Naquele abril de 1964, em Belo Horizonte e em muitas outras cidades do país, as aulas foram paralisadas e as ruas tomadas por tanques e uniformes verde-oliva. Eu, por força de estar há quatro anos no Colégio Estadual “Central”, já estava comprometido radicalmente com o contrário daquilo tudo. Às vésperas do golpe, eu e dois amigos de ingênua militância havíamos recebido a incumbência, sabe-se lá vinda de onde, de panfletar no bairro de Santa Efigênia, a poucos metros do quartel da PM que lá havia. Escapamos, mas isso já era uma atividade de alto risco. No fundo, esperávamos que houvesse reação, que forças legalistas se ergueriam aqui e ali e restituiriam Jango ao poder, abrindo caminho para as tão sonhadas “reformas de base”.
A esperança começou a arrefecer em mim ainda nos dias de abril, quando vi se formarem enormes filas nos quartéis militares, de voluntários, em sua maioria jovens, pouco mais velhos do que eu, dispostos a lutar, não pela legalidade ou pelas reformas, mas contra a subversão e o comunismo. Isso, evidentemente, se somou às minhas perdas pessoais e eu percebi dolorosamente que aquilo viera para ficar, por muitos anos. Meu irmão João Mauricio, por exemplo, encerrou a década de 60 preso e torturado pelos milicos. Iria passar, mas só depois de duas décadas inteiras de espera.
Nessa época eu queria ser escritor. “Eram dois na noite escura”, era a primeira frase do livro que eu ia escrever. Éramos, de fato, na ocasião, aqueles dois amigos ingêneuos a perambular pelas ruas da Barroca, do Prado e do Calafate, em muitas noites. Passamos a ser três quando um primo de meu amigo se juntou a nós. Saíamos todas as noites, pela hora da novela, que então já entorpecia as massas (nossa interpretação, é claro), filosofando, tramando obras literárias, tentando equacionar o futuro da humanidade e ajudar a fazer a grande Revolução no Brasil.
Mario era mais intelectualizado, lia Schopenhauer e Nietszche. Tiago era ligado em ciência e em pleno ginásio nos explicava a fissão do átomo, as ondas eletromagnéticas e a teoria da relatividade. Eu com cabedal mais modesto, ficava meio capenga entre eles. Mas nas artes da vida, me considerava melhor. Pelo menos já tinha tocado uma mulher, embora só o bastante para um beijo furtivo.
Éramos três apaixonados! Tinha a morena do ônibus, a prima gostosa, a loura da Igreja, a moreninha do «especial» do Santa Marcelina. Por elas, mataríamos e até, quem sabe, seríamos capazes de morrer. O único problema é que nenhuma delas fora avisada disso. Nem os nomes de algumas delas sabíamos, para falar a verdade.
O cinema, nesta época época, povoou nossas conversas peripatéticas noturnas. Era o tempo de nouvelle vague, cinema novo, neo-realismo. Ficamos sócios de um cineclube, o famoso CEC, não perdíamos sessão. Nossos papos eram sobre a incomunicabilidade humana, o não-ser, o ridículo existencial. Intimidade total com Antonioni, Godard e Fellini. Caí na asneira de criticar o gênero western, por achá-lo “alienado” (palavra da época, acho que quase não se usa mais). Meus dois amigos caíram de pau em cima de mim, dizendo que alienado era eu que não conseguia perceber a “desconstrução do estereótipo americano” dos filmes de Peckinpah e Hawks, ou qualquer coisa que o valha.
Abril de 64 nos pegou de surpresa. Nós, que amávamos a Revolução, tínhamos a certeza de que ela viria através de Jango, da UNE e do CPC e até fizemos aproximação com uma célula do PC. Queríamos armas, dinamite, uniformes de campanha. Disseram que o importante no momento era agitação, propaganda. Aguardamos o momento, disciplinadamente. Um dia, ou melhor, uma noite, fomos ordenados a promover a já citada “agitação”, nas ruas adjacentes ao quartel da PM em Santa Efigênia. Cumprimos a ordem, munidos apenas de um saco de mantimento com panfletos, uns poucos papéis amarelados e amarfanhados, que não deram para mais do que vinte minutos de trabalho. Nem uma dupla de policiais ou uma «rapa», por longínqua que fosse, deram o ar da graça. A Revolução não tinha o charme nem o perigo que nós, seus amantes, esperávamos…
Éramos três na noite escura, perambulando, filosofando, discutindo, brigando, mentindo, acreditando na Revolução, fazendo literatura em nuvens, nos iludindo, amando platonicamente. Éramos jovens, apenas, mas não percebíamos este doce pássaro escapando de nós, celeremente, para nunca mais.