Assim Sophia viu Brasília

Em minha primeira viagem a Portugal, flanava eu pelas ruas do Chiado e ato contínuo resolvi tomar um daqueles charmosos eléctricos amarelos, que subindo e descendo ladeiras acabou por me deixar em uma praça nos altos opostos ao meu ponto de partida, o Miradouro da Graça. Ali, em um pequeno paço, me vi diante de uma bela e extensa vista, que abarcava desde o bairro da Mouraria, ao rés do chão, até o Castelo de São Jorge e o bairro da Alfama, ao centro, com a Sé de Lisboa mais adiante e mesmo, além, a ponte 24 de Abril e um pedaço do Tejo. No logradouro propriamente dito um busto em bronze me avisava que o local era conhecido também pelo nome da homenageada, Sophia de Mello Breyner, que eu até então ignorava quem fosse. Nos dias seguintes vi o que minha imperdoável ignorância me negara: ela era uma das maiores escritoras e poetas de Portugal, comparada até mesmo a Fernando Pessoa. Seu nome estava não só em pracinhas como aquela, mas em outros locais públicos da cidade e, de maneira que revelava sua real importância, em uma série de poemas sobre o mar, inscritos nas paredes que ladeavam os enormes aquários do Oceanário de Lisboa, que visitei um ou dois dias depois. Assim ela chegou em minha vida.     

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Mais uma crônica da cidade em trabalho de parto: “Não vou pra Brasília”

Quem já estava no mundo nos anos 60, como eu, então criança e depois adolescente, certamente deve ter tido sua vida marcada pela criação de Brasília. Não se falava de outra coisa em todo o Brasil: JK prá lá e prá cá, ensejando desde marchinhas de carnaval a toada de Juca Chaves; estradas sendo rasgadas no Cerrado; a morte de Bernardo Sayão por suposto ataque de índios; o êxtase de visitantes estrangeiros diante das imensas obras em meio ao Cerrado; a descoberta da palavra Candango; as suspeitas de que o lago do Paranoá jamais se encheria; as denúncias de corrupção; a oposição ressentida da UDN e o entusiasmo sem peia de outros tantos. Acima de tudo era um país em desabalada carreira, seja para se encontrar seu futuro, ou pelo menos trazer esperança à multidão de analfabetos e marginalizados que aqui habitava. Um dos fatores que fomentava o clima de desconfiança que se instalara em alguns dos críticos da novacap era a questão do funcionalismo público, supostamente acostumado às “delícias” do Rio de Janeiro e totalmente infenso ou indiferente ao que o governo prometia na transferência para Brasília. E não eram poucas as promessas então, sendo a mais vistosa delas a tal “dobradinha” (não confundir com “rachadinha”), que permitia aos barnabés ousados que a ela aderissem simplesmente a multiplicação de seus salários pelo fator “2”. Mas mesmo assim havia os que resistiam. Foi o caso de Billy Blanco, compositor e cantor que já fazia sucesso nos tempos do rádio, mas antes de tudo funcionário público federal, lotado no antigo DNER, se não me engano.

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Tributo a Hesio Cordeiro (1942-2020)

Hésio Cordeiro se foi. Para quem não sabe de quem se trata, ele foi um dos principais agentes intelectuais (e mesmo operacionais) da nossa reforma sanitária dos anos 80, ou seja, da própria criação do SUS. Grande perda, não só para o SUS, que perde mais um de seus fundadores para lutar pela sua sobrevivência, mas para o próprio pensamento sanitário no Brasil, infestado hoje em dia por falsos profetas fardados ou dentro do figurino da Faria Lima. Hesio e Sérgio Arouca foram dois gigantes da luta intelectual pela saúde, nos anos 70 e 80, mas ao contrário de Arouca, Hesio era uma pessoa discreta, que nunca se embalou com a política partidária. Seu maior feito, para mim, foi o de ter saído diretamente – e com sucesso – de sua banca acadêmica na UERJ para a Presidência do INAMPS, nos anos 80, comandando diretamente a incorporação deste órgão ao SUS – ou, talvez, vice-versa. Convivi com ele na Comissão Nacional de Reforma Sanitária e nas lutas pela saúde ao longo da Assembleia Nacional Constituinte. É mais uma perda dentro de uma geração de lutadores autênticos em favor da saúde pública no Brasil. Faço a seguir algumas considerações sobre a era de lutas épicas que culminaram na criação de um inédito sistema nacional de saúde para o país, tendo na ativa profissionais de valor humano e intelectual da estatura de Hesio Cordeiro e outros.

