Em abril de 2013 tive a honra de ser relator de um evento promovido pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (dos Estados) – CONASS, cujo tema foi “Saúde: para onde vai a nova classe média?”. O documento completo está disponível para todos no site http://www.conass.org.br, mas compartilho com meus leitores a síntese analítica do mesmo, que foi redigida por mim. Segue abaixo.
Primeiro Seminário do Projeto CONASS Debate:
“Saúde: para onde vai a Nova Classe Média”
RELATÓRIO FINAL
Relator: Flavio A. de Andrade Goulart
A presente iniciativa do CONASS procurou desvendar algumas das mudanças significativas no panorama da economia, da demografia e das políticas de saúde contemporâneas no Brasil, além de procurar indicativos de compreensão e resposta a tanto. Entre tais mudanças estão: a mobilidade social e o crescimento expressivo das classes médias nos últimos anos; o crescimento expressivo do mercado privado em saúde, especialmente em relação aos planos de saúde suplementar; a compreensão e a valorização que os brasileiros em geral, mas especialmente uma nova classe média emergente, possuem em relação à norma constitucional da saúde como direito de todos a ser provido por um Estado de bem estar social, ou para além disso, suas aspirações em relação ao que lhes possa ser oferecido mediante transação econômica dentro do Mercado.
A NOVA CLASSE MÉDIA
Não há quaisquer dúvidas sobre as grandes transformações ocorridas, sem precedentes históricos, por que passou a distribuição de renda no Brasil, particularmente ao longo da última década. Isso provocou uma significativa expansão da classe média, gerando daí a expressão “Nova Classe Média”, formada pelos segmentos que até em momento anterior pertenciam à classe baixa.
A expectativa é de que tal segmento continuará em expansão nos próximos anos, passando de 38 milhões de pessoas, em 2002, para 52 e 57 milhões em 2012 e 2022, respectivamente. Esta classe média brasileira, curiosamente, já consome mais que a Holanda ou a Suíça, formando um “país” que é o12º em população e 18º no consumo, em termos mundiais.
Em termos da distribuição de renda no Brasil na última década algumas mudanças podem ser destacadas. No crescimento do PIB per capita no Brasil, por exemplo, tem-se que os 10% mais ricos o fizeram de maneira próxima à da Suécia; já entre os 10% mais pobres, o ritmo de crescimento se aproximou daquele da China. Verificou-se, também, que o grau de desigualdade na renda no Brasil está em queda progressiva nas últimas décadas, mas especialmente nos últimos 10 anos.
Aspecto a ser lembrado e destacado ainda é o de que partir dos anos 90 o Brasil estabilizou sua economia e desencadeou um importante processo de reformas estruturais e reorientação da política social. Entre outros desdobramentos, milhões de brasileiros passaram a experimentar uma mobilidade social inédita em termos históricos, que afetou decisivamente a composição de todas as classes. Por exemplo, cada vez mais cidadãos, contados em milhões, passaram a pertencer não mais às classes baixas, mas sim à classe média.
Isso, naturalmente potencializa um marcante encurtamento de distâncias sociais e promove difusão do consumo, embora suscite questões do tipo: seus integrantes irão gerar a renda necessária para sustentar os novos padrões? São sustentáveis os índices de expansão dessa nova classe média? A tendência de crescimento é sustentável, de estagnação ou de regressão?
Surgem então, nessa nova classe média, preocupações inéditas, também, relativas a dispor ou não de aposentadoria digna, além de sentimentos de insatisfação com a qualidade da saúde, da educação, das ações de governo e de muitos outros serviços oferecidos pelo Estado. A crença na intervenção estatal se mostra presente, mas fica pendente a disposição de se pagar mais impostos para obter tais benefícios. Há também no ar, por parte da classe média, uma inclinação pelo regime democrático como melhor forma de governo, embora partilhe com os demais segmentos da sociedade um sentimento de aversão à política.
No Brasil como nas democracias contemporâneas ser de classe média significa valorizar a competição, o mérito, o respeito à liberdade individual, a igualdade perante a lei, ser avesso a risco, valorizar a família e alcançar um nível de renda que as faça sentir que têm nas mãos seu destino econômico. Não obstante, se a classe média tradicional já conquistou casa própria, colocou os filhos em escolas privadas, fez poupança e investimentos e conta com ampla rede de relações, este segmento emergente, cujas conquistas são recentes, ainda tem que galgar posições. Seu consumo é certamente maior do que o da geração anterior, mas certamente ele acarreta endividamento, por exemplo, com o primeiro imóvel, sendo que ainda não sobra o bastante para constituir uma poupança.
Mas não há dúvida que o Brasil está diante de algo realmente novo, um segmento social com características próprias e inéditas, como se vê pelos dados seguintes: compõe-se de mais da metade da população (52% em 2010) e é dominante do ponto de vista eleitoral e econômico, detendo 46,24% do poder de compra total, sendo ainda responsável por 78% do que é comprado em supermercados, por 60% das visitas a salões de beleza, 70% dos cartões de crédito e 80% das pessoas que acessam a internet. Além disso, 68% de seus jovens estudaram mais que seus pais. Enfim, são pessoas que não deseja necessariamente o mesmo estilo de vida das elites, valorizando suas origens, almejando “subir na vida”, viver melhor, consumir mais e, portanto, aprender e se qualificar. Elegem, além do mais, como valores, o respeito próprio, serem aceitos e respeitados, disporem de segurança para viver, desfrutar da vida, alcançar aspirações. Para eles, a importância do trabalho é patente, mesmo em condições sociais adversas, praticando assim uma “ética do trabalho”.
A DINÂMICA DAS CLASSES SOCIAIS NO BRASIL
Sobre a expansão da classe média, ela foi gerada pela diminuição da classe baixa, tendo havido, além do mais alguma migração para a classe alta. Assim, enquanto a classe baixa decresceu 21 pontos percentuais, a classe média aumentou em 24 pontos e a classe alta cresceu sete pontos.
Ao contrário de uma imagem às vezes veiculada pelo senso comum, o crescimento da renda da classe média foi fruto, principalmente, da oferta de trabalho formal. Isso configura um processo realmente inclusivo de crescimento, com determinantes bem conhecidos, tais como, políticas públicas adequadas, melhoria de condições econômicas, redução de mortalidade precoce, entre outros.
