Holocausto também é coisa nossa…

Nenhuma glorificação no título acima, claro, mas como a palavra Holocausto entrou na moda, graças a uma declaração polêmica (mas nem tanto…) de Lula, acompanhada do lançamento pela Netflix de um documentário chamado Holocausto Brasileiro, baseado em livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, trago o assunto, sob este último enfoque, para nosso post de hoje. O filme descreve a história de agressões e mortes no antigo Hospital Colônia de Barbacena-MG, no qual ao longo quase um século de funcionamento foram registradas cerca de 60 mil mortes de pacientes, sem falar das incontáveis internações compulsórias. No documentário, Daniela entrevista pessoas ligadas direta ou indiretamente ao HCB (ex-pacientes, ex-funcionários, gente da saúde mental e testemunhas diversas). No início tudo corria de acordo com regras, digamos, mais “humanitárias” (cabem aspas), inspiradas em Philippe Pinel, precursor das reformas psiquiátricas ao tempo da Revolução Francesa. Contudo, na sequência, a instituição começou a receber um número vultoso dos considerados “loucos”, seja por familiares ou pela comunidade. O livro de Daniela Arbex revela que talvez apenas uns 30% de tais pacientes tinvessem diagnóstico real de doença mental, mas passaram a compor um vasto contingente de “indesejados”, entre eles mendigos, homossexuais, dissidentes políticos e moças desvirginadas. O meu contato com isso foi o fato de ter feito o curso de medicina na UFMG, no qual os cadáveres “utilizados” nas aulas de anatomia eram, em sua maioria, egressos de tal “loucocômio”, chegando ao anfiteatro da faculdade de maneira pouco ortodoxa e totalmente desumana. Vai aí um texto de minhas memórias (Vaga, Lembrança. Brasília 2001) que mostra meu contato, mesmo à distância, com esta tragédia, como o leitor verá nos parágrafos finais.

Aquele anfiteatro cheio de mesas de mármore ou aço inox, de pé direito alto, aquele cheiro de formol, as palavras cabalísticas gravadas em uma das paredes: hic mors gaudet sucurrere vitae – tudo era coisa de muita pompa e circunstância. Entretanto, se a morte se alegrava em me ajudar, a recíproca não era verdadeira. Eu achava aquilo uma decoreba, uma perda de tempo. Ali não se dissecava, mas se destruíam corpos.  Aliás, alguns já tinham dito a mim – e mesmo os professores da disciplina confirmavam – que depois era preciso aprender tudo de novo. E mesmo assim só aqueles que fossem se dedicar a certos ramos da medicina, como a cirurgia ou ao diagnóstico por imagem. Para os outros mortais, bastavam noções gerais, sem cadáveres, sem formol, sem picadinho de gente, sem todo aquele simbolismo horror show.

E mais: alguém já se perguntou de onde vêm os cadáveres que vão parar nos anfiteatros de anatomia?  No meu tempo vinham, em sua maioria, do chamado Hospício de Barbacena, instituição que já de muito faz parte de uma memória de vergonha e horror na saúde do Brasil. Aqueles cadáveres, ou melhor, aquelas pessoas, simplesmente não tinham (ou quem sabe isso não lhes era facultado) quem reclamasse seus corpos. E como, afinal de contas, morriam? Sobre isso, bem pouco era dito…  Alguns suspeitavam, inclusive, que a mortalidade crescia em certa época do não, coincidente com a abertura do calendário letivo nas escolas de medicina. E desde então já se sabia existir um verdadeiro tráfico de cadáveres, operado não só por funcionários de tais asilos como pelos poderosos bedéis das faculdades – gente que lidava com aquilo que ninguém aceitaria lidar, por isso mesmo autoconsiderados indivíduos especiais e até superiores aos comuns. Estes viam nos pobres corpos nada mais do que uma mercadoria preciosa, sem prestar contas a ninguém. É preciso argumentar mais? Meus respeitos aos mortos que compareceram e talvez ainda compareçam, por muitas gerações, aos anfiteatros de anatomia para socorrer os vivos e aprendizes. Mas penso que já passou da hora de serem liberados para uma pós morte digna.

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Conheça o texto completo: https://veredasaude.com/2020/06/02/licao-de-anatomia/#more-2561

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