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Desenvolvimento é Saúde: tributo a Mario Magalhães da Silveira

Movimentados anos 50. No Brasil, pelo menos, as coisas nunca mais foram as mesmas. Perdemos uma Copa do Mundo, ganhamos outra. Tivemos que lidar com o golpismo explícito ou implícito de militares e civis mancomunados. Entramos na guerra fria como se fosse coisa nossa. Nossos compatriotas migraram em massa das roças para as cidades. Jorge Amado e Guimarães Rosa projetaram a literatura brasileira para o mundo. Construímos Brasília. Apesar de alguns pesares, foi lícito pensar que chegara a nossa vez de tocar algum instrumento no concerto das nações. Não foi pouca coisa, realmente. Na Saúde, um ministério para chamar de seu finalmente foi criado e passamos a década a lutar contra o bócio endêmico, a esquistossomose, a malária e as verminoses. O empresariado médico adentrou em um período prolongado de simbiose com o poder público, obtendo dos antigos institutos da Previdência Social pontes generosas entre o Estado e seus interesses particulares. Mas ao mesmo tempo, dentro do setor saúde houve pessoas que começaram a pensar que as coisas poderiam ser diferentes. Uma delas foi Mario Magalhães da Silveira, que desenvolveu, à exaustão o tema das relações entre Desenvolvimento e Saúde.   

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O dia em que tomei uísque com Drummond

Em novembro de 1985, minha mãe, que sempre falava em visitar seu tio, Carlos Drummond de Andrade, mas que achava difícil sair de Belo Horizonte para fazê-lo, por falta de companhia, me levou oferecer a acompanhá-la . E eu fiz isso sem titubear, é claro. Eu tinha estado com Drummond umas quatro ou cinco vezes ao longo da minha vida, mas uma visita assim tão pessoal seria a primeira vez. Eu não podia realmente perder tal oportunidade. Foi assim que peguei um ônibus em Uberlândia, onde eu morava então, e já no dia seguinte fui buscá-la na Rodoviária do Rio, para executarmos o combinado.

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Pelas Veredas do Grande-Sertão

Não me considero um especialista em Guimarães Rosa. Pensando bem, não passo de um fã, lembrando a origem verdadeira desta palavra: fanático. Assim, se me faltam fundamentos de crítica literária, me sobra emoção ao falar de sua obra, particularmente de Grande Sertão: Veredas, que para mim é simplesmente O Livro. Admito a minha fixação nesta obra, tendo acabado de lê-la pela sétima vez durante a … Continuar lendo Pelas Veredas do Grande-Sertão

Sobre “Cristofobia”

Intolerância religiosa. Já havia tratado de tal assunto aqui antes e hoje retorno a ele, eis que a inesgotável capacidade de falar besteira do Escrotíssimo Senhor Presidente da República o colocou em pauta novamente, através de seu discurso patusco perante a Assembleia Geral da ONU, realizada neste 21 de setembro. Menos mal que foi online, isso deve ter contribuído para reduzir a má repercussão internacional produzida por tais perdigotos, e assim, quem sabe, amenizado um pouco a nossa vergonha.  Mas, enfim: existiria, de fato, algum tipo de intolerância religiosa no Brasil de hoje?

