A história de Jacó

 Jacó, o vaqueiro desta história. Sim, ele mesmo, Jacó da Vereda Alta, filho de Isaque e neto de Abrão Borges. Jacó gostava de Raquel, filha de Lesbão, fazendeiro assentado no Buriti Seco. Jacó não era de enxada e foice, tinha orgulho de seu trato com o gado bravo, peão corajoso, segundo todos que o conheciam, com fama assentada da Vereda Alta ao Buriti Seco e mais além.                                                                          

Jacó, do alto de seus vinte anos, com efeito, não era homem de plantar milho e feijão, isso não, mas sim de laço e ferrão. Mas deu de frequentar com assiduidade os mutirões de bateção de pasto e mais o que houvesse na fazenda de Lesbão. Foi lá uma vez, duas e três, depois outras tantas. Agora, o ano já virado pela metade, aquela pastaria, de se perder de vista, precisando ser limpa antes da chuva começar, para receber o gado magro, vindo do alto sertão, que ia ganhar ali arrobas sem conta. E foi assim que ele um dia se deu conta que existia Raquel.

Raquel, aquela dos olhos verdes, pele morena, cabelo na cintura e cinturinha delgada. Raquel, que mal viu Jacó lhe dirigiu um olhar que talvez fosse o seu costumeiro, mas para ele foi como se viesse dos anjos.

– Bom dia como está o senhor? Aceita um café, umas broinhas?

Isso foi da primeira vez. Em seguida já estavam quase íntimos, o moço já vencido em sua timidez com o jeito alegre e dado da outra. As conversas já tomavam rumo mais aberto, aqui e ali até falando de flores, de guabiroba, bacupari e outras frutas da estação e de intrigas da vila, não mais do invariável assunto da falta de chuva, que dominava toda a conversa por ali, na ocasião e quase sempre. E o vaqueirinho exultava.

Nem tudo eram flores e frutas do mato, entretanto. Ia tudo muito bem entre ele e a moça, mas eis que um dia quase tudo se perde. Era hora do almoço e havia suã de porco com arroz. Jacó acocorado segurava um prato cheio até as bordas, ele se pelava por aquilo. E ali na casa de Seu Elesbão não tinha miséria, é o que todos reconheciam e agradeciam. Chegava ao ponto de até de se oferecer um copinho de boa caninha, no final do eito, para quem tivesse o costume, claro. Mas não passava disso. A garrafão logo desaparecia após uma primeira e única rodada entre os trabalhadores.

Pois bem, Jacó num canto da varanda, prato equilibrado nas coxas, assentado nos calcanhares, se deliciando com a comida, quando a moça chegou, de surpresa, e o saudou, com a aberta alegria de sempre. Ele, com boca e dedos lambuzados de gordura e molho tingido pelo urucum – quem já comeu suã sabe que é preciso enfrenta-la assim com intimidade – se sentiu pego em má situação, e tentou disfarçar escondendo o prato de folha atrás de si. Porém, cuidando de não desperdiçar o belo pedaço de osso e carne que ainda tinha nas mãos, visando voltar a atacá-lo quando o anjo completasse sua passagem por ali. Não foi este, entretanto, o entendimento de Nero, um danado cão mestiço de Fila com sei-lá-o-quê, malandro que nem ele mesmo. Aquele diabo ia passando por ali justo naquele momento e não teve dúvidas: abocanhou o belo pedaço de suã, com muita carne ainda não comida e chupada, e o levou consigo, num bote só. Não é que o dedo de Jacó estava enfiado e meio preso no buraco do osso e o puxão dado pelo cão só fez arrastar suã, dedo e dono do dedo pelo pátio a fora?

Jacó queria morrer de vergonha, mas Raquel lhe foi generosa, lhe estendeu a mão para que levantasse, perguntou se ele estava bem e chamou logo uma mulher da cozinha para que limpasse a lambança. Linda e querida como sempre, ainda emendou, apesar de rir à solta do acontecido:

– Não se preocupe, moço, isso acontece. Até meu pai já sofreu coisa parecida, com este mesmo Nero, que derrubou ele da cadeira…

Tudo está bem quando acaba bem – e a vida seguiu. Não faltou em breve oportunidade para ele estar de volta. Era festa da Santa Cruz e no Buriti Seco, como de costume, havia missa e festa. Havia muita gente por lá e ele custou a ver o objeto de seus cuidados. Estavam ela e sua irmã mais velha, Lia, que era coxa de uma perna, a comandar um batalhão de mulheres e moleques na cozinha, pois ali naquele dia comeriam mais de cem. O vaqueiro postou-se próximo à porta da cozinha, mas o máximo que recebeu da amada foi um bom dia, mesmo assim de passagem. Depois ela foi acolitar o senhor vigário.

