Eu e o Conasems: 30 anos depois

Em 1987, fui escolhido, em Congresso de Secretários Municipais de Saúde realizado em Londrina, como vice coordenador (mas titular na prática) da comissão que organizou a entidade nacional de tal categoria, o Conasems, criado oficialmente um ano depois, no congresso de Olinda. Fui também o primeiro vice presidente da entidade, mas mais uma vez, na prática, fiz as vezes de presidente, pois o sujeito que foi eleito no evento,  já se candidatara sabendo que não ficaria muito tempo no cargo de secretário, candidato que era a vereador em Recife. Mas tudo bem, isso não está contado nas crônicas oficiais da história do Conasems… Recupero aqui um pouco da história que eu vivi.

Isso remete à minha gestão como Secretário Municipal de Saúde, em Uberlândia, entre 1983 e 1988. Mais exatamente em 1986, os ventos começaram a soprar de maneira diferente, com meu envolvimento na formação de um organismo ou conselho de secretários municipais em MG e, particularmente com a realização da oitava Conferência Nacional de Saúde, a primeira desde que o país havia entrado na trilha democrática (ponhamos alguma reserva nisso…). Foi aí que os ventos começaram a empurrar meu barco em direção ao Mar Aberto.

Oitava Conferência nacional de Saúde… Grande momento! Ela mobilizou as minhas energias e esperanças na ocasião. Aliás, minhas e de mais uma multidão de pessoas, embriagadas com a Nova República, embora Tancredo estivesse morto e o presidente fosse Sarney, político de índole conservadora, notório pactuário da ditadura, além de criado dentro do que havia de mais reacionário na vida nacional – a UDN. Mas as esperanças eram muito fortes e, em 1986, ainda não estavam se derretendo no sol, como diz a canção de Milton e Brant. Assim, em setembro ou outubro deste ano, acorremos a Brasília, aos milhares, em brados retumbantes e entusiasmados, achando que realmente a hora de reformar o precário sistema de saúde brasileiro e dar-lhe a feição há tanto tempo sonhada havia finalmente chegado.

Esta conferência, embora fizesse parte de uma série (era já a oitava), nasceu de uma feliz convergência de pessoas e situações. Afinal, um grupo progressista ganhara, com a Nova República, posto de destaque dentro do sistema sanitário nacional, ainda mais fragmentado e ineficaz do que o atual. No Inamps, Hésio Cordeiro, um professor universitário do Instituto de Medicina Social UERJ; na Fiocruz, Sérgio Arouca, professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e político ligado ao antigo PCB; no Ministério de Previdência Social, Waldir Pires, político baiano ligado à esquerda brizolista, além de outros nomes, menos notáveis. O fato é que com os ventos favoráveis da democracia e da participação soprando, tratou-se logo de criar uma marca distintiva para as mudanças auguradas na saúde do Brasil, ou seja, a Conferência Nacional de Saúde de 1986, convocada com grande estardalhaço e com direito até a merchandising em novela global.

Nesta altura dos acontecimentos eu estava tentando organizar tal “base” popular na cidade de Uberlândia, tendo mesmo proposto e organizado um primeiro esboço de Conselho Municipal de Saúde, para o que consegui trazer até mesmo convidados de fora, no caso dois militantes de Nova Iguaçu, onde o bispo católico progressista Dom Mauro Morelli apoiava intensamente as chamadas Comunidades Eclesiais de Base e a militância participativa em geral. Chegamos a realizar pelo menos dois encontros antes da grande conferência em Brasília e ainda que informalmente, este que ora escreve, como promotor e apoiador do movimento local, além de Secretário da área, já seria objeto de consenso para tal representação, só não tendo sido decidido isso por falta de clareza quanto ao processo de escolha. De toda forma, antes eu, convocado por fax, do que algum aventureiro arrivista, mais carente de legitimidade do que a minha pessoa.

Havia de tudo no Ginásio de Esportes, onde ocorreu o evento. Grupos os mais diversos acampavam e faziam saudável lobby de suas demandas nas entradas do prédio. Eu vi índios, parentes de vítimas de acidentes, sindicalistas, portadores de patologias, membros de partidos políticos, representantes do movimento de moradores, sanitaristas, municipalistas, além de muitos outros grupos de interesse travando ali um bom combate. É claro que havia também as eternas propostas extremadas e impraticáveis, como a de retirar do cenário da saúde no Brasil a iniciativa privada. E cada corporação da saúde, tendo a Fundação SESP e a Sucam em posição notória, tentando mostrar a todos que sua atuação era o que livrava o país do caos na saúde. Ausências ou participações apenas tíbias dignas de nota já se mostravam, como a das entidades médicas, com honrosa exceção dos sindicatos.  Mas tudo fazia parte de um todo em que a esperança de mudança era o mote dominante.

Nota curiosa: na abertura do evento o próprio José Sarney esteve presente e foi aplaudido vivamente pelo público. Não que tal sujeito merecesse tanto, mas, enfim, cabe lembrar que o Brasil vivia tempos mais amáveis, cheios de esperança no futuro, em que a delicadeza ainda era capaz de se mostrar, sem parecer subserviência.

