Bolsonaristas: monstros ou palhaços? Reflexões à luz de Hannah Arendt

Em 1960 o ex-oficial das SS nazistas, Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela “solução final” do regime em relação aos judeus, foi sequestrado em um subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense do Mossad e em seguida levado para Jerusalém, onde foi submetido ao maior julgamento de um nazista após Nuremberg. Porém, ao invés do monstro que todos esperavam, surgiu aos olhos do mundo apenas um simples funcionário do estado nazista, bastante medíocre, preso a clichês burocráticos, incapaz aparentemente de refletir mais profundamente sobre seus atos. É aí que o olhar lúcido da filósofa Hannah Arendt, judia alemã que havia sido perseguida pelo regime de Hitler, revela o que chamou de “banalidade do mal”, associada à capacidade, bancada ou intermediada pelo Estado, de igualar a violência homicida ao mero cumprimento de metas. Banal por um lado, mas ainda assim uma imensa ameaça às sociedades democráticas. Por alguma razão o bolsonarismo no Brasil de hoje, na sua banalização de atitudes e palavras fora de propósito sobre a pandemia, suas agressões e ameaças à democracia, me parece também bastante explicável pelos conceitos lançados pela filósofa judia. Senão, vejamos.

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Chapada dos Veadeiros

Aqui é a Chapada dos Veadeiros. Ou melhor, estamos em um dos muitos vales que foram abertos pela força das águas que correram através dos tempos a partir das terras mais altas, acima dos mil metros de altitude, como é o caso daquelas onde se hoje assenta a cidade de Alto Paraiso. Um dia, há mais de cem milhões de anos, tudo isso foi o fundo de um grande oceano. Quando as imensas placas que formam a superfície da terra se moveram, a água de tal mar simplesmente fez o que ela sempre faz, agiu sob a força de gravidade e rolou para as partes mais baixas. No seu caminho, abriu vales como este, do ribeirão São Bartolomeu, que corre para o rio Paranã, que corre para o Tocantins, que corre para o Amazonas, e para o mar, desaguando na Bahia de Guamá, onde está a cidade de Belém.

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Anos 50

Em texto que postei aqui recentemente, em homenagem a Mário Magalhães da Silveira, fiz uma espécie de apologia aos anos 50, dizendo o seguinte: << Movimentados anos 50. No Brasil, pelo menos, as coisas nunca mais foram as mesmas. Perdemos uma Copa do Mundo, ganhamos outra. Tivemos que lidar com o golpismo explícito ou implícito de militares e civis mancomunados. Entramos na guerra fria como se fosse coisa nossa. Nossos compatriotas migraram em massa das roças para as cidades. Jorge Amado e Guimarães Rosa projetaram a literatura brasileira para o mundo. Construímos Brasília. Apesar de alguns pesares, foi lícito pensar que chegara a nossa vez de tocar algum instrumento no concerto das nações. Não foi pouca coisa, realmente.>> Pois é, eu estive presente nesses “anos 50” e posso contar.  É provável que alguma coisa tenha acontecido nem no local, nem no tempo ou com as pessoas a que me refiro. Não importa. Vamos combinar: falo do que me lembro e como me lembro, tendo como ponto forte as coisas boas ocorridas. Permitam-me organizá-las e contá-las do meu jeito. Convido vocês para um giro na BH daquela época.

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Assim Sophia viu Brasília

Em minha primeira viagem a Portugal, flanava eu pelas ruas do Chiado e ato contínuo resolvi tomar um daqueles charmosos eléctricos amarelos, que subindo e descendo ladeiras acabou por me deixar em uma praça nos altos opostos ao meu ponto de partida, o Miradouro da Graça. Ali, em um pequeno paço, me vi diante de uma bela e extensa vista, que abarcava desde o bairro da Mouraria, ao rés do chão, até o Castelo de São Jorge e o bairro da Alfama, ao centro, com a Sé de Lisboa mais adiante e mesmo, além, a ponte 24 de Abril e um pedaço do Tejo. No logradouro propriamente dito um busto em bronze me avisava que o local era conhecido também pelo nome da homenageada, Sophia de Mello Breyner, que eu até então ignorava quem fosse. Nos dias seguintes vi o que minha imperdoável ignorância me negara: ela era uma das maiores escritoras e poetas de Portugal, comparada até mesmo a Fernando Pessoa. Seu nome estava não só em pracinhas como aquela, mas em outros locais públicos da cidade e, de maneira que revelava sua real importância, em uma série de poemas sobre o mar, inscritos nas paredes que ladeavam os enormes aquários do Oceanário de Lisboa, que visitei um ou dois dias depois. Assim ela chegou em minha vida.     

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Mais uma crônica da cidade em trabalho de parto: “Não vou pra Brasília”

