Matéria Médica

Medicina tem a ver com literatura, sem dúvida, no mínimo por fornecer no cotidiano de seus profissionais, principalmente para aqueles que são bons observadores, um manancial imenso de situações que certamente favorecem a produção de textos diversos, sejam romances, novelas crônicas, poemas – ou, em último caso, anamneses. Mas será que a carreira médica impele de fato seus praticantes, mais do que outras profissões, a serem escritores? De fato, há muitos médicos que se transformam em escribas, alguns até exponenciais, como Guimarães Rosa e Miguel Torga, por exemplo, mas há também advogados, engenheiros, professores, para não falar daqueles que não possuem profissão definida ou nem se lembram mais daquela que um dia exerceram, por se sentirem, desde sempre, escritores, pura e simplesmente. Drummond, por exemplo, era farmacêutico, Monteiro Lobato advogado e Jorge Amado nem formado era.  Alguns mais críticos poderiam dizer que os médicos, para além de sua profissão de origem, talvez se interessem mais pelas atividades agropecuárias, pela política, ou pelos negócios em geral, do que propriamente pela literatura.

Continuar lendo “Matéria Médica”

Adoecer e morrer no Grande Sertão

Guimarães Rosa era médico e clinicou por alguns anos, seja como clínico na Polícia Militar ou no interior do estado, em Itaguara, na região central de MG. Ser o escritor afamado é coisa que veio mais tarde, quando já havia abandonado a medicina e se tornado diplomata, por concurso, no Itamaraty. Mas a presença de doenças e doentes em sua obra é constante. Neste presente e despretensioso trabalho pretendo levantar um pouco da visão médica em suas narrativas e personagens, particularmente no Grande Sertão. A presença de gente enferma em sua obra é marcante, com ampla dominância dos portadores de doenças mentais, como é o caso de boa parte dos personagens de suas Primeiras Estórias. Ali estão, por exemplo, o homem que subiu em uma palmeira e se recusou a descer; a menina que tinha visões; o refugiado na terceira margem do rio; o dono do cavalo que bebia cerveja; o escravo que preparava o pouso de discos voadores; para não falar da pungente história do Sorôco, que vai levar sua mãe e sua filha para terrível embarque no trem que tinha um vagão destinado apenas aos condenados ao hospício de Barbacena. Narrativa especialmente saborosa, apesar de dramática – além de detalhada do ponto de vista clínico – é aquela que fala de Turíbio Todo, personagem do conto O Duelo (em Sagarana), o qual, em ímpeto vingativo, bem típico dos Sertões, acaba por matar por engano o irmão de um militar, Cassiano, que lhe cortejava a mulher e que parte para cima dele em busca de vingança. Turíbio era um papudo, ou seja, portador da hipertrofia tireoidiana por carência de iodo, coisa comum no Brasil de décadas atrás. A descrição de tal papo é um primor de observação clínica: …bilobado e pouco móvel – para cima, para baixo, para os lados. E ironiza: não o escandaloso ‘papo de bola, quando anda, pede esmola’, acrescentando:  ninguém nasce papudo ou arranja papo por gosto, recorrendo ao conhecimento vigente na época (década de 30), hoje superado, atribuindo o problema de Turíbio às tentativas que o grande percevejo do mato faz para se tornar um animal doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há também cúmplices, camaradas do barbeiro, cinco espécies, mais ou menos, de tatus. E prossegue, falando de tal personagem, neste momento do conto mais importante do que seu próprio portador: … e tão modesto papúsculo, incapaz de tentar o bisturi de um operador, não enfeava seu proprietário; antes o fazia até simpático: forçado a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo elegante. O papo de Turíbio Todo volta à cena em outros momentos do conto, agora dominado por uma frenética perseguição ao longo dos sertões de Minas, digna de um filme de Peckinpah. Cassiano, o desafeto do tal papudo, este sim, vai se revelar vítima autêntica do grande percevejo do mato, ao falecer em estado de congestão cardíaca, em pleno périplo de perseguição ao marido ciumento. Mas nem por isso deixa de consumar a vingança pela morte do irmão. Quem quiser saber como e por quê que leia o conto – bom proveito certamente o espera. No mesmo Sagarana, o conto Sarapalha narra a história de dois primos roceiros,  derrotados pela maleita e por um amor frustrado, sobre o qual a verdade se anuncia, por descuido de um deles, durante um acesso de febre, revelando uma traição em família, que desemboca em tragédia.

