A questão médica

DR HOUSENo campo da saúde, os médicos representam um papel especial. Possuem liderança natural nas equipes multi-profissionais, mas às vezes se auto-promovem (no que são respaldados pela clientela) como a única profissão que realmente conta. Podem assumir papel especial de condução em processos de mudança, mas, por outro lado, costumam se colocar na defensiva frente a quaisquer transformações dos serviços de saúde, assumindo condutas imobilistas ou até passadistas. Em um caso ou outro, o peso de sua liderança é incontestável .

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Parto do pressuposto que existe, de fato, uma questão médica que desafia o setor saúde, no Brasil e no mundo.  Seus elementos gerais podem ser descritos como insatisfação salarial, busca de autonomia e mesmo de “soberania” decisória, defesa do interesse da categoria sobre o interesse geral (mesmo com um discurso contrário), indiferença ou mesmo oposição diante das propostas de mudança do processo de trabalho, proselitismo, auto-defesa, dominação exercida frente aos outros funcionários e usuários, manipulação mediante o poder profissional, etc.

A questão médica foi também detectada em recente pesquisa sobre a profissão médica no Brasil, capitaneada pelo Conselho Federal de Medicina. Os dados mostram que ela se insere em um contexto contemporâneo de perda de status, de autonomia e de ideal de serviço característicos da profissão e se traduz pela piora das condições de trabalho, pelo desgaste profissional, pelos obstáculos ao exercício profissional, pelas responsabilidades acumuladas por terem os médicos a vida e a morte nas mãos.
Mesmo no contexto específico do Programa de Saúde da Família, conforme outra pesquisa, esta do Ministério da Saúde, a questão médica é forte. Embora os profissionais admitam melhoras na remuneração e na relação com os pacientes, uma parcela expressiva dos mesmos afirma que suas condições de trabalho, sua autonomia e seu prestígio profissional não se alteraram ou mesmo pioraram.
Apesar de tantas contradições e conflitos, costuma agredir ao senso comum e, principalmente à visão de mundo da categoria médica, alguém encontrar como responsável por uma dada unidade do sistema de saúde em vez de um médico, uma assistente social, um administrador ou um dentista.
Quando José Serra, um economista, foi escolhido por FHC Ministro da Saúde alguns anos atrás, o mínimo que se ouviu foi: como é que pode um não-médico assumir o posto mais importante na área da saúde? Há um pressuposto falso em tal concepção: não existe nenhuma lei ou norma que torne privativo da categoria médica o cargo de ministro ou de outro dirigente da área da saúde. E também alguma desinformação: nos países do primeiro mundo é relativamente comum que o ministro da saúde seja um administrador, um economista, um advogado, não necessariamente um médico ou outro profissional de saúde.
Em minha passagem pela Secretaria de Saúde de Uberlândia foi feito um rigoroso e inédito processo seletivo interno, baseado em critérios de competência técnica e aptidões para o cargo de gerente das seis enormes unidades mistas do sistema local, denominadas “UAI”, cada uma com trezentos funcionários, ou mais. Não foram discriminados os médicos e nenhuma outra profissão, mas os entre os selecionados, ao final, estavam menos médicos do que as demais profissões de saúde...
O que posso dizer dessa experiência? Ela foi, certamente, positiva. Para os usuários, nem se fala, pois estes passaram a contar com um gerente local sintonizado com o objetivo de garantir saúde (e não a representação de seu grupo político, corporativo ou de sua irmandade...). Os funcionários, em geral, apreciaram a novidade, pois passaram a ter gerentes mais sensíveis junto a si. Já os médicos, reclamaram (embora difusamente), sob a alegação de perda de autonomia e de importância da categoria.
Não estou querendo dizer que os médicos são dispensáveis na coordenação dos serviços de saúde. Embora a formação médica tradicional não contemple a administração da coisa pública, por ser altamente individualista e clínica, há muitos médicos que superam este viés e até fazem boa figura quando são colocados no papel de dirigentes. Essa não é a regra, entretanto, pois além dos problemas da formação, os médicos (nós, médicos...) padecemos de um avantajado espírito corporativo, que nos faz pensar mais nos objetivos da categoria do que nas necessidades da sociedade.
O próprio Conselho Federal de Medicina encontrou uma solução adequada para a questão, ao determinar que nos serviços onde trabalhem médicos acima de um certo número seja realizada uma eleição entre os membros da categoria para a escolha de um diretor (ou coordenador) clínico. Suas responsabilidades são relevantes, mas não envolvem a gestão direta dos diversos recursos relacionados ao ato de fazer a saúde acontecer (material, dinheiro, pessoas, tecnologias). Não são remunerados por tal função, que tem caráter mais honorífico do que funcional.
Falo diretamente por mim próprio, apoiado em minha experiência de gestor municipal, mas poderia dizer que minhas palavras refletem vivências de todos os que estão ou estiveram dirigentes de serviços de saúde, públicos ou privados. Esta é uma questão a ser enfrentada, aqui e em toda parte. É um dilema que não se resolverá com os favorecimentos e as regalias habituais concedidas aos médicos, quase sempre em detrimento de outras categorias. Deixar simplesmente a mão invisível do mercado agir (na formação médica isto ocorrerá mais cedo ou mais tarde...), para neutralizar os resistentes a mudanças e os inadimplentes no processo de trabalho, significaria trazer ainda mais problemas para a clientela e protelar a verdadeira solução para o problema.
Além do mais, é bom que se supere um conceito ultrapassado: o de que bons cirurgiões, pediatras, ginecologistas e outros profissionais qualificados devem pagar o preço, por vezes elevado, de obedecer a um ditame informal, porém arraigado: “se você é eficiente na sua prática clínica necessariamente será também um bom administrador deste serviço”. Desse jeito, um santo é despido e outro fica nu... Já vi até gente enfartar por conta de equívocos assim!
A questão médica é algo que se resolverá mediante táticas combinadas de coerção e de consenso. Como reivindicação de uma categoria estratégica para o sistema de saúde, ela não deixa de ter legitimidade. Por outro lado, representa um ponto de estrangulamento na gestão da saúde, de enfretamento muito complexo e que, muitas vezes, tem arrastado á vala comum tentativas bem intencionadas de reconstrução do modelo assistencial.
Enfim, tanto os gestores da saúde como as lideranças corporativas médicas são responsáveis pelo problema e não devem fugir de sua solução, bem como não podem perder de vista suas responsabilidades e seu compromisso histórico com a saúde da população.


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