Na despedida, algo mais animador, embora muito breve para ao desejo dele: – Volte outro dia, hoje estive tão ocupada, nem pude lhe dar atenção.      

Para quê mais do que aquilo, pensou o moço, de modo a disfarçar o que em outra ocasião poderia ser apenas frustração. Mas para ele já estava de bom tamanho.

A outra ocasião não tardou. Passado um mês e meio ou dois chegou a notícia que um doutor veterinário vinha da capital para dar uma palestra à vaqueirada da zona, eis que ele muito entendia de doenças de bezerros. O moço era dali mesmo, filho de um Azevedo da beira do rio, rico que nem ele só. Ninguém fazia muita fé nele, que tinha fama de mandrião, mas ao mesmo tempo não era o caso de perder a oportunidade de se aproveitar a mesa farta de Seu Lesbão, que em ocasiões assim, não deixava por menos, às vezes até mandava comprar na Vila uma ou duas grades de cerveja.

Agora, sim, pensou Jacó – e rumou para lá. Realmente o dia estava pra peixe. Raquel, junto com a irmã, cuidava das quitandas, mas como havia um exército de mulheres na cozinha e nem tinha padre para ela se ocupar, sobrou tempo para longas conversas entre ela e Jacó, que começaram com apreciações sobre as chuvas que não vinham, passaram pelas floradas de pau de pombo, que naquele ano estavam soberbas, desaguando no enxame de moças emprenhadas e sem pai conhecido por todo lado ali na região.

Em certo momento, Raquel teve que ir à cozinha, para ver como andavam as coisas. Voltou de lá apenas alguns minutos depois, trazendo a agora a irmã coxa a reboque.

Minha mana querida, Jacó, que cuidou de mim quando eu era criancinha e quando minha mãe se foi. E olha que eu quase morria de coqueluche e febre malina. Se não fosse por ela…

Lia tinha vergonha de todo jeito e pouco ficou com eles, numa conversa que rendeu nadinha. Pediu logo licença e voltou para a cozinha. Mas Raquel parece que tinha encontrado um novo pé de conversa:

– Não repare o modo dela, é muito acanhada. Com essa perninha seca, coitada, acha que ninguém liga pra ela. Você ainda vai conhecer ela melhor, vai gostar muito dela…

Falou mais ainda das qualidades da irmã por longos minutos, de sua mão boa como doceira e quitandeira; do auxilio que ela prestava aos filhos dos empregados, ensinando-os a ler e escrever; dos ouvidos e ombros que ela emprestava às mulheres dos pões da fazenda em suas queixas contra maridos e sogras. E ia assim por um rosário interminável. Jacó, contrariado, pois o que mais queria era voltar aos bons assuntos, à parolagem sem compromisso que vinham levando com apuro até a chegada da manquitola à conversa. Raquel pediu licença para voltar à cozinha, mas emendou:

– Você precisa conhecer ela…

A palestra do moço doutor já estava no fim. Raquel sumiu pelo casarão a dentro, até que Lia apareceu a Jacó, com um bule e uma bandeijinha na mão, não sabendo muito o que dizer:

– Um cafezinho? As broinhas foi eu mesma que fiz e assei…

Jacó era educado, aceitou. Mas não passou disso. A moça tinha pouco repertório, não era boa de prosa, como a irmã. E Jacó, pra falar a verdade, não tinha vontade nenhuma de esticar o assunto.

Então, você me desculpe, mas tenho que pegar a estrada, antes que chova por aí.

A bem da verdade, não havia uma nuvem no céu.

Mas o moço ficou mordido atrás da orelha. – Qual é, minha Santa?