A “nova classe média” brasileira pode ser definida pelo seu nível de renda, ou seja, com ingresso entre R$ 1.115,00 e R$ 4.807,00 por mês. Este segmento passou de 44% da população em 2002 para a 55,05% em 2011, impulsionado pelo crescimento de emprego e renda, inflação baixa e crédito farto típicos deste período. Em números absolutos a classe C atingiu 100,5 milhões de brasileiros em 2011
As classes de renda familiar mensal imediatamente abaixo da classe C, ou seja, entre R$ 751,00 a R$ 1.200,00 ou mesmo abaixo disso, diminuíram sua participação no mesmo período de 96,2 milhões em 2003 para 63,5 milhões. Ao mesmo tempo, a renda dos 10% mais pobres subiu 69,08% e a dos 10% mais ricos cresceu 12,8%. Fator importante nessas mudanças foi o aumento nos anos de escolaridade, responsável por 65,3% do crescimento (de 7,95% ao ano) da renda per capita média dos 20% mais pobres no país. Admite-se ainda que um crescimento robusto do emprego formal, duplicado desde 2004, é o principal fator da pujança dessa nova classe média brasileira.
Quais seriam os fatores responsáveis por tal ascensão da classe média no Brasil? O principal deles foi o crescimento da renda, em média de 3,4% ao ano nos últimos dez anos. Além disso, houve também redução da dependência demográfica das famílias com diminuição do número de crianças e aumento de adultos. Devem ser consideradas, também, as transferências de renda pública às famílias, como, por exemplo, acontece com o Programa Bolsa Família e os Benefícios de Prestação Continuada (BPC), além da previdência rural. Outro fator é o acesso ao trabalho, acompanhado do ganho de produtividade medido, por exemplo, pela remuneração média dos trabalhadores ocupados.
Todavia, a sustentabilidade de tal expansão da classe média pode ser questionada. Como exemplo, na vizinha Argentina, entre 1990 e 2004, a classe média diminuiu de 46% para 34%. Três grupos de fatores estão em jogo na manutenção deste crescimento: o ritmo e composição do crescimento econômico; a educação, o empreendedorismo e as atitudes em relação ao trabalho; a capacidade articulação de interesses, de pressão sobre o sistema político e de projeção de uma visão própria de sociedade em termos de objetivos e valores. Do ponto de vista da economia três pontos afetariam a sustentabilidade do processo: a má distribuição de renda, a não realização de reformas estruturais, além de o fato da mobilidade recente ter dependido amplamente do consumo e não de novos padrões de organização ou de desempenho na produção.
O fato é que se pode afirmar que a expansão da classe média no Brasil, até agora, pelo menos, resulta muito mais de um sólido processo de inclusão produtiva que de aumentos na cobertura e na generosidade de benefícios assistenciais, o que de certa forma augura sua sustentabilidade futura.
- A existência de uma “nova classe média” não é unanimidade…
A possível ascensão de parte da população pobre à classe média na última década, como vem sendo defendido por alguns intelectuais e também técnicos do governo não represente consenso entre especialistas em desigualdade e estratificação social, sem chegar a negar a diminuição da desigualdade social, a redução da concentração da riqueza e a melhoria da renda dos mais pobres. A questão, segundo eles, é que a renda não é o único fator a ser levado em conta. Como diz Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), “não se define a classe média pela renda, mas pela posição na estrutura populacional”. Ainda segundo ele, o conjunto da população em ascensão ainda depende muito dos sistemas públicos de saúde, de previdência e de educação e não tem entre as suas despesas, por exemplo, o pagamento de escola particular para os filhos, a manutenção de previdência complementar, o acesso a planos de saúde privados ou o costume de fazer viagens ao exterior.
Em linha semelhante, o sociólogo Jessé Souza prefere chamar a população em ascensão econômica no Brasil de “nova classe trabalhadora” e critica o ponto de vista estritamente econômico que não considera serem “condições sociais, morais e culturais”, repassadas em família, mas que entretanto não permitem a apropriação de hábitos e comportamentos considerados como de classe média.
É criticada, também, a supervalorização de determinadas políticas sociais, como o Programa Bolsa Família, em detrimento da articulação mais acentuada da economia com o social, como ocorreu no governo Lula. Além disso, é destacada a retomada do papel planejador do Estado na coordenação do investimento público e privado, com políticas fiscais e monetárias menos restritivas, com incremento do crédito e do salário mínimo real, reduzindo assim o desemprego e o trabalho precário. Para a economista Sônia Rocha, ligada ao Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), foi efetivamente o mercado de trabalho – responsável por 75% da renda das famílias brasileiras – que exerceu o papel fundamental para redução da pobreza e da desigualdade.
O QUE QUER A CLASSE MÉDIA?
Ao contrário da população pobre da classe baixa, que tem de dedicar grande parte de sua atenção à formulação de estratégias de sobrevivência, a classe média dedica sua atenção à visualização do futuro, por meio do desenho de estratégias voltadas à preservação de seus ganhos ou à continuidade do processo de ascensão. Assim se explica, por exemplo, seu reconhecido desejo para o consumo de serviços privados de saúde e educação, com correspondente aumento da demanda pelos mesmos, aliás, um processo já em curso no Brasil. Como exemplo, a porcentagem de pessoas com planos de saúde privados na classe média já é 4,5 vezes maior que na classe baixa. Assim, no caso da saúde, pelo menos a classe média se assemelha muito mais à classe alta que à baixa.
Tomando os casos da saúde e da educação como paradigmáticos, verifica-se que os investimentos em planos de saúde privados são de 71% nas classes A/B, 40% na classe C, 15% na classe D e 10% na classe E; na educação privada estes investimentos são, respectivamente, 54%, 30%, 19% e 12 %.
Em relação ao consumo, como um todo, deve ser destacada a relativa vulnerabilidade da classe C em função da instabilidade de seus rendimentos.
Em termos de capital social, valores e projetos de vida, as preocupações em relação às questões sociais e econômicas colocam a saúde em primeiro lugar, variando de 67% nas classes A/B a 54% na classe E, superando a inflação, o desemprego, a falta de moradia e a qualidade da educação. Pode-se inferir que a gravidade que a classe média atribui a essas questões não deriva, necessariamente, de suas próprias carências, mas da percepção de um quadro que aflige mais as classes menos favorecidas, particularmente no que se refere às questões morais e transgressões, tais como violência, corrupção e drogas.
