Continuação…

PERUS(Fantasia sobre o conto “João Porém, o criador de perus”, de João Guimarães Rosa (in Tutaméia)

Não, Lindalice era a outra. Eu sou Gerismina.

Foi assim: João vivia para seus perus. Mangavam dele os amigos. dizendo que havia, nas redondezas, uma moça loura que o olhava e queria conhecer, Lindalice. Esta, de verdade, não existia. Mas João, dito Porém, que só sabia de perus, milho e terreiro, transtornava-se. Queria porque queria. Os amigos, maldosos, não lhe diziam a verdade. Pelo contrário, traziam recados, propunham respostas, ofereciam para escrever cartas de amor. João deu de gastar, perfumes, terno de brim, botinas – coisas que nunca tinha usado na vida. E queria tertúlias com a amada que não via – e nem podia ver.

Os amigos, apoiavam. Marcaram encontro, para dizer, à última hora, que Lindalice, adoecida, tivera que viajar para a cidade, atrás de doutor. João penava, queria saber quando, e se, e onde. Descuidava da criação. Uma ninhada inteira de peruzinhos, solta no terreiro em altas horas, por puro descuido do dono, sumira, devorada por algum bicho da noite. O milho para as aves, antes negociado escrupulosamente com vizinhos, já mal se via nos improvisados cochos espalhados pelo terreiro. Os perus davam de invadir os quintais vizinhos, onde se fartavam das abóboras ainda não colhidas ou maduradas. João Porém, na porta da venda provava do restilo, até então desconhecido. E não poucas vezes foi visto cambalear pelas ruas da corrutela.

Um dia, jogou pedras na janela da casa das professoras, julgando sua amada ali escondida. O cabo meteu-o no xadrez, o sujo banheiro da delegacia do vilarejo. Dalí, humilhado, foi solto ao romper do dia. Na rua, chusma de garotos gritava “João Porém, João Pooorém…” Ele, atormentado, ainda pálido e amarrotado pela carraspana, mais zarolho que nunca, corria atrás. E o escárnio se recolhia, para reaparecer adiante, atrás do muro da Igreja, de dentro das salas da Escola.

Foi aí que vieram os amigos me buscar. Que eu fosse e passasse por Lidalice, mesmo Gerismina sendo. Que Porém não me conhecia e tinha, da outra, apenas imaginada, a visão de loura cabeleira, em tranças composta. Eu, bem sarará e de bexigas, além do mais ganhando a vida do jeito que todo mundo no arraial sabia, nunca que ia enganar ninguém, mesmo um peruzeiro caolho que nem João. E eles insistiam, propondo até paga.

Então fui. Era de tardinha e João, sentado num toco à porta de casa, olhava para o chão. Em volta, a peruzada ciscava e gorgolejava. Mesmo dentro da cafua era uma barafunda de penas e titica. Parei ali e fiquei olhando o pobre. Ele de repente me viu, acho que contra o sol. A cara triste e amarela, de repente se iluminou. Ficou de pé e me olhava, olhava. No princípio, achei que não era pra mim, mas logo percebi que era um olho apenas. O outro, me fitava sério, úmido, amoroso, como o de um cachorrinho aos pés do dono. João me estendeu a mão, grossa, suada, fria. Puxou-me para dentro de casa. Fez café, ofereceu cadeira. Pediu pra fumar, me ofereceu o pito. Quase não falava, só olhava com um olho, o outro corria solto e conferia o mundo em volta. João, num fio de voz, disse: “a gente ficamos aqui, de romances…”. Um peru, perto, fez seu glu-glu e João nem acabou o que ia dizendo. Já escurecia. Minha mão já suava junto com a dele. Encostou a cabeça no meu ombro e uma peninha de peru me fez cócegas no nariz. Fiz força para não espirrar. Gostava daquilo. Assim vimos o dia nascer…

Hoje, ele se foi. Finou. Deu de inchar, ficou mais amarelo que o costume. O doutor, na cidade, dizem, tirou dez litros de água da barriga dele. Voltou para ser enterrado, numa rede encharcada. A saudade aperta, mas não chega a maltratar de verdade quem tem ofício de herança. João Porém quis que eu continuasse sua lida, e eu me entendo com ele e com todos os estes perus, aqui em roda, precisando de mim.

 

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