Mais um que se vai…

Quando vejo as fotos feitas por um fotógrafo itinerante, que atendia pelo curioso nome de Pantaleão Alcaraz, e visitava o Colégio Estadual (e talvez muitas outras escolas também) para documentar as turmas, a cada ano, surpreendo-me com o fato de que apenas me lembro do nome daqueles adolescentes, perfilados junto a suas carteiras escolares, em poses ora circunspectas, ora apalhaçadas. Mas pelo menos de um ou dois desses colegas sempre me lembro, e entre eles Saulo da Matta Viana Barbosa, ou Saleba, que fez comigo a quarta série e mais algum outro ano, qual, exatamente, não me lembro mais. E há uma razão muito simples para tanto: ficamos amigos na ocasião e, mais do que isso, voltamos a nos encontrar em Brasília, muito tempo depois, reatando a velha amizade da juventude. Além disso, éramos relativamente vizinhos, ambos habitando o vasto e emblemático território da Barroca, em BH. Eu na rua Selênio, já na vertente para a Nova Suíça e ele nos altos da Cura D’Ars, próximo à antiga caixa d’água. Isso nos possibilitava voltarmos juntos das aulas, caminhando, apesar da longa distância e em pleno sol de meio dia, bem uns 4 km entre o Santo Antônio, onde ficava o Colégio Estadual e a nossa Barroca. E nem é preciso dizer que naqueles périplos peripatéticos bem que nos esforçamos em resolver os problemas, seja do colégio, da Barroca, da cidade ou mesmo do mundo. Saulo era mais lido do que eu, de modo que eu apreciava, de fato, sua companhia, entre outras razões para me ilustrar. Mas a verdade é que possuíamos forte sintonia um com o outro, daquele tipo que não há como explicar muito.

E tanto a sintonia era grande que em certa ocasião, passados quase trinta anos de nossas últimas caminhadas pelo trajeto costumeiro nas avenidas do Contorno e Amazonas, eu recém-chegado a Brasília, encontrei Saulo, por acaso, em um desfile do Bloco Pacotão, que marcou época na cidade com sua crítica política. E tal como dois gambás nos farejamos e retomamos imediatamente aqueles conciliábulos pretéritos.

Saulo, que os íntimos, como eu, sempre chamaram de Saleba, formou-se em Sociologia na UFMG e veio para Brasília bem antes de mim, para trabalhar no IPEA, onde fez carreira. Como tantos outros servidores da instituição, prestou serviços através de cessão a outras instâncias, principalmente na Câmara Federal, onde se tornou assessor qualificado de políticos importantes. Do ponto de vista profissional tínhamos pouca coisa a intercambiar, eu no Ministério da Saúde ou na Universidade, ele no Legislativo. No início os encontros eram esporádicos e meio formais, lembrando-me, especialmente, de uma festinha para a qual ele me convidou, onde eu fiquei constrangido (e creio que ele também…) diante de uma bancada de alagoanos colloridos, figuras aliás abundantes no DF no início dos anos 90, que lá faziam presença. Tal ambiente, confesso, não me agradou muito e eu logo dei um jeito de cair fora. Mas esta fase da vida dele passou, até porque Collor acabou sendo expelido e pude retomar, com mais afinidade, nossos papos dos anos 60.

Mais tarde, já no final da década, em um de nossos encontros, agora almoços mensais, ele me apresentou um colega de Câmara, ao qual de início eu encaminhei um “muito prazer” convencional, para logo verificar que eu já conhecia aquela figura de outros tempos. Falo disso aqui porque tal pessoa, com quem eu perdera o contato há tempos, acabou se transformando em um dos melhores amigos que tenho hoje. Seu nome é Eduardo Fernandez, e ele associa raízes mineiras sertanejas montesclarenses com a tradição culta de um avô de extração europeia, o compositor erudito, um dos mais notáveis do Brasil, aliás, Lorenzo Fernandez.

O fato é que retornei aquela bela amizade antiga com Saleba, que trouxe para mim uma compensação para o sentimento de falta que eu sentia, relativo a ter pedido de vista quase todos os meus amigos de juventude. Aproveitamos bem nossas tertúlias, nos tais almoços mensais no Beirute, agora junto com Eduardo Fernandez, David Lima, Nicolas Behr. Até que começamos a perceber a dificuldade cada vez maior de Saleba em se locomover, mesmo em pequenas distâncias, mostrar tropeços crescentes em lidar com os talheres, além de ter a fala gradualmente se tornado arrastada e quase inaudível. Ele recebera a visita inesperada e indesejada da doença de Parkinson e nossos contatos se tornaram novamente rarefeitos.

Hoje, cinco de fevereiro de 2024 recebo a notícia de que ele partiu. É a vida. Lembro-me do meu pai, que aos passar dos 90 anos (ele chegou a 102!) deixou de lamentar a perda cada vez mais habitual de amigos. Não que estes não mais morressem, mas apenas porque já não mais os havia vivos. Triste sina essa de a gente se animar diante da constatação de que poderíamos estar vivendo tempos piores, ou seja, de não ter mais ninguém para lamentar a perda, enquanto não chegue a nossa vez.  

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