Em relação à confiança nas instituições, 66% confiam na religião, 26% na televisão, 16% nos empresários e 8% nos partidos políticos. A participação em organizações é de apenas 57% das pessoas, sendo mais alta nas classes mais ricas. Na questão das atitudes políticas e postura frente à democracia, os brasileiros, em geral, apóiam o regime democrático, mas manifestam desconfiança em suas instituições como o Executivo, o Judiciário, o Legislativo, os partidos políticos e os serviços públicos de segurança e defesa.
Quanto ao quesito “o que se espera dos governos”, a classe média se posiciona pelo fim da corrupção, pela redução de desperdícios e pela transferência de novos recursos às políticas sociais, seguidos, mais longinquamente, pela proposta de criação de novos impostos.
- A Nova Classe Média e a Saúde
Seis de cada 10 brasileiros da classe média acreditam que sua vida melhorou em período recente. Na saúde, menos de 5% da população considera seu estado ruim, sendo que quanto maior a renda maior a percepção de que saúde está bem situada. Na classe média, especificamente, 81% acreditam que sua saúde vai melhorar no próximo ano, da mesma forma que manifestam expectativas na qualidade de sua vida financeira.
A cultura da prevenção não é muito difundida entre os brasileiros, muito menos entre os brasileiros de baixa renda. Verifica-se que as classes A e B buscam a medicina preventiva com muito mais freqüência que as demais classes.
As mulheres exercem papel fundamental na família na questão da saúde, pertencendo a ela o atributo de cuidadora das ações de saúde na família, constituindo, assim, um “agente de saúde da família”, por excelência, pois é ela quem faz os filhos e o marido irem ao médico. Além disso, as mulheres afirmam cuidar mais da própria saúde do que os homens.
Outros aspectos que chama atenção são: a informação ainda é uma barreira na prevenção e tratamento de doenças e apesar da preocupação com saúde e forma física, maioria das pessoas não pratica atividade física regularmente.
A classe média acredita firmemente que saúde e educação constituem, principalmente, atributos primordiais do Estado. Porém, como consumidora de serviços públicos a classe média não está satisfeita com a qualidade do serviço custeado com seus impostos. Coerentemente, acredita no voto como ferramenta de poder sobre o Estado, o que se confirma pela afirmativa “o meu voto pode melhorar a política brasileira”, presente em quase 70% das respostas. A afirmativa “prefiro mais uma ditadura competente que uma democracia incompetente” representa praticamente a metade das respostas. O resultado disso é a exigência de Estado cada dia mais eficiente, a garantir a qualidade na prestação dos serviços públicos e a própria manutenção da democracia brasileira.
A avaliação do sistema de saúde pelos brasileiros mostra que a categoria “péssima” obedece a gradiente no qual tal avaliação é mais alta na classe alta, seguida pelas classes média e baixa, respectivamente. Em relação ao trabalho dos hospitais públicos, dominam como fatores negativos o tempo de espera e a falta de médicos ou o não cumprimento de horários pelos mesmos. Quando os hospitais públicos são comparados aos privados, contudo, tal quadro se altera significativamente, mostrando, estes últimos desempenho bem melhor quanto tais aspectos.
O uso de planos de saúde é naturalmente maior na classe alta, seguida de longe pela média e baixa, com a proporção de planos empresariais dominando nos segmentos mais baixos, ao contrário da classe alta, que tem planos principalmente individuais.
É generalizada a crença de que a privatização da saúde é algo necessário, mas com diferenças entre classes, sendo predominante na baixa e na média. O mesmo ocorre quando está em questão a possível “injustiça” do acesso diferenciado, mediante contribuição igualitária, daqueles que utilizam muito os serviços públicos e os que quase não os utilizam.
Algumas visões da sociedade sobre questões ligadas ao campo da saúde podem ser destacadas: (a) a prevenção é considerada importante, sendo mais valorizada entre os membros das classes baixa e média; (b) sobre as vantagens do parto normal sobre o cirúrgico, sua valorização é equilibrada nas três classes; (c) o uso de tabaco é mais expressivo na classe baixa, seguida da média e da alta; (d) a prática de esportes tem distribuição inversa, sendo mais freqüente na classe alta; (e) a perda de dias de trabalho por doença em período recente é mais expressiva na classe alta, seguida da média e da baixa.
É certo que o emprego está puxando o crescimento econômico e a geração de renda no país. Apesar de que a maior parte da classe média ainda não possua plano privado de saúde, ela já representa 51% da população com plano de saúde no Brasil. Alguns dados de um panorama em mudança se destacam: em geral, quanto menor a renda, mais recente foi a contratação de plano de saúde; em uma década as famílias brasileiras tiveram um aumento de 54% nos gastos com saúde; a proporção entre o gasto com remédios e serviços se inverteu no mesmo período.
Sabe-se que atualmente aproximadamente 25% dos brasileiros têm plano de saúde. Destes, que somam quase 50 milhões de pessoas, cerca de 21 milhões ainda usaram o SUS ao menos uma vez após adquirir o plano. Além disso, 19% (9,3 milhões de indivíduos) precisaram de atendimento médico nos últimos quinze dias, sendo 16% no setor público e 84% no privado.
Assim, em síntese, alguns desafios estão colocados no cenário da saúde na perspectivas da nova classe média brasileira. Entre outros, podem ser citados: o aumento de adesão aos planos privados de saúde influenciam os serviços públicos e trazem novos desafios de regulação do setor; o fortalecimento do cidadão através do aumento da renda e da escolaridade impacta os serviços públicos de saúde exigindo um novo padrão de atendimento; os órgãos gestores de saúde devem desenvolver políticas públicas que interfiram nos hábitos saudáveis e na prevenção e promoção da saúde.
- Para onde vai, afinal, a classe média?
No lado argumentativo mais alinhado com a defesa do SUS e recusa da expansão descontrolada da saúde suplementar, aponta-se no atual debate a tendência a uma simplificação da qual se deve fugir, aquela que diz “se cresce a nova classe média então é fatal que haja o crescimento da privatização na saúde”. Isso, longe da possibilidade de dar solução real os problemas atuais do sistema de saúde, com a suposta migração para os planos privados de saúde dos segmentos médios antes excluídos, tornará o SUS apenas um sistema pobre para gente pobre. Um paradoxo, então, se estabeleceria: o que é bom para o Brasil seria nefasto para o SUS? Ou seria exatamente o contrário disso?