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Cidade em trabalho de parto: assim Chaya Pinkhasovna viu Brasília

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia pré soviética, recebendo o estranho nome acima. Judia na origem, virou pernambucana, carioca e finalmente brasileira, da variedade universal. Muito do encanto complexo de sua escrita vem exatamente de uma estranheza ela nos provoca, mas que ao mesmo tempo, por vezes, também nos abisma pela cristalinidade que ela é capaz de nos trazer, a partir do nada. Chaya viu Brasília nascendo, ou quase. E se estranhou o que viu, também se extasiou.  Esplendorosa foi um dos adjetivos que utilizou para a cidade, em uma das duas longas crônicas que escreveu sobre ela. Foram três as suas passagens por aqui: 1962, 1974 e 1976 e os textos que escreveu, em duas dessas ocasiões, mostram alguém que tenta decifrar a identidade daquela estranha cidade recém-criada. Nesta, a força de um discurso oficial e de um planejamento centralizado, junto com a ausência de multidões e também de esquinas, chamaram a atenção da escritora. Aqui vai uma seleção de suas impressões. Estávamos na década de 60, é bom lembrar: era outra cidade, era outro Brasil; outras eram as esperanças. O Brasil, de certa forma, também estava começando. Depois capotou. Vamos aos delírios de Chaya. Continuar lendo “Cidade em trabalho de parto: assim Chaya Pinkhasovna viu Brasília”

Cidade em trabalho de parto: Sinfonia da Alvorada

Trouxe aqui há poucos dias as impressões de uma criança, na verdade encarnada no olhar de Guimarães Rosa, sobre esta cidade de Brasília, ainda nas dores de seu nascimento. Pretendo estender tal série de registros sobre nossa cidade em seu estado nascente, pelo menos até quando possa ou encontre informações. As poucas pesquisas sobre tal tema que fiz até agora me deixaram animado. Hoje trago o poema de Vinicius de Moraes que compõe, junto com Antônio Carlos Jobim, uma Sinfonia da Alvorada criada especialmente para a inauguração de Brasília. Penso que a obra, de feição épica, está quase caindo no esquecimento – mais um motivo para trazê-la de volta, portanto. Nos registros da web foi possível capturar que ela representa um poema sinfônico, datado de 1959, já celebrando a inauguração da nova capital, que se daria no ano seguinte. A obra é dividida em cinco movimentos, com diferentes temas, tais como a paisagem anterior à construção, a chegada do homem, a chegada dos trabalhadores, a construção da cidade em si e, por fim, um cântico de exaltação àquela que então já havia sido denominada de A Capital da Esperança. A história de tal peça sinfônica foi, contudo, tumultuada. Deveria ter sido executada já na inauguração da cidade, em abril de 1960, mas problemas administrativos o impediram. Adiada para o sete de setembro do mesmo ano, também não ocorreu, pois então havia escândalos de corrupção (isso não é de hoje, portanto…) que a inviabilizaram.  Acabou sendo lançada como LP em fevereiro de 1961, mas a primeira apresentação pública só aconteceu em 1966 na antiga TV Excelsior. Estreia em Brasília, só em 1986, seis anos após a morte de Vinicius, com orquestra regida por Alceu Bocchino e com Susana Moraes, filha de Vinicius, fazendo a leitura do poema.

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Visão de uma cidade em trabalho de parto: As Margens da Alegria

Li, por esses dias, dois textos que falam da visão de uma cidade nascente – Brasília – naquele período mágico em que tudo indicava que o Brasil ia dar certo. Éramos campeões mundiais de futebol, de tênis, de boxe e de esperanças. Uma nova capital estava sendo erguida nos fundões do país. Nada mais emblemático. Falarei do primeiro desses textos aqui, o conto “As Margens da Alegria”, de Guimarães Rosa. Na sequência quero trazer Clarice Lispector e Vinicius de Morais, Sophia de Mello Breyner e outros, enquanto vou tentando colecionar mais e mais. Antes de começar, um preâmbulo. JGR trouxe vários personagens infantis à luz em sua obra. O mais notório talvez seja Miguilim, em “Campo Geral”, mas não podemos esquecer do Quinzinho de “Conversa de Bois”; de Nhiinha, a “Menina de Lá”; dos irmãos e do primo de “A Partida do Audaz Navegante”, além de outros. Acrescento a tal galeria este outro menino, não nomeado que ia “com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos”. Continuar lendo “Visão de uma cidade em trabalho de parto: As Margens da Alegria”