Mas não fosse por isso. Quem ali estava era Jacó, dos Borges da Vereda Alta, vaqueiro de profissão, filho de Isaque e neto de Abrão, que não era de enxada nem de foice, mas de coragens. Seu negócio era o trato com o gado bravo, sua força todos conheciam, ali e mais além. Não ia, assim, se desanimar por pouca coisa. Não seria uma dúvida por causa de mulher que o derrubaria. Resolver mandar carta, assim escrita:

– Senhorita eu queria muito ti falar umas coisa, de pessoa a outra pessoa, mas não vi oportunidade ainda. Voçê fica sabendo que estou intereçado é na sua pessoa, não em nenhuma irmã, por milhor que seja, nem que não fosse capenga. E espero resposta. Viu?

Tratou logo de arranjar um moleque para levar o bilhete, por uns poucos trocados. Deu a ele variadas recomendações, temendo, principalmente, alguma interceptação de Lesbão, por quem tinha grande temor. Mas esqueceu do principal: dar ao moleque indicações mais precisas sobre a destinatária da mensagem.   

E lá se foi o mensageiro improvisado, rápido como um corisco, cumprindo rigorosamente as instruções de quem o contratou. Perdeu um pouco de tempo na chegada, por Lesbão estar por ali, em conversa com uns visitantes, bem na porta da casa, o que obrigou o moleque a esperar algum tempo junto a uma moita de bananeira. Liberada a entrada, não foi difícil encontrar a destinatária, que peneirava um polvilho numa coberta do quintal. Entregou a ela o bilhete, usando exatamente as palavras da encomenda: – Seu Jacó mandou trazer.

Saiu dali correndo, apenas a tempo de perceber, com malícia, que Seu Jacó devia estar doido de querer namoro com uma moça coxa como aquela, que andava como se tropeçasse a cada passo. Mas ele não tinha nada com isso. Estava ali só para ganhar um dinheirinho mesmo.

E Lia, sobressaltada, leu o bilhete e o guardou no decote da blusa. Mais tarde contou para o pai, com quem ela tinha grande proximidade, sendo ele o salvador dela em muitas ocasiões que recebera troças, não só dos meninos da escola e mesmo da família, pela sua condição de manquitola.

Lesbão era de boa paz e, viúvo como era, tinha imenso amor pelas filhas, especialmente por Lia, que não era bonita como a outra e ainda por cima tinha aquele problema nas pernas. Judiciosamente, mas sem deixar de lado seu carinho extremoso de pai, falou:

– Uai, minha filha. É caso de se pensar, conheço esses Borges da Vereda Alta não é de hoje. É tudo gente boa, honesta, que cumpre os prometidos. Dou apoio. Vamo cuidar disso, então!

Jacó esperou resposta uma semana, duas, um mês e mais. Já pelo décimo quinto dia começou a receber cestinhas de quitandas e docinhos, primeiro de forma totalmente anônima, depois com confeitos em forma de “L”, depois com o nome inteiro.

Até que um dia Lesbão mandou recado pela comadre Dolores que ele fosse ao Buriti Seco. E a mensageira acrescentou: – Jacozinho, bote sua melhor roupa porque você tem que se preparar para entrar para uma família de respeito.

Era o sétimo mês desde que ele começara a desenrolar seus planos de conquista de Raquel. E agora vinha aquilo… Ele não merecia. Só pensou assim: – sete meses é pouco. Eu daria sete anos, e muito mais do que isso para ficar com ela.

Mas como tudo passa, mas também o que está ruim pode ficar pior, um dia ele ficou sabendo que Raquel tinha ficado noiva do Azevedinho, o moço doutor veterinário.    

 ***

É aí que entra na história o Doutor Luís de Camargos, filho da terra, advogado sem diploma e professor de português no ginásio da Vila, amigo da família Borges, que ao saber da triste história de Jacó, compõe para o infeliz vaqueiro o seguinte poema:

Em muito mutirão Jacó servia / A Elesbão, pai de Raquel, moça tão bela, / Mas não era pelo pai, era por ela / E dela era a mão que pretendia.

Passavam os dias e ele em agonia / Ter ela bem perto, o que mais pretenderia? / Porém Raquel, com visível felonia / Impunha ao pobre moço sua irmã Lia.

Vendo, porém, Jacó que com trapaça / Lhe era assim negado o que queria / Abrindo-lhe no peito tal ferida

Grita a toda gente, em plena praça / Não me importa, mais ainda eu serviria / Pois por tanto amor eu daria até a vida


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