Aponta-se, dentro de tal linha de pensamento, que não resta mais dúvida nos vários estudos nacionais e estrangeiros realizados sobre o tema da privatização da saúde, que os atributos individuais e os determinantes sociais e econômicos estão comprovadamente correlacionados com o estado de saúde das pessoas, além de também interferirem nas relações entre médicos e seus pacientes. Mas é bom lembrar, como síntese explicativa, que não são exatamente os indivíduos, mas sim as instituições (e em seu contexto a legislação vigente) que determinam a configuração real dos sistemas de saúde. Desde o final do século XIX se sabe da existência de gradiente socioeconômico que se estende de cima para baixo das categorias sociais e não apenas de um limiar que separa ricos de pobres em relação ao processo saúde-doença. Assim, moradores mais pobres, vivendo em áreas degradadas são sempre mais propensos a um pior status de saúde do que segmentos populacionais igualmente despossuídos vivendo em regiões mais abastadas.
Na outra linha argumentativa, apontam-se os dados atuais de que a saúde suplementar já oferece cobertura para quase 50 milhões de brasileiros, gerando um novo padrão de consumo de serviços de saúde no país, com impacto positivo potencial sobre a saúde da população beneficiaria. Como pano de fundo, a constatação de que o Brasil passa por profundas mudanças sociais, movidas por questões especificamente demográficas, tais como menor fecundidade e maior longevidade, que elevam a proporção de idosos na população, além de políticas e econômicas. Tem-se, assim, como resultados, o progressivo esvaziamento das classes mais baixas e sua migração para o segmento médio, tendência cuja continuidade dependerá de muitos fatores, sem impedimento que as mudanças demográficas citadas persistirão.
Assim, os milhões de brasileiros assim incorporados aos mercados consumidores, com destaque para os serviços e produtos de saúde, deverão exercitar forte pressão sobre a infraestrutura de saúde, levando a uma expansão de sua capacidade, já se demonstrando que existe disposição para investimentos nesse setor. Cabe, assim, ao governo, desamarrar os entraves burocráticos para que iniciativas desse tipo se consolidem em curto espaço de tempo. A classe média vai para o consumo, inclusive na saúde, alertam os defensores de tal posição.
Os defensores da primeira corrente apontam questões ligadas à dinâmica das classes sociais, classes de renda e a prática médica, que variam de acordo com o status socioeconômico dos pacientes, com especial destaque para as conhecidas lacunas de comunicação e compreensão na relação entre médicos e pacientes, sabidamente mais intensas em relação aos segmentos de menor renda e escolaridade. Bom indicador relativo a tais discrepâncias seria a diferença acentuada da renda dos médicos quando comparada à renda dos trabalhadores em geral. O que está em jogo e deve ser respeitado é o direito constitucional à saúde, ponderam os opositores da posição acima.
Aponta-se, nos dois lados, um cenário que exigirá maior “empoderamento” do consumidor em relação a seu maior acesso à informação, suas aspirações, bem como de maior consciência de seus direitos e disposição para fazer valê-los.
Mas o setor que defende os planos de saúde é mais enfático em relação ao fortalecimento ou “empoderamento” dos consumidores, que deve também corresponder uma maior responsabilização dos indivíduos, para ponderar em que medida a sua ação afetaria a terceiros. Objetivamente, ao maior poder do novo consumidor deve ser adicionada maior responsabilidade, sobre suas ações com relação a sua própria saúde e sobre suas atitudes diante dos demais, por exemplo, atitudes favoráveis à sustentabilidade do sistema e à melhoria de hábitos de vida. O pressuposto assumido é de que consumidor que despreza ou ignora as manutenção de sua saúde causa danos não só a si próprio, mas a todos aqueles que coletivamente concorrem para a reparação e recuperação da saúde, dentro de um sistema de repartição de responsabilidades e recursos, no qual muitos contribuem para que aqueles que necessitem possam utilizar o beneficio proporcionado pela coletividade. Esta lógica mutualista permearia também o SUS, de forma ainda mais ampla do que nos sistemas privados.
SAÚDE COMO OBJETO DE CONSUMO E DE DIREITO
É lembrada a forte associação entre crescimento econômico e ampliação da saúde suplementar. Os defensores do sistema suplementar argumentam que o crescimento da renda das pessoas e das instituições viabiliza a satisfação daquilo que representa um desejo de todos: ter acesso ao plano de saúde, objeto que passa a ser incorporado no planejamento real e financeiro das famílias. Não e por outra razão que a taxa de crescimento do numero de beneficiários da saúde suplementar antecede e supera o crescimento do próprio PIB.
Quanto às críticas que o sistema de saúde suplementar costumeiramente recebe, argumentam seus defensores que a sociedade tem acesso a informações que não lhe são oferecidas de forma completa, reforçando-lhe a percepção de que a infraestrutura de atendimento da assistência medica neste campo (demoras nos atendimentos, tempos de espera nas emergências, dificuldades de conseguir leitos de internação, por exemplo) não acompanha o ritmo do crescimento do numero de beneficiários, admitindo-se que não faltam evidências empíricas que dão suporte a tal percepção.
Assim, os defensores da saúde suplementar argumentam que a ascensão de milhões de pessoas das classes mais baixas ao mercado consumidor de saúde, como vista atualmente, gera expansão da capacidade e de resposta, mas não na velocidade desejável. Entendem que tal fenômeno precisa ser percebido e entendido como permanente para que se tomem as devidas decisões de investir, dentro de um processo de maturação de investimentos que está longe de ser imediato, valendo isso tanto para o setor público como o privado. E que neste quesito o Estado tem papel fundamental, de flexibilizar a regulamentação de tal sub setor e financiar mudanças, por exemplo.
Não escapa à argumentação dos defensores da saúde suplementar, ainda, que as taxas per capita de utilização de procedimentos no público e no privado mostram contrastes considerável monta. Assim, os planos de saúde realizam 5,39 internações cirúrgicas para cada 100 beneficiários, os dependentes do SUS têm esta cifra em nada mais do que 2,87. A desigualdade é ainda maior na cirurgia bariátrica, nas ressonâncias magnéticas e nas tomografias computadorizadas, procedimentos em que os dados das filiadas da Fenasaude estão entre os mais expressivos do mundo.
A discussão dos atributos do consumidor é peça forte na argumentação dos defensores da saúde suplementar, enquanto a defesa do outro lado apela mais às noções de direito e de cidadania, nos termos da Constituição Federal. Disso resulta uma argumentação mais substanciosa, pelo menos em termos de volume, entre os que defendem a opção privatizadora.
