Todos os que defendem o SUS, como é o meu caso, concordamos que mesmo com todos os seus acertos ele ainda precisa ser melhorado em muitos aspectos. Mas isso é apenas uma meia verdade, pois para um tanto de gente, a simples menção de se cancelar ou reescrever alguns dos dispositivos que regem o sistema causa temor e repulsa, quando nada acusações de heresia e traição aos ideais do SUS. Mas não são poucos os exemplos de dispositivos legais que simplesmente “não pegaram” (como se dizia antigamente da vacina antivariólica) ou simplesmente são inaplicáveis ou não passíveis de regulamentação.
Assim, tornou-se emblemática a referência ao artigo 35 da Lei Orgânica da Saúde (L. 8080), que propõe uma fórmula mágica de partição de recursos para transferência para estados e municípios, mas que, apesar das boas intenções de seus formuladores, se revelou de aplicação complexa, senão impossível, por quantificar monetariamente determinadas situações de saúde. Por hipótese, obedecidos tais trâmites, seria preciso atribuir valor monetário às áreas com alta incidência de tuberculose, diferenciando-as da ocorrência de acidentes, por exemplo, como se isso fosse possível (e comparável).
Outro dispositivo estranho, para dizer pouco, está na lei 8.142, que fala dos mecanismos de participação social em saúde, prescrevendo que as Conferências de Saúde, assim como os Conselhos, devem contar com 50% de usuários em sua composição. Para os Conselhos tudo bem, parece bastante democrático. Mas para as Conferências, isso simplesmente não faz qualquer sentido, pois acarreta, no limite, que se existirem algumas centenas de cidadãos comuns dispostos a participar do evento (o que não é raro), seria preciso arregimentar igualmente outros trezentos, entre burocratas, prestadores e gestores. É simples a solução de tal dilema (na verdade, falso): as conferências de saúde devem ser abertas à participação popular e que ela seja o mais ampla possível – e ponto final! Ao invés de burocratas e lideranças de representatividade duvidosa, o foco deve ser posto nos interessados. Simples assim!
O artigo 196 da Constituição Federal é outra pérola de indefinição e de geração de polêmicas. “Saúde é um direito de todos e dever do Estado”. Visto assim de relance é uma afirmativa magnífica e taxativa, do tipo “eppur si muove”, “fiat lux”, “independência ou morte”, ou “no princípio era o verbo”. Ninguém em sã consciência poderia botar defeito nisso. Mas além do verbo, tem a verba… E uma mente realmente sadia levaria o pensante a certas perguntas incômodas: Como se define a natureza e a abrangência de tal “direito”, bem como o que vem a ser “ter saúde”? Este direito de todos significa que todos estão aptos a alcançá-lo da mesma forma? Os mais ricos não possuem mecanismos de captura de serviços mais eficazes do que os mais pobres? Isso significa que o sistema deve prover tudo, para todos, durante todo o tempo? Entre os deveres do Estado não estaria o de garantir a equidade, para impedir que os grupos sociais mais organizados, articulados e bem informados alcançassem (e esvaziassem) a cesta de serviços em primeiro lugar? Os recursos financeiros para tudo isso têm como matéria prima o látex ou alguma molécula milagrosa, dilatável ao extremo, que a engenharia dos materiais tenha produzido?
E que se acrescente a isso outra grande indagação, que não quer calar: “o direito de todos” é realmente o mesmo para todos – para os servidores das estatais e outros das cúpulas governamentais, do Legislativo e do Judiciário, por exemplo? Todo mundo sabe a resposta e ela indica que há uma forte separação entre “todos” e “alguns” no Brasil, e que esta segunda categoria não está incluída na primeira.
Neste aspecto, o médico e pesquisador espanhol Juan Gérvas faz uma severa crítica aos arranjos de políticos e burocratas, endossados pelos militantes, como acontece no vistoso panorama legal brasileiro, que embora bem intencionados, prometem coisas intangíveis (e impossíveis). Ele cita, ironicamente, a “felicidade”, mas acrescento eu, a “saúde para todos” do artigo 196, não seria também um desses sonhos de noites de verão? Assim, segundo Gérvas, o que seria mais adequado inscrever na Constituição é que “serviços de saúde custo efetivos” é que devem ser, de fato, um direito universal, com a definição de parâmetros que precisam ser debatidos para definir o que é realmente “custo efetivo” e, no caso, adaptar isso à realidade brasileira, para não se transformar apenas em (mais uma) promessa vã.