Um dos grandes acontecimentos da Oitava CNS foi uma reunião, da qual eu participei ativamente. Ali, em uma das escadarias laterais, estávamos umas cinquenta pessoas, geralmente secretários ou representantes de gestão municipal de saúde, gente de todo o Brasil. Sob a liderança incontestável de Nelson Rodrigues dos Santos, o Nelsão – a quem homenageio na seção Personae, mais adiante neste texto – fizemos o compromisso que considero histórico, que se materializou ao longo do ano seguinte: a fundação do Conasems, o organismo de representação dos Secretários Municipais de Saúde de todo o país. Eu estava lá e considero que isso foi uma das coisas mais importantes – se não a mais relevante – em que me envolvi na vida.

Em maio de 2018, quando tais acontecimentos completaram 30 anos (mais um pouco, no caso da Oitava Conferência), o Conasems se lembrou de mim, organizando um encontro de seus fundadores em Brasília (ver link abaixo). Resolveram homenagear tal grupo também, com o que chamaram de “moeda” (eu preferiria o nome de “medalha”) comemorativa, a ser entregue no Congresso Nacional de SMS a ser realizado no mês de julho seguinte, em Belém-PA.

Aceitei o primeiro convite, que incluía proferir uma pequena fala. Quanto à tal “moeda”, declinei. Achei que era muito pouco metal a justificar uma ida a Belém com passagem aérea e demais despesas pagas pelo erário. Não me arrependi.

Apenas um tópico isolado de minha fala foi contemplado pelo Conasems na matéria a que o link abaixo se refere, o que me pareceu coerente da parte deles, pois realmente a mesma destoou do tom triunfalista que dominou o evento, relativo aos desígnios da entidade e ao próprio SUS, coisa bem característica entre militantes, aliás.

Em linhas gerais, defendi ali o seguinte:

  1. Que o SUS fosse visto não apenas dentro dos limites daquele sonho generoso que moveu os SMS e muitos outros militantes dos anos 80, pois em muitos aspectos ele não se sustentou. Assim, tornou-se preciso não exatamente tentar ressuscitar o tal sonho, mas também denunciar seus desvios (vistos no “SUS real”), mas também construir um SUS dentro dos limites do “possível”, ou seja, sem grande ilusões e principalmente sem perder a visão da realidade (aspecto que tem me feito refletir e escrever a respeito – ver link abaixo).
  2. Que algumas das pessoas que também participaram ou colaboraram com a criação da entidade, não apenas membros da primeira diretoria, como era o caso dos presentes naquela mesa, fossem também lembrados. Alguns nomes “ancestrais” foram lembrados por mim, tais como Nelson Rodrigues do Santos, Hugo Tomasini, Gilson Cantarino, Marcio Almeida, Gilson Carvalho, Eugênio Vilaça Mendes, Sebastião de Morais, Lucio Marchesi, Roberto Santos, Cairo Freitas, Ronei Ribeiro, entre outros.
  3. Que o Conasems cometeu o equívoco de ter abandonado sua estrutura inicial de colegiado de gestores para se transformar em uma agremiação de secretarias, promovendo encontros nacionais como eventos festivos e quase-sindicais, financiados por segmentos do empresariado da saúde, não custando lembrar que o Conass, atualmente muito mais poderoso no cenário da saúde, não fez opção por algo assim.
  4. Que é preciso não confundir descentralização (e municipalização) como processos diretamente equivalentes a democratização, ainda mais num contexto de uma federação de desiguais, como no Brasil, porque como apontam os estudiosos do tema, muitas vezes uma coisa não implica necessariamente na outra, sendo bem conhecidas as práticas centralizadoras, antidemocráticas e de dominação e hegemonia, praticadas também no nível local.
  5. Que o Conasems apresenta certo viés de ter se transformado em entidade que representa de maneira mais intensiva os pequenos municípios, haja vista a composição atual de sua diretoria, e que isso acaba por afastar das discussões os municípios de maior porte, que tendo maior poder político, acabam por levar as discussões e decisões relativas à saúde a outros canais mais permeáveis, em regimes de curto-circuito.
  6. Que o atual momento de investidas contra o SUS (PEC 95 e outras medidas governamentais) exigirá dos organismos gestores novas estratégias de ação política, e não apenas “chorar pelo leite derramado”.
  7. Que o antigo lema “a municipalização é o caminho” tornou-se hoje bastante questionável, se não anacrônico, pois realmente há que se pensar em estruturas regionais, mais do que locais, para dar sustentação à saúde e outras políticas públicas.
  8. Que o instrumento representado por CIB e CIT, se por um lado representa a face mais visível e mais marcante da atuação do Conasems na política de saúde, por outro lado padece de distorções e carece de aperfeiçoamentos constantes, por exemplo, por se estruturar em base quantitativa (“paridade”), o que implica em votação mais do que em consensos entre as partes representadas, e também pela ausência de atores também importantes na política, como é o caso dos prestadores.

Estávamos todos, os tais fundadores do Conasems, muito felizes naquela reunião realizada no auditório da Faculdade de Saúde da UnB. Acho que acima de tudo estávamos saudosos de outros tempos, nos quais as esperanças, relativas à saúde e à democracia, certamente eram maiores e mais visíveis, não de nossa parte, mas da cidadania brasileira como um todo. Tínhamos, com certeza, saudades de um tempo em que era possível ter emoções e saudades, mas, principalmente, saudades de nossa juventude.

E veja também o link que trata da referida reunião dos fundadores do Conasems, realizada em maio de 2018: http://www.conasems.org.br/trajetoria-do-conasems-e-tema-de-seminario-com-fundadores-da-entidade/

Sobre minhas ideias relativas ao futuro do SUS: https://veredasaude.com/2017/05/29/o-sus-entre-o-sonhado-o-real-e-o-possivel/

 

 

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