Por conseqüência, são reclamadas novas opções de políticas e ações voltadas para a conscientização do consumidor, quer no SUS ou na Saúde Suplementar. Este novo consumidor, independentemente de ser idoso ou jovem, deve dedicar preocupação crescente com os hábitos de vida e com o impacto que suas escolhas provocam em si mesmo e nos demais membros da coletividade. Caberia, assim, aos gestores dos sistemas de saúde assumir a importante tarefa de informar cada vez melhor ao público de novos consumidores e chamá-los à reflexão sobre a adoção de hábitos mais saudáveis de vida e sobre as consequências dos mesmos tanto em termos individuais quanto sociais.
Assume-se, dessa forma, que a longevidade e a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar depende, em grande medida, de certas mudanças de comportamento que sejam fruto de maior responsabilização dos indivíduos e da melhoria da informação, com implicação, também, nos custos, para que todos fiquem cientes da tendência inexorável do crescimento dos mesmos.
Ainda no plano da responsabilidade individual, enfatiza-se que além da adesão a hábitos saudáveis, as pessoas devem ser mais previdentes em relação ao futuro. Assim, frente aos custos crescentes da assistência e tendo consciência que a renda cai na inatividade, o individuo poderia e deveria formar reservas voltadas para ajudar a custear sua saúde ou as mensalidades de seu plano na inatividade. Para isso, sugere-se que o Governo deveria permitir o desenvolvimento de produtos que acoplassem de alguma maneira a previdência e a saúde em planos a serem comercializados no futuro, o que poderia se converter em instrumento de maior responsabilização das pessoas para com o futuro de sua saúde e previdência. Com a vantagem adicional de permitir a formação de poupanças de longo prazo, que é algo de que o Brasil revela-se muito carente.
- Consumo, mas de que tipo?
É também consensual o fato de que o Brasil atravessa um período de inclusão acelerada de pessoas na chamada sociedade de consumo. Com o aumento do poder aquisitivo, fruto da estabilidade econômica e com crescimento das rendas e emprego, a fronteira de possibilidades de consumo dos brasileiros se ampliou de forma significativa. Bens e serviços antes inacessíveis mesmo à classe média passaram a compor a cesta de consumo habitual.
Argumenta-se que ao ascender socialmente as pessoas intensificam seu consumo, especialmente aquele referente a serviços e produtos de saúde, entre eles os planos e seguros. Destaca-se a atualização virtualmente instantânea de suas aspirações com aquelas mundiais, pelo acesso facilitado a tudo que se passa globalmente. As evidencias empíricas demonstram que, na medida em que as rendas das pessoas ou sociedades crescem, frações maiores dela são naturalmente destinadas aos serviços e produtos de saúde. Essa e uma realidade em todos os países do mundo e vem sendo observada durante décadas. Pode ser considerado totalmente natural que as pessoas desejem ter um melhor estado de saúde e invistam frações crescentes de sua renda a isso, na medida em que vão satisfazendo seus desejos de consumo por bens materiais, até porque uma boa saúde é condição para se desfrutar dos objetos e desejos de consumo. São novas tendências universais, que precisam ser percebidas e entendidas como permanentes, para motivar os respectivos investimentos, públicos e privados, que por sua vez demoram a maturar.
A autoavaliação do estado de saúde, hoje tão valorizada nas pesquisas de opinião, também esta relacionada ao nível de renda familiar, dentro de uma correlação direta: maior renda, melhor autoavaliação do estado de saúde. Isso aparece como produto da maior utilização e acesso aos serviços de saúde, bem como do maior grau de informação que as pessoas adquirem, tanto maior quanto maior for sua classe de renda.
O que significa, então, consumir um plano de saúde? As pesquisas de opinião indicam que ter plano de saúde constitui o segundo objeto de maior desejo da classe média, depois da casa própria. O plano de saúde passa a ser visto como uma das formas de acesso aos serviços de saúde, especialmente para os casos de doenças muito graves, com custos de tratamento que podem liquidar o patrimônio de uma família.
E assim, esse novo consumidor de planos de saúde será crescentemente mais idoso, em razão de sua maior longevidade, do sexo feminino, do setor de serviços e comércio (por seu desempenho econômico mais expressivo nos anos recentes). Mas acima de tudo, se mostrará com maior proteção legal e regulatória, além de mais bem informado e disposto a cobrar seus direitos. A contrapartida que dele se espera e uma maior responsabilidade com o uso dos recursos. Assim, a adoção de hábitos saudáveis e o uso responsável dos recursos médicos parecem ser os canais de comunicação e de compatibilidade entre o “empoderamento” crescente do consumidor e a sustentabilidade econômica do sistema.
Como aspecto negativo, constata-se que nem sempre as expectativas do consumidor correspondem estritamente ao previsto na regulamentação e nos contratos com os planos de saúde. O consumidor, afinal, deseja aquilo que obtém do acesso virtualmente instantâneo via internet, de informações geradas em todo o globo, ou seja, geralmente aspira às ultimas novidades tecnológicas anunciadas nos meios de comunicação, mesmo que nem sempre acompanhadas da necessária comprovação de eficácia e custo-efetividade. Tal tipo de aspiração, lamentavelmente, pode entrar em conflito com a renda disponível para custeá-la, sem impedir que isso deixe de afetar sua trajetória. Nada mais natural, enfim, que as pessoas desejem o acesso a cada nova tecnologia que promete reduzir sofrimento, encurtar tempos de recuperação e, no limite, prolongar e dar maior qualidade à vida. Compreensivelmente, para tanto os pacientes costumam não medir os custos, que na rida real são impactantes.
Isso, mais uma vez, vale tanto para o setor privado como para o público. A diferença é que no privado a distância entre quem paga e quem consome é mais curta (e mais visível) do que no público…
- Dinâmica e tendências do mercado de saúde suplementar no Brasil
Segundo dados da ANS tem havido um crescimento sustentado do número de beneficiários da saúde suplementar. Entre 2003 e 2011, esse crescimento varia entre 2,1% a 5,7% com um pico de 8,4% no ano de 2010, o que pode ser explicado pelo alto crescimento do PIB naquele ano. Tal crescimento obedeceu à seguinte ordem: cooperativas médicas, 43%; medicinas de grupo, 22,1%; filantrópicas, 16,6%. Além disso, entre 2000 e 2010 a taxa de crescimento da população, 12,3%, foi bem menor do que a do aumento do número de contratos de planos de saúde, 48%.