Ora diríeis, isso tudo se resolve com uma boa regulamentação. Mas o fato concreto que a tal frase de efeito constitucional, que implica no “tudo para todos”, é assumida sem mudança ou contestação não só nas leis orgânicas como também no vasto cipoal legal e normativo abaixo delas, bem como no discurso dos militantes e das autoridades (as quais, todavia, não fazem nenhuma força para cumprir o que dizem, até porque não conseguem…). E é por tal caminho que se move a gestão pública do SUS.
E diriam também que o Estado brasileiro não está preparado para tanto. Não deixo de concordar, mas só para provocar, lembro: são tarefas titânicas, mas, quem sabe, talvez seja menos difícil mudar o Estado no sentido de uma capacidade de gestão e regulação efetiva do sistema, do que adequá-lo para a prestação de serviços diretamente ao público, o que é um item bastante querido pelos defensores de posições estatizantes na saúde.
Para não esgotar a generosa paciência dos leitores com exemplos exaustivos, aqui vai só mais um: “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada” (Art. 199), abrindo para esta, a seguir, num primeiro parágrafo, o atributo de “participação complementar” no sistema. Mais uma vez, palavras que são apenas palavras… Nada disso, desde o grau da tal “liberdade” até o significado real de “complementar” obteve uma regulamentação adequada até agora, o que transformou o sistema privado, mormente o dos planos de saúde, em autêntico predador do SUS.
E para completar, o tal artigo ainda dispõe que na liberdade que concede à iniciativa privada, está excluído, de forma direta ou indireta, o “capital estrangeiro”. Deve ter sido algum espírito remanescente do nacionalismo dos anos 50 que se infiltrou entre os constituintes, o mesmo que inspirou a histórica criação da Petrobrás. Bom, mas a estatal brasileira de petróleo é hoje muito mais um exemplo “de como não devem ser as coisas” do que propriamente de como elas “devem ser” – um verdadeiro contraexemplo, na verdade. Não é algo a ser mudado, até porque sugerir isso seria cutucar um formidável vespeiro, mas não custa nada indagar: haveria provas de que o capital nacional seria mais benéfico, honesto ou regulável do que seu correspondente estrangeiro? Este parágrafo entra para o rol das incongruências constitucionais.
A eterna questão do público versus o privado… No Brasil, insiste-se em chamar de “público” (e defendê-lo com ferocidade) um sistema em que a maior parte dos gastos vem dos cofres privados e familiares, além de ser uma instância dentro da qual o Estado financia benesses para parcelas já bem aquinhoadas da população.
A discussão sobre o que é (ou deveria ser) público ou privado no Brasil passa por uma tremenda filtragem ideológica, acho eu. A sanha militante face ao que chamam de “privatização”, como, por exemplo, a gestão de serviços de saúde por Organizações Sociais, sabidamente mais eficaz do que a estatal, é digna de uma Ku-Klux-Kan estatista. E como o rótulo de “privado” é maldito, passa-se a incluir nele, indistintamente, tudo o que a ideologia refuga, desde as empresas lucrativas (e às vezes picaretas) de planos de saúde até as organizações sociais honestas e comprometidas de fato com o bem público, bem como as entidades públicas de direito privado, que têm prestado bons serviços à causa da saúde no Brasil.
O buraco é mais embaixo, todavia. Penso que o real problema não deriva diretamente do tipo de sistema de financiamento, mas sim da forma de atuação do Estado, em termos da implantação da política, do grau de corrupção, da politização do campo ou da mercantilização da saúde. O que deve ser realmente levado em conta é que o os serviços de saúde sejam prestados de forma acessível a quem os demandar – e com qualidade. Não importa quem o faça, mas sim quem coloca as regras no jogo e o controla. Citando Mao, a cor do gato não importa; os ratos devem temê-lo…
No Brasil parece que a preocupação é mais com os antecedentes do que com os consequentes, pelo visto. Ao invés de se visar o touro, mira-se o toureiro – com o devido perdão pela menção a esta incorretíssima atividade de lazer que é uma tourada… Os direitos dos ratos costumam ser mais respeitados do que os dos seus caçadores felinos…
Item sempre polêmico é o da chamada municipalização dos serviços de saúde tal como tem sido praticada no Brasil. Eu não a chamaria de “irresponsável”, mas certamente já nasceu carente de uma visão estratégica, ou, pelo menos, em sintonia com a realidade. Adotaram-se, com efeito, nos primeiros anos pós Constituição de 1988, palavras de ordem, do tipo “a municipalização é o caminho”, com um corolário imediato, “todo poder aos municípios”, sem levar em conta que, no Brasil, são dados como municípios, São Paulo, com seus 15 milhões de habitantes, mas também pequenas “corrutelas” com pouco mais de um mil… E as sagradas leis do SUS não fazem distinções entre uma coisa e outra.
