Não foi uma vida qualquer…

Viver mais de cem anos, para quem acabou de nascer, pode até ser considerado uma coisa fácil. Na atual geração muitos conseguirão isso sem maior esforço, graças às vacinas, aos cuidados médicos, às informações abundantes, à água tratada e à boa alimentação. Haverá sempre alguém que mesmo assim não chegará lá. Faz parte da vida…

Mas outra coisa é ter nascido em 1919, quando mundo era bem outro. Partos eram feitos em casa, muitas vezes com a ajuda apenas das comadres mais experientes e prestativas. Umbigos caiam por si mesmos, com, sem ou apesar dos remédios caseiros. Puericultura e acesso a pediatras ninguém sabia o que era, muito menos no ambiente rural. Dentistas itinerantes, em lombos de mulas, apareciam de vez em quando, mas só para arrancar dentes doloridos.  Vacinas? Isso só não seria um luxo porque escapava a todos o seu significado e acesso.

Quem escapava vivo após o primeiro ano de vida, algo que boa parte dos bebês não conseguia, era ainda perseguido pelo sarampo, pelo tétano, pela difteria, pela tuberculose. O leite materno mal dava para esperar a chegada do próximo filho. Naquele tempo o fantasma da gripe espanhola ainda rondava, principalmente nos fundões do país, onde ela chegou e certamente saiu mais tarde do que no restante do território.

Automóveis, caminhões, motocicletas, ônibus, rádios, geladeiras, máquinas diversas ainda não haviam se mostrado por lá.

Depois veio a escola, com o professor que ia de fazenda em fazenda, bravo como quê, armado permanentemente de ameaçadora palmatória. O menino era canhoto. Então, tome bordoada para consertar o que era defeito tido como muito grave naquela época.

Como se isso não bastasse, o domínio tirânico de um pai-patrão severo, bem na medida da época. Trabalho desde cedo, na enxada, no curral, no comércio, no leva e traz de recados. Um irmão ou irmã chegados com regularidade, um após outro, ano sim, outro também. Essas coisas que roubam definitivamente a infância de alguém.

Não era um tempo em que fosse permitido ser frouxo. Esses ficavam pra trás e sua lembrança eram apenas cruzes toscas num cemitério quase abandonado à beira de alguma estrada.

Chegar aos 15 ou 20 anos era um verdadeiro exercício de sobrevivência, mas neste quesito ele foi aprovado, com louvor.

Encontrar rumo na vida era outro dilema. Ninguém queria repetir aquele ritual de “mais do mesmo” que fora a vida de pais e avós até então. Toca a procurar profissão, de olho, quem sabe, na cidade grande.

De toda forma, o berço natal já havia ficado pequeno para ele, assim como a cidade um pouco maior em que a família se assentara para que os filhos, já moços e moças, tivessem um futuro melhor. Ali ele esteve em um balcão de comércio, também ajudando um tio meio mascate. Sua voz melodiosa abrilhantou, por algum tempo, a programação da rádio local. Tudo, menos ficar parado.

Mas a vida dá voltas e lhe mostrou que ainda não era sua vez de ascender à cidade grande. Um parente distante, professor de Agronomia, lhe abriu o caminho para que a vazão do fluxo agrícola tradicional da família se cumprisse, desta vez embalado pelos conhecimentos mais modernos que o país podia oferecer. E assim lá foi ele atravessar os campos e cerrados do Oeste de Minas para se arrojar nos morros e florestas da Zona da Mata, em busca das luzes da agricultura técnica.

Cumpridos os ritos acadêmicos, finalmente veio ter à cidade grande? Não; ainda não. Ele lá esteve apenas de passagem, para uma entrevista relâmpago com o manda-chuva da grande empresa de mineração que então se abria. Tudo não passou de uma única pergunta: você entende de hortas? Para o jovem desta história era preciso, mais do que reforçar a dieta de proteínas e fibras dos trabalhadores, conseguir trabalho, e rápido. E assim ele mal balbuciou uma afirmativa e já saiu dali contratado.

E então, na sequência, ao pé da grande mina, enquanto a hecatombe acontecia na Europa e na Ásia, milhares de brasileiros, geralmente jovens e vindos de todas as partes do país, deram sua contribuição para o que então fora chamado de esforço de guerra. E ele estava entre eles.

Mas a nova cidade iria lhe aprontar surpresas. Naquelas ruas estreitas, de horizontes restritos, em clima interminável de chuva e frio, tudo tão diferente de seu Oeste natal, um olhar iria capturá-lo certa tarde ou noite, na porta do cinema. E ela, a filha de família mais do que tradicional local, foi ter com ele um improvável namoro – que, entretanto, vingou.

Logo veio um filho e em seguida outro – sina da época, quando isso era inevitável – e antes que este segundo viesse ao mundo a nova família veio, finalmente, encontrar a cidade grande. Como tantas outras famílias, de todas as partes do estado.

E assim veio a vida como ela geralmente é: trabalheira, sustos, frustrações, pequenas alegrias, rotinas, o peso do cotidiano. E principalmente filhos, cinco ao todo. E cabia ganhar a vida do jeito que fosse possível, no comércio, no volante de um caminhão, na sociedade em uma empresa de ônibus, onde muitas vezes os donos também iam à luta direta, em substituição aos motoristas faltantes.

A nova capital no Planalto Central quase o leva para um sonho maior e mais arriscado. Mas não é fácil embarcar em uma aventura dessas quando se tem uma penca de filhos para criar.

E o moço que nasceu na era das lamparinas de querosene e dos carros de boi pôde assistir a tudo que sua geração ineditamente foi apresentada: cidades cada vez maiores, tecnologias as mais diferentes, luzes cada vez mais brilhantes e coloridas, costumes cada vez mais sofisticados e até mesmo chocantes.

Não é qualquer geração humana que recebeu do destino chances assim. Tudo ao mesmo tempo.

E seguiu-se a vida, com todas as suas dores, erros, alegrias e acertos. Bem como a vida é de fato.

Cinco filhos, duas moças e três rapazes. Cada um com seu feitio, mas todos tendo presentes o reto valor de uma herança feita de luta e persistência.

É ao nosso patriarca que homenageio hoje, quando ele nos passa o bastão de sua herança. Cada um à sua maneira certamente saberemos honrá-lo.

Salve João Ferreira Goulart, o João do Ieieca, nosso pai, em sua despedida de nosso convívio, neste dia que manteremos para sempre em nossa memória: 11 de dezembro de 2022. Cento e três anos e duzentos e seis dias de vida. Muito o agradecemos pelo que pudemos compartilhar disso!

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