O total de beneficiários cadastrados na saúde suplementar era, em 2008, de 40,9 milhões de beneficiários, sendo 74,2% com planos novos e 25,8% com planos antigos. Em relação ao número de operadoras havia 1.867 operadoras. O exame da titularidade dos planos de assistência à saúde em relação aos contratos novos mostra que, no mesmo ano, os planos individuais e familiares representaram 22,7% e os planos coletivos, 77,3%.
A importância do mercado de saúde suplementar no complexo industrial da saúde pode ser medida pelo volume de seu faturamento que em 2008 foi de 60 bilhões de reais. Esse volume atingiu 85 bilhões de reais em 2011, volume que pela primeira vez supera os gastos federais com o SUS. A estrutura de gastos mostra gastos elevados em despesas administrativas, na média 17,43% (variação de 8,3% nas seguradoras a mais de 60% nas filantrópicas), sendo maior nas operadoras de pequeno porte do que nas grandes. Cabe ainda lembrar que o valor médio dos planos de saúde variou de R$ 73,00 nas medicinas de grupo e filantrópicas, R$ 104,00 nas cooperativas médicas e R$ 154,00 nas seguradoras.
A lei 9.656/98 inaugurou uma nova fase no mercado de assistência privada à saúde, ao instituir um marco regulatório que tem como uma de suas principais características a garantia da cobertura assistencial a todas as doenças relacionadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças da OMS.
Como movimento recente, a ascensão das classes C e D ao mercado de consumo vem forçando a oferta de planos de saúde com preços mais acessíveis. Isso está em sintonia com a percepção social das deficiências do SUS (dificuldades de acesso a consultas e exames, filas e tempos de espera longos). Assim, a publicidade de novos produtos das operadoras, com preços mais baixos, vem atraindo novos consumidores para a saúde suplementar. Disso decorre que em médio e longo prazo o movimento de incorporação crescente de novos consumidores pressionará um sistema que tem limites para o incremento constante da oferta, o que pode trazer problemas em contratos de longa duração, prevendo-se, por exemplo, que problemas de acesso aos serviços do SUS podem se repetir na saúde suplementar, especialmente para os planos destinados às classes C e D.
A “financeirização” do setor dos planos de saúde é outro fenômeno preocupante, ao potencializar as distorções e a inversão de cifras entre o gasto público e o privado no setor saúde. A Resolução 195 de 2009, por exemplo, incentiva a criação de planos privados coletivos de assistência à saúde por adesão, destinado a pessoas que mantenham vínculo com entes jurídicos de caráter profissional, classista ou setorial. Bom exemplo de tal processo é a formação da empresa Qualicorp, inserida em tal segmento, que vem obtendo taxas de crescimento e lucratividade expressivas nos últimos anos
Outro aspecto preocupante é o desenvolvimento de uma verdadeira “filantropia lucrativa estatal”, no setor hospitalar e de alta complexidade, principalmente no âmbito dos grandes centros urbanos do país. Cabe destacar também uma visível estratificação institucionalizada entre os diversos componentes da saúde suplementar, com liderança do setor referido acima, seguido das seguradoras, das autogestões, das medicinas de grupo, cooperativas médicas e filantropias tradicionais. Em tal ranking, o SUS ocupa um modesto último lugar, com diferença de valores de quase 20 vezes em relação ao primeiro da lista. Nessa situação, torna-se forçoso fazer comparações com a pátria-mãe dos seguros de saúde, os EUA, onde o gasto per capita com saúde é da ordem de $8.680,00. Mas neste país, ao contrário do Brasil, os gastos públicos com subsistemas sociais (Medicare e Medicaid) são superiores àqueles dos clientes de planos privados.
Estudos têm demonstrado diferenças de custo para as pessoas, com potencial prejuízo para a classe média. Serão mais agravados financeiramente, por exemplo, os que detêm mais renda, escolaridade e idade, e também mais os homens do que das mulheres. Um desses estudos identificou que serão afetadas as gerações mais jovens e mais propensas ao desemprego e ao trabalho não especializado. O custo sobe também para determinadas condições, como idosos fumantes, com hábito de beber e é naturalmente mais oneroso quando se trata do acesso a tratamentos privados e no uso por indivíduos com maior nível educacional e renda que buscam manterem-se saudáveis.
Fator agravante é que as empresas de planos de saúde costumam não inspirar confiança e respeitabilidade à sua clientela, devido aos seus elevados custos administrativos e de marketing, bem como a prática freqüente de negação de cobertura a seus associados.
Algumas estratégias de inovação vêm permeando este mercado, por exemplo, no que tange à comercialização e características das coberturas dos planos de menor preço, considerando que um reconhecido elemento estruturante do mercado brasileiro de planos e seguros de saúde é a estratificação da demanda e da oferta segundo parâmetros da hierarquia sócio-ocupacional. Afirma-se, assim, uma estratégia de diferenciação dos planos, decalcada nos níveis executivo, gerencial e operacional das empresas empregadoras, baseando-se no desenho de planos e seguros diferenciados quanto à amplitude da liberdade de escolha, acomodação hospitalar e preços.
A associação entre planos de menor preço com prestadores de menor porte e complexidade é outra das estratégias em curso. As empresas de saúde suplementar credenciam um conjunto numericamente importante de prestadores de serviços de saúde (médicos, unidades de diagnóstico e terapia e hospitais que estão simultaneamente vinculados às redes pública e privada). Neste campo, as empresas e os produtos de menor preço tendem a constituir suas redes assistenciais com prestadores de menor porte quase sempre com uma complexidade assistencial aquém das necessidades de saúde.
Embora essas condições estruturais da rede hospitalar não possam ser automaticamente transpostas para as unidades de diagnóstico e terapia, nem tampouco para os profissionais de saúde, os planos de saúde de menor preço buscariam se viabilizar por meio de incentivos, bem como pela revitalização de empreendimentos de saúde modestos em termos de densidade tecnológica e porte, cujos preços de remuneração e condições de acesso e utilização de serviços são compatíveis com a expansão do mercado para os segmentos C e D.
Surge, assim, a estratégia que vem merecendo destaque e preocupações nos dias atuais, considerando a possível existência de uma mobilização do próprio Governo Federal neste sentido, traduzida pela ampliação da clientela dos planos de saúde entre a população de baixa renda. Seu pressuposto é o de que o setor de saúde suplementar tem no Brasil muito espaço para crescer, estimando-se que seria possível chegar a 100 milhões de usuários, o que significaria alcançar uma cobertura de 50% da população.