Mas o fato é que a tal da “municipalização” é mais um dos descaminhos do SUS. Não que haja leis ou artigos de leis a mudar. Afinal, tal expressão nem está presente em nenhuma linha da Constituição de 1988, pelo menos na seção da Saúde. O que está escrito, com todas as letras, é “descentralização”. A interpretação transformista dessa expressão genérica, que poderia significar a transferência de poder e recursos não só aos municípios, mas também aos estados ou até a alguma instância regional, talvez com mais eficácia nestes casos, é mais uma daquelas iniciativas corporativas e eleitoreiras das quais a Carta Magna está repleta.
O governo federal e os governos estaduais não devem, certamente, cuidar de tudo na saúde. A descentralização é importante. Mas antes que alguém venha a lembrar do enorme “sucesso” da Fundação SESP, uma instituição federal que operou serviços de atenção primária durante algumas décadas no interior do Brasil, é bom lembrar que a mesma esteve presente somente em áreas muito restritas do país, nas regiões NE, N e CO, mesmo assim com enormes “brancos” assistenciais. A FSESP era, além do mais, totalmente impermeável à participação social e mesmo às influências e reais demandas locais. A questão, portanto, não é tanto de centralização ou descentralização, mas sim de encontrar o ponto ideal para cada situação, em termos de gestão, modus operandi assistencial, ações intersetoriais e parcerias, política de recursos humanos, financiamento, entre outros aspectos. Isoladamente, é bom que se diga, nem o público nem o privado seriam capazes de dar conta do recado.
Na década de 90, Gilson Carvalho, grande líder do movimento municipalista e ator central da implantação inicial do SUS, cunhou uma expressão que ficou famosa, a de que era preciso se ter “ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”. Eu ousaria mudar – ou atualizar – o foco de tal ousadia. Talvez o que mais seja necessário, hoje, é de muita coragem e valentia para enfrentar a remoção de um entulho legal e normativo que já não serve para nada, além de reformular pontualmente aquilo que mais atrapalha do que facilita o desenvolvimento de um sistema realmente capaz de produzir saúde para os brasileiros, sem propagar ilusões como: de que é possível dar “tudo para todos”; de que todo o poder na saúde deva ser outorgado aos municípios ou de que as decisões dos organismos de “controle” social devem ter força de lei, além de outras miragens semelhantes. Não se trata de iconoclastia, mas sim de se dobrar à realidade.
Aliás, convenhamos, para fogueiras cuja chama se enfraqueceu, como no SUS, o melhor remédio é revirar a lenha antiga, já em etapa avançada de combustão, dar uma boa soprada e acrescentar lenha nova. Deixada por conta própria ou em mãos paralisadas a chama acaba se extinguindo.
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Ainda dentro do mesmo tema, há poucos dias, tive a oportunidade de ler um artigo que aborda de forma crítica e aguda novos tópicos da questão desse panorama legal imprestável. Trata-se de um texto de Gustavo Gusso, Nulvio Lermen, Daniel Knupp, Paulo Poli Neto e Thiago Gomes da Trindade, jovens lideranças e pensadores-praticantes da Medicina de Família e Comunidade (MFC), originários de diferentes cantos do Brasil. Pelo menos dois deles, Gustavo e Nulvio, tive a honra de conhecer pessoalmente. Foi poblicado em 2015, mas sua validade é incontestável, talvez por muitos anos ainda. Vejam a citação ao final.
Um ponto central da discussão levada por eles é a de que a reforma sanitária brasileira, que deu origem ao SUS, praticamente abandonou o princípio constitucional da contratualização, que está presente no referido art. 199 e que permitiria novos mecanismos de gestão não restritamente pública, ou seja, livres das amarras fatais de leis como a 8.666 (contratos e licitações) e 8.112 (Estatuto do Funcionário Público), sem descuidar da identificação e do controle de fraudes, além de ser capaz de promover a saúde no nível individual e coletivo, contrapondo-se também ao uso contumaz e indiscriminado dos serviços.