Quem já estava no mundo nos anos 60, como eu, então criança e depois adolescente, certamente deve ter tido sua vida marcada pela criação de Brasília. Não se falava de outra coisa em todo o Brasil: JK prá lá e prá cá, ensejando desde marchinhas de carnaval a toada de Juca Chaves; estradas sendo rasgadas no Cerrado; a morte de Bernardo Sayão por suposto ataque de índios; o êxtase de visitantes estrangeiros diante das imensas obras em meio ao Cerrado; a descoberta da palavra Candango; as suspeitas de que o lago do Paranoá jamais se encheria; as denúncias de corrupção; a oposição ressentida da UDN e o entusiasmo sem peia de outros tantos. Acima de tudo era um país em desabalada carreira, seja para se encontrar seu futuro, ou pelo menos trazer esperança à multidão de analfabetos e marginalizados que aqui habitava. Um dos fatores que fomentava o clima de desconfiança que se instalara em alguns dos críticos da novacap era a questão do funcionalismo público, supostamente acostumado às “delícias” do Rio de Janeiro e totalmente infenso ou indiferente ao que o governo prometia na transferência para Brasília. E não eram poucas as promessas então, sendo a mais vistosa delas a tal “dobradinha” (não confundir com “rachadinha”), que permitia aos barnabés ousados que a ela aderissem simplesmente a multiplicação de seus salários pelo fator “2”. Mas mesmo assim havia os que resistiam. Foi o caso de Billy Blanco, compositor e cantor que já fazia sucesso nos tempos do rádio, mas antes de tudo funcionário público federal, lotado no antigo DNER, se não me engano.

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Tributo a Hesio Cordeiro (1942-2020)

Hésio Cordeiro se foi. Para quem não sabe de quem se trata, ele foi um dos principais agentes intelectuais (e mesmo operacionais) da nossa reforma sanitária dos anos 80, ou seja, da própria criação do SUS. Grande perda, não só para o SUS, que perde mais um de seus fundadores para lutar pela sua sobrevivência, mas para o próprio pensamento sanitário no Brasil, infestado hoje em dia por falsos profetas fardados ou dentro do figurino da Faria Lima. Hesio e Sérgio Arouca foram dois gigantes da luta intelectual pela saúde, nos anos 70 e 80, mas ao contrário de Arouca, Hesio era uma pessoa discreta, que nunca se embalou com a política partidária. Seu maior feito, para mim, foi o de ter saído diretamente – e com sucesso – de sua banca acadêmica na UERJ para a Presidência do INAMPS, nos anos 80, comandando diretamente a incorporação deste órgão ao SUS – ou, talvez, vice-versa. Convivi com ele na Comissão Nacional de Reforma Sanitária e nas lutas pela saúde ao longo da Assembleia Nacional Constituinte. É mais uma perda dentro de uma geração de lutadores autênticos em favor da saúde pública no Brasil. Faço a seguir algumas considerações sobre a era de lutas épicas que culminaram na criação de um inédito sistema nacional de saúde para o país, tendo na ativa profissionais de valor humano e intelectual da estatura de Hesio Cordeiro e outros.

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Desenvolvimento é Saúde: tributo a Mario Magalhães da Silveira

Movimentados anos 50. No Brasil, pelo menos, as coisas nunca mais foram as mesmas. Perdemos uma Copa do Mundo, ganhamos outra. Tivemos que lidar com o golpismo explícito ou implícito de militares e civis mancomunados. Entramos na guerra fria como se fosse coisa nossa. Nossos compatriotas migraram em massa das roças para as cidades. Jorge Amado e Guimarães Rosa projetaram a literatura brasileira para o mundo. Construímos Brasília. Apesar de alguns pesares, foi lícito pensar que chegara a nossa vez de tocar algum instrumento no concerto das nações. Não foi pouca coisa, realmente. Na Saúde, um ministério para chamar de seu finalmente foi criado e passamos a década a lutar contra o bócio endêmico, a esquistossomose, a malária e as verminoses. O empresariado médico adentrou em um período prolongado de simbiose com o poder público, obtendo dos antigos institutos da Previdência Social pontes generosas entre o Estado e seus interesses particulares. Mas ao mesmo tempo, dentro do setor saúde houve pessoas que começaram a pensar que as coisas poderiam ser diferentes. Uma delas foi Mario Magalhães da Silveira, que desenvolveu, à exaustão o tema das relações entre Desenvolvimento e Saúde.   

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O dia em que tomei uísque com Drummond

Em novembro de 1985, minha mãe, que sempre falava em visitar seu tio, Carlos Drummond de Andrade, mas que achava difícil sair de Belo Horizonte para fazê-lo, por falta de companhia, me levou oferecer a acompanhá-la . E eu fiz isso sem titubear, é claro. Eu tinha estado com Drummond umas quatro ou cinco vezes ao longo da minha vida, mas uma visita assim tão pessoal seria a primeira vez. Eu não podia realmente perder tal oportunidade. Foi assim que peguei um ônibus em Uberlândia, onde eu morava então, e já no dia seguinte fui buscá-la na Rodoviária do Rio, para executarmos o combinado.

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Pelas Veredas do Grande-Sertão

Não me considero um especialista em Guimarães Rosa. Pensando bem, não passo de um fã, lembrando a origem verdadeira desta palavra: fanático. Assim, se me faltam fundamentos de crítica literária, me sobra emoção ao falar de sua obra, particularmente de Grande Sertão: Veredas, que para mim é simplesmente O Livro. Admito a minha fixação nesta obra, tendo acabado de lê-la pela sétima vez durante a … Continuar lendo Pelas Veredas do Grande-Sertão

Sobre “Cristofobia”

Intolerância religiosa. Já havia tratado de tal assunto aqui antes e hoje retorno a ele, eis que a inesgotável capacidade de falar besteira do Escrotíssimo Senhor Presidente da República o colocou em pauta novamente, através de seu discurso patusco perante a Assembleia Geral da ONU, realizada neste 21 de setembro. Menos mal que foi online, isso deve ter contribuído para reduzir a má repercussão internacional produzida por tais perdigotos, e assim, quem sabe, amenizado um pouco a nossa vergonha.  Mas, enfim: existiria, de fato, algum tipo de intolerância religiosa no Brasil de hoje?

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