Iniciativas voltadas para a coparticipação também são cogitadas, o que representaria, supostamente, algo mais eficiente e justo, pois desestimularia, mediante cobrança de taxas, as idas desnecessárias aos consultórios médicos. Em tal sistema, para cada real pago pelo cliente, o plano economiza três, o que significa que, ao se aumentar a produtividade, é possível melhorar o atendimento sem aumentar custos.
- O Papel do Estado
O Estado não é, definitivamente, um ator alheio e externo ao fenômeno da exclusão e da desigualdade e formação de gradiente socioeconômico a separa as classes sociais. Da mesma forma, não existira qualquer neutralidade sua face ao crescimento constatado na oferta de planos de saúde a segmentos cada vez maiores da população.
No Brasil, por exemplo, o Estado teve fundamental importância na formação dos hospitais, das escolas médicas, do complexo industrial sanitário e de tudo ais que se relaciona com a saúde da população, com todas as conseqüências que isso tem na distribuição pouco igualitária de tais benefícios à população mais pobre. Assim, a história mostra que aqui, ao contrário do que ocorreu em países europeus e nos EUA, a estratificação de classes se transpôs, sem sofrer adaptações, à organização do sistema de saúde, por exemplo, na imposição de critérios excludentes para o exercício da medicina, na escolha de membros da elite política e empresarial para ocupar cargos do setor etc.
Soma-se a isso a intervenção da Previdência Social estatal, ao longo dos anos 1970, que internalizou nas filantropias da saúde, pelo menos, as diferenças entre classes sociais. No entanto, foram justamente os hospitais filantrópicos e beneficentes que passaram a ocupar papel proeminente na assistência à saúde, pelo fato de serem os únicos estabelecimentos com internação em muitas cidades e também pelos incentivos decorrentes da isenção de tributos, ou mesmo pelos repasses diretos de recursos públicos. O Estado pode e deve ser parte da solução, mas historicamente tem sido também parte da criação do problema.
No sistema brasileiro de saúde, a gestão é, pelo menos nominalmente, estatal. O SUS é, de fato, uma máquina extremamente complexa, configurada como sistema universal de saúde formalizado em legislação. Ele, sem dúvida, tem avançado a passos largos na extensão do acesso a população brasileira e disso vários exemplos podem ser oferecidos. Seus sucessos, entretanto, embora representem rupturas com o padrão pretérito de discriminação, não foram suficientes para reverter o padrão estratificado e segmentado do sistema de saúde anterior ao SUS.
Mas mesmo com todos os sucessos, após 25 anos da Constituição de 1988, constata-se ainda um quadro de “implementação mitigada” do SUS, seja por seu financiamento insuficiente, pela inadequação das instituições frente a novos modelos de organização, pelo profundo descrédito das autoridades políticas no fortalecimento da saúde pública como vetor de desenvolvimento social. A onda neoliberal, ao varrer as políticas sociais universalizantes da agenda pública internacional, não poupou o SUS. Durante os anos 1990, o ideário que concedeu às políticas de transferência de renda, o status de única política social, concedeu à saúde pública o papel de mero coadjuvante no alívio da miséria.
O resultado de tudo isso é previsível. Nos últimos 20 anos a extraordinária expansão da oferta e da demanda por planos privados de saúde, foi claramente apoiada por políticas públicas, como a concessão de créditos e empréstimos por bancos públicos e pelo BNDES para hospitais particulares, o que acentuou a fragmentação da rede assistencial e se contrapôs objetivamente às tentativas de universalização e coordenação racional da rede de serviços existente.
Mesmo nos oito anos de governo Lula, os planos privados foram aquinhoados visivelmente pelo Estado brasileiro, por exemplo, com a introdução de novos critérios para a concessão do certificado de filantropia; com a criação de fontes extras de recursos (a “Timemania”, por exemplo, que destina parte de sua arrecadação a entidades hospitalares sem fins econômicos); com o parcelamento de débitos tributários; com a redução da alíquota da COFINS, de 7,6% para 3% para os estabelecimentos privados de saúde; com a manutenção da dedução de impostos e contribuições sociais para profissionais de cooperativas e associações médicas e ainda com a alteração de artigo da Lei 8.122 de 1990 (Regime Jurídico Único) abrindo a possibilidade de assistência ao servidor mediante auxílio ou ressarcimento de gastos com planos ou seguros privados de assistência à saúde. Em toda a década passada, além do mais, chama atenção o crescimento diferenciado dos gastos públicos em saúde, em termos populacionais gerais e com os segmentos beneficiados com planos contratados de saúde, mantendo os primeiros sempre um patamar inferior aos segundos.
PARA ONDE APONTAM OS DEBATES?
- José Gomes Temporão
Para entender as contradições que assolam o SUS é preciso voltar às suas origens. O sistema de saúde brasileiro foi concebido como instrumento político de justiça social e de implantação de um novo padrão de desenvolvimento para o país, conforme a proposta original da Reforma Sanitária. O que se desejava, então, era que a redução das desigualdades via incremento da mobilidade social, que não aconteceria apenas com ganhos na renda, mas sim com políticas públicas fortes, que ampliassem o capital social. Mas apesar dessas crenças generosas o SUS surge como algo que, embora conquistado no contexto da redemocratização, ainda estava longe de expressar uma consciência sanitária coletiva.
Já na origem do SUS um exemplo cabal da distância do alcance de uma consciência coletiva se mostra, por exemplo, pela disposição dos setores mais organizados do operariado, ao colocarem, como pontos importantes de suas pautas perante os patrões, o acesso a uma assistência diferenciada, a ser oferecida pelo setor privado. Isso gradualmente ganha espaço junto à classe média e ao funcionalismo público. Já no nascedouro do SUS, portanto, tal como um “ovo de serpente”, já se encontram plantadas as bases de um modelo concorrente, que pouco a pouco busca e impõe sua hegemonia.
Como os novos trabalhadores ou nova classe média, como se queira, nos dias de hoje, percebem o SUS? Como uma conquista? Não é bem assim; eles não vêem o SUS dessa forma e nem se reconhecem nele. Antes o percebem como algo que o governo lhes provê, que é mais “do governo” do que deles. Ou pior: que o SUS é precário e na prática voltado apenas para os mais pobres, sendo que estes novos segmentos nem de longe se consideram “os mais pobres”. Eles desejam, assim, simplesmente a conquista de um acesso diferenciado, encontrável no Mercado, da mesma forma que já fazem os mais ricos, ou mesmo os da classe média, além dos funcionários públicos e dos próprios governantes. Seu impulso material e simbólico se dirige assim, avidamente, para o Mercado.