Porém, ao contrário do Brasil, uma coisa assim foi incentivada e desenvolvida nas reformas de saúde de países da Europa Ocidental e Canadá, ocorridas na segunda metade do século XX e que até mesmo inspiraram a Reforma Sanitária no Brasil. Nestes países, os sistemas de saúde socializados integraram o financiamento público de serviços privados, independentemente de serem baseados em seguro-saúde (sistema bismarckiano) ou na arrecadação geral de impostos (beveridgeano) e utilizam amplamente tal contratualização, o que permitiu que médicos e outros servidores pudessem prestar serviços à população, principalmente de atenção primária, sem se constituírem de fato e de direito em servidores públicos típicos (no padrão da Lei 8112), embora regulados e fiscalizados pelo Estado, que participa da equação não apenas como manancial de dinheiro.
É claro que eles estão falando de outro padrão de Estado (e de seu cortejo de políticos e burocratas), mas, quem sabe, um dia chegaremos lá?
Enquanto isso, lembram, a Constituição de 1988 respalda um sistema universal de saúde, financiado por impostos gerais, mas que ao mesmo tempo permite a expansão de serviços privados sem regulação estatal competente, embora financiados amigavelmente pelo Estado, por meio da isenções fiscais e subsídios, seja para os detentores de planos de saúde ou para os próprios servidores da máquina pública.
Os autores detêm-se, especialmente, sobre o que vem a ser “público” e “privado”. Na primeira categoria o financiamento é majoritariamente proveniente do Estado (ao menos 70%), mas os serviços podem ser privados, desde que regulados pelo Estado. Já o conceito de privado inclui também aquilo que é “pertencente ao próprio trabalhador” e assim é assumido e praticado na maioria dos países que apresentam um sistema de saúde de fato universal e com financiamento majoritariamente público (por exemplo, Canadá, Japão, Holanda, Inglaterra, Dinamarca, Irlanda, Itália, Noruega, Nova Zelândia).
Algo assim, na verdade, já fez parte também da realidade brasileira até 1988, quando se aboliu a rede de médicos, geralmente clínicos gerais, que prestavam serviços como profissionais liberais ou contratados pelo INAMPS e seus antecessores em todo o país. A partir de então, adotou-se a atenção básica com total dependência estatal, seja em termos de estrutura física e de vínculos funcionais. Bem ao contrário do que fez a Inglaterra, várias décadas antes, onde o National Health Service (NHS) não só tem em sua origem, como fomenta, a participação no sistema da clínica individual privada dos GP, que com o tempo passam também a incorporar medidas preventivas e trabalho multiprofissional. No Brasil, ao contrário, foi decretada a dispersão de uma significativa força de trabalho médica, que passou a ter no serviço público uma instância de trabalho pouco prestigiada.
Sobre isso indagam os autores em foco: “não terão sido justamente esses clínicos gerais liberais espalhados por todo o país que foram absorvidos pelos planos de saúde para criar a sua rede de serviços? Não teria sido melhor o SUS tê-los absorvido?”. Isso talvez explique, pelo menos em parte, a dificuldade em se fazer uma APS consistente no Brasil, dado o abandono de algo que representa parte de sua essência: a clínica voltada para os problemas comuns e frequentes na população.
Citam o exemplo da rede de serviços de atenção primária à saúde que pertence aos próprios médicos nas grandes países que optaram pela APS como instância ordenadora do sistema, contrat(ualiz)ados que são pelo Estado, mediante instrumentos adequados, não por algo parecido com a CLT ou o estatuto da Lei 8112. Mesmo algumas exceções, como Portugal, Espanha e outros países, nos quais a força de trabalho ainda tem contrato estatal direto, estão passando por reformas que direcionam o sistema para uma maior autonomia do trabalhador, configurando o que denominam de contratualização.
Na visão dos referidos autores, o fato de que toda a rede de atenção primária existente tenha sido entregue aos municípios, sem oferecer minimamente as condições materiais e de gestão para que o sistema funcionasse a contento, fez com que surgissem grandes distorções no cenário. Com efeito, alguns grandes municípios até obtiveram atingir um nível de qualidade razoável na APS, mas isso não se deu com a grande maioria, que padeciam e muitos ainda padecem de fortes carências para a gestão dos serviços de saúde, óbice não totalmente exclusivo das pequenas cidades, já que existem inúmeros exemplos de metrópoles que se arrastam na estruturação de sua APS com resultados pífios durante muitos anos. Aliás, digo eu, tal foi o caso de Brasília, só recentemente em vias de superação – e mesmo assim com ressalvas diversas.