Continuar lendo “Adoecer e morrer no Grande Sertão”

O Camicego

Crianças na literatura, literatura sobre crianças, literatura para crianças. A associação dos dois termos, ou seja, da infância e da literatura é por demais vasta e me falece a competência necessária para tratar disso aqui. Fico com uma definição que se tornou clássica, que narro a seguir. Alice Dayrell Caldeira Brant, que escreveu sob o pseudônimo de Helena Morley, registrou passagens seguidas de sua infância, … Continuar lendo O Camicego

A morte de um anarquista

Ontem, 12 de outubro de 2016, morreu na Itália o Escritor Dario Fo, aos 90 anos. Ele era conhecido pela sátira política e pela crítica ao clero e às instituições oficiais em geral. Uma de suas obras mais célebres foi “Morte Acidental de um Anarquista”, atualmente em cartaz em São Paulo. Eu vi a peça nos anos 80, ainda na ditadura, com um Antonio Fagundes … Continuar lendo A morte de um anarquista

Pelo Sertão, com Rosa

No remoto mês de maio de 1952, época de floradas e esplendor de vida no sertão, Guimarães Rosa, com 44 anos, então diplomata no exterior, mas já famoso como escritor pelo seu livro Sagarana, inicia uma viagem a cavalo, acompanhando uma boiada desde a região onde hoje se situa a represa de Três Marias, até Araçaí, nas proximidades de Cordisburgo, sua terra natal. Fazem companhia … Continuar lendo Pelo Sertão, com Rosa

O verdadeiro Manuelzão

O cidadão Manuel Nardi Filho foi, por assim dizer, descoberto por docentes e pesquisadores  da UFMG nos anos 90. Ele foi objeto até de uma tese acadêmica e se tornou patrono de um amplo projeto de preservação ambiental focado na bacia do Rio das Velhas – o Projeto Manuelzão. Sua notoriedade derivou basicamente do fato de ele ter conhecido pessoalmente o escritor Guimarães Rosa e ter … Continuar lendo O verdadeiro Manuelzão

Quando eu crescer, quero ser Fernando Sabino…

Dizia ele: “no final tudo vai dar certo; se não der, é porque não chegou o final”. A vida deu certo para Fernando Sabino, que nos deixou há quase nove anos. Como romancista, cronista, cineasta, amante da vida e das mulheres e, principalmente, amigo de verdade de muita gente boa, ele foi inigualável. E o final parece que não vai chegar nunca para este mineiro … Continuar lendo Quando eu crescer, quero ser Fernando Sabino…

Convite para o lançamento do livro “UNANIMIDADE…”

Editora da Universidade Federal de Uberlândia (EDUFU) e o Observatório de Saúde do DF, convidam para o lançamento do livro A Unanimidade faz mal à saúde do autor Flavio Goulart. Sinopse Os textos presentes nesta coletânea representam uma mirada na construção do sistema de saúde no Brasil ao longo da última década, mas sem refletir um ponto de vista uniforme e muito menos sintonizado com a … Continuar lendo Convite para o lançamento do livro “UNANIMIDADE…”

O livro A unanimidade faz mal a saúde

A unanimidade faz mal à saúde Antes, neles se mesclam a visão do gestor do Sistema Único de Saúde, do pesquisador acadêmico e também do cidadão comum, muitas vezes estarrecido e indignado. Assim, uma crítica à flagrante “unanimidade” que, segundo o autor, cerca e contamina o SUS é o que está mais próximo de ser o fio condutor deste livro. Seu ponto de partida é … Continuar lendo O livro A unanimidade faz mal a saúde