quem não lhe pagasse. Achei que era de bom tamanho ele penitenciar um pouco de seus pecados, sendo queimado vivo por aquela doença maldita. Aquilo era até bem pouco para um sujeito ruim como ele.     

Mas não se assuste comigo. Só lhe quero bem e fico muito aprazido com sua visita, coisa rara por aqui. Já vi que o senhor veio em tarefa de paz, para me conhecer, parece que escreve sobre a vida de pessoas assim como eu, meio diferentes das demais. É isso mesmo? Eu bem-queria ter ganhado minha vida com um trabalho de outro tipo, quem sabe como o seu, mas sou de pouca letra, mal e mal faço uma lista de armazém. Carta, nunca escrevi – e nem recebi também. Leio alguma coisa, principalmente esses almanaques de farmácia, que trazem luz para um mundo de ignorância como este aqui em que vivo.

Quem bem me ilustra e esclarece é meu compadre e amigo Clemente, que lê muito e deve ter para mais de vinte livros em casa. Ele sempre me diz que eu devia me esforçar para aprender cada dia mais coisas, que a gente abre a cabeça assim. Mas aquelas letras todas juntas, uma página depois de outra e mais outra, isso costuma me dar uma dor de cabeça dos diabos e até me embaralha a vista, a ponto de me tontear. Quando vou em visita ao meu compadre ele sempre lê umas coisas nos jornais para mim. Só outro dia descobri que na verdade é coisa já acontecida, pois se os jornais saem todo dia nas cidades, aqui eles são chegam lá uma vez ou outra – o senhor sabe: lugar mais sem eira nem beira, este. Ele gosta de ler umas coisas mais espirituais, também. Eu escuto com atenção, embora nem tudo seja de meu entendimento completo.

Meu compadre conhece minha história. Ele sabe que agora me retirei de tudo, cuido só aqui deste sitiozinho. Mas ele sempre vem com uma conversa que não existe pecado que não possa ser perdoado, coisa que acho que ele tira das leituras dele, de um tal de Cardeque. Ele insiste que preciso pedir perdão, ou, pelo menos, reconhecer o que fiz de errado. Mas não consigo pensar, de fato, que eu tenha sido na vida um assassino criminoso. Nunca tirei a vida de gente de bem, esses que trabalham de sol a sol, são bons pais de família, respeitam a mulher dos outros e tudo mais. Não! Isso nunca fiz e nem faço! Pelo contrário, acho que livrei o mundo de um tanto de safados, desonestos, falsos, invertidos. Acho que deviam era me agradecer, como alguém que tira o mal do mundo, mudando ele para melhor, deixando mais limpo e mais fácil de se respirar. Do que devo pedir perdão, então? Para mim, de nada, nadinha…    

Aí a minha conversa com Clemente empaca. Aprecio e respeito demais este meu compadre, mas acho que seu pensamento tem pouca escora. Além do mais, já fiz minha parte, mudando de vida como eu mudei. E já faz tempo. O que me importa agora são esses leitõezinhos, esses pés de couve, essa rocinha de feijão andu – apenas disso me ocupo. Nada de contratos, nada de carabinas, de tocaias, de arrastar fardos para as grotas. Com a flobezinha apenas treino minha pontaria, pois, afinal de contas, não alcanço se ainda posso precisar dela. Não como antigamente, para ganhar a vida, mas agora só para me defender. E também caçar uma paca, de vez em quando. Sei que tem gente que me quer ver debaixo da terra, este povinho daqui é por demais vingativo, tem a alma meio suja.  

Para mim, meu senhor e amigo: a gente está no mundo como numa travessia. Não pode ficar parado vendo as coisas ruins acontecerem sem que se faça nada. E que me desculpe aquele meu compadre lá: pecado, para mim, é coisa bem diferente, não pode ser o que alguém faz com boa intenção.

E sei que existe de verdade no mundo é a gente humana mesmo. Uns bons, outros ruins de amargar. Cada um fazendo sua parte na travessia. O resto é nada; ou o destino da gente.

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