E arrematam, com muita propriedade: “Tudo leva a crer que a opção pela municipalização foi uma decisão com viés corporativista e político, pois com a autonomia municipal cada prefeito ou secretario municipal de saúde ganhou uma importância na formulação da política de saúde desproporcional à capacidade de implementação, além de cada nova eleição representar uma ameaça ao que vinha sendo construído. As cidades com mais sucesso são as que seguem a formulação nacional quando esta está de acordo com as premissas beveridgianas, sem procurar inventar modelos próprios”.
Os autores propõem, ainda, algumas medidas que se coadunam com este “novo sanitarismo”, para tratar do caso da atenção primária. Entre elas: (a) remuneração em todos os níveis através de composições (mix), propondo-se para a atenção primária o modelo per capita onde houver lista de pacientes, devendo representar pelo menos 50% da remuneração global; (b) que nenhuma das demais formas de remuneração (capitação, salário fixo, produção e resultado) corresponda a 100% da remuneração, sendo fundamental incorporar mecanismos que premiem profissionais que permaneçam mais tempo na unidade, bem como incentivos para a ida a áreas remotas, tais como recompensas materiais, saídas para formação continuada, bolsas de estudo universitárias preferenciais (tipo cotas) para os filhos destes profissionais, etc; (c) que os médicos gerais trabalhem mediante a formação listas de pacientes, não apenas por critérios geográficos, mas que sejam abertas em termos de critérios de idade e vulnerabilidade social, adequados à realidade local; (d) livre escolha na área geográfica da unidade de saúde e que o mesmo profissional participe do cuidado fora do horário comercial na forma de rodízio regional; (f) desenvolvimento de uma política de regulação da formação médica, com reserva de percentuais de vagas de residência para MFC, como já ocorre em grande parte da Europa Ocidental e Canadá.
Essas propostas valem um comentário meu (Flávio). Elas têm muita lógica, pois afinal de contas inserem no cenário algo incomum (pelo menos no Brasil, por enquanto): os incentivos à produtividade e qualidade, ao invés do habitual estipêndio fixo pago ao final de cada mês. Para muitos profissionais isso certamente representará um ganho material adicional e também, no plano simbólico, o fomento de sua adesão ao processo de trabalho e maior grau de satisfação com o que se faz. Mas alguém precisa combinar isso “com os russos”, ou melhor, com os sindicatos. Certamente estes questionarão, como já têm feito, o que denominam de “risco de precarização”, ou seja, já que fatalmente ocorreria uma espécie de “seleção natural” que privilegiará os mais laboriosos e comprometidos, seriam deixadas para trás algumas pessoas em relação aos eventuais benefícios. Estes últimos poderão acusar (e serem defendidos pelas lideranças) estarem sendo vítimas de “assédio moral”, este novo termo genérico muito usado quando está em discussão a cobrança por baixa produtividade no trabalho. De toda forma, a reivindicação de que os eventuais acréscimos monetários devem ser incorporados como vantagens permanentes certamente vai acontecer, pois a cultura sindical e laboral brasileira tem muita dificuldade em lidar com propostas como produtividade, resultados, qualidade, adesão, incentivos e outras. Mas o que está em discussão aqui são MUDANÇAS e sendo assim é melhor apostar em sua implantação, mesmo com todas as dificuldades no cenário. Ainda é bom lembrar que palavras de ordem como listas de pacientes, foco na vulnerabilidade e na realidade social, mix de vencimentos, capitação, livre escolha, regulação da formação médica, fazem parte de uma “nova ordem mundial”, que não emanou de nenhuma Troika malévola, mas sim da evolução dos conhecimentos e tecnologias que se somam a cada dia ao contexto da Atenção Primária à Saúde. Sua adoção trará um futuro mais risonho para os sistemas de saúde, e não para os que as negarem por razões corporativas.
Mas certamente Gusso, Knupp, Trindade, Lermen e Poli merecem nossos cumprimento pela ousadia – e posso dizer até pela valentia – de propor algo que vai na contramão do estatuto legal do SUS, tido por certos grupos como verdadeiras e imutáveis Tábuas da Lei, emanada de algum Moisés perdido na história…
Veja o artigo: Gusso GDF, Knupp D, Trindade TG, Lermen Junior N, Poli Neto P Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2015 Jul-Set; 10(36):1-10