Mas simplesmente “se livrar” do SUS seria o caminho correto? Seria uma opção a trazer mais segurança para essas famílias, em termos de acesso à atenção à saúde? Ao contrário. É bem sabido que se trata de opção de alto risco, por transferir para o Mercado a assistência à saúde, ainda mais dentro de um panorama de fragilidade regulatória como o que se vê no Brasil. Isso, sem dúvida, acarretaria ampliação da desigualdade, com comprometimento da renda familiar.
Em tal contexto, apesar de se saber amplamente que o SUS vem obtendo sucessos imensos, por exemplo, em programas como vacinação, combate a endemias, redução da mortalidade infantil, entre outros, isso não tem sido o bastante em termos de convencimento desses setores, que desejam algo mais, dentro de uma dinâmica capitalista que lhe é imposta de fora.
Por que o SUS se mostra insuficiente? Por várias razões, entre elas pela relativa inexistência de uma base econômica e financeira adequada, pelas falhas do modelo de atenção, bem como por processos da luta política ainda bastante frágeis. Sem dúvida, é ilusória a ideia de que o Mercado consiga prover com qualidade e custos suportáveis as necessidades dessas famílias. Aliás, o SUS tem funcionado também como uma válvula de escape para a saúde suplementar, seja em relação aos procedimentos de alto custo, medicamentos para doenças crônicas, atendimentos de urgência e emergência etc. Tudo isso dentro de um panorama de gastos não ressarcidos, com crescentes subsídios através de renúncias fiscais.
Cabe a questão: esse complexo processo passaria pela compreensão da consciência sanitária desse novo ator político, inclusive sobre a melhor forma de se prover e garantir a saúde? Há pelo menos três categorias político ideológicas a serem consideradas: o direito à saúde, as necessidades das pessoas, além da construção, a partir de estratégias mercadológicas da indústria, do “desejo” na saúde. Daí se pode tentar inferir o por quê de o SUS não se constituir como um efetivo objeto de desejo para aqueles que já ascenderam na escala social. Em parte, pelo menos, a resposta está no sentimento geral de que o sistema público de saúde é pobre, problemático, mal administrado e gastador.
Haveria uma visão alternativa a essa, facultada, por exemplo, pela implantação, nos anos, da Estratégia de Saúde da Família, com atuação concentrada nas regiões mais pobres e com baixa capacidade de atrair profissionais e serviços de saúde. Isso, entretanto, não obteve contra partida nas cidades médias e regiões metropolitanas, nas quais houve crescimento dos modelos centrados na oferta privada, o que fortaleceu uma cultura médica e tecnológica específica, tornada hegemônica. Assim, para o SUS se recolocar como opção real, lhe falta uma profunda reconversão que fomente uma nova sustentabilidade econômica, organizacional, política, tecnológica, cultural, clínica, além de relativa ao trabalho em saúde.
Fugindo, todavia, de um discurso meramente pessimista, alguns fatos positivos podem ser apontados na realidade brasileira de saúde. Exemplos disso podem ser buscados na realidade, como é o caso do enfoque nas micropolíticas, tecnologias leves e relacionais, vínculos, clínica ampliada, conforme discussão proposta por Gastão Wagner, da Unicamp. São positivas, também, a recente proposição do estímulo a parcerias entre laboratórios públicos e empresas privadas em termos de incremento de capacidade produtiva de tecnologias estratégicas; o estabelecimento do programa Farmácia Popular, que traz importante redução nos gastos das famílias mais pobres com medicamentos; as várias experiências voltadas para a introdução de novos modelos de gestão, por exemplo, com a formação de Fundações Estatais de Direito Privado.
Concluindo: para onde vai o SUS? Com certeza, não o será apenas pelos caminhos guiados pela racionalidade dos sanitaristas ou dos gestores, bem como da militância. Talvez o seja mediante um novo modelo, que atenda as expectativas de acesso, qualidade e conforto dos brasileiros. Como pano de fundo para tudo isso, a questão de como promover e consolidar a ampliação da consciência política dos cidadãos brasileiros, em termos da importância, para as futuras gerações, de fortalecimento do SUS.
- Ana Maria Malik
A debatedora faz, preliminarmente, um jogo de palavras a respeito da possível “ida ao paraíso” da classe média, diante do horizonte de consumismo que se abre para ela no Brasil, nos dias atuais. Questiona, ainda, a real situação deste segmento social, apontando que sua demarcação não deveria depender apenas da renda como critério único ou mais relevante, apontando, entre outros fatores, a capacidade de crítica e a detenção de conhecimentos por parte das pessoas. Considera que o panorama presente em relação a tal questão ainda é o de uma “análise apressada”, na qual o critério de capacidade de consumo tem ocupado o primeiro plano. O grau de instrução é aspecto que deveria ser considerado na categorização em foco, já que desdobramento previsível disso seria o das pessoas tornarem-se presas fáceis para contratos com as operadoras de plano de saúde. Assim, a fonte de informação para essas pessoas não seria, por exemplo, o que dizem os órgãos de defesa do consumidor, mas sim a mídia, além daqueles que pensam de forma semelhante e têm aspirações equivalentes.
Não há dúvida que existem barreiras entre os produtos e serviços a que todos podem ter direito e aqueles disponíveis só para uma pequena parcela da população. No imaginário popular o setor privado é reputado como sempre superior ao SUS, deixando de lado o fato concreto de que em ambos há filas e carências diversas, Mas o fato real é que, na classe ascendente, o plano de saúde e o acesso a serviços privados é um grande sonho de consumo. Quanto a isso é sabido que as avaliações são sempre bastante subjetivas e impressionistas. Em termos de serviços de saúde as pessoas não falam apenas de critérios técnicos, mas, por exemplo, de aparência dos ambientes em que são atendidas ou da simpatia e do interesse de quem os acolhe.
Voltando à imagem do “paraíso”, os formuladores da Reforma Sanitária devem ter imaginado que tal instância se faria presente no momento em que todos os brasileiros quisessem utilizar o SUS, independente de seu acesso ao setor privado. Daí deriva um paradoxo, dado pelo fato de que muitos dos trabalhadores do SUS e membros de movimento sindical, que até defendem o sistema, reivindicarem um plano de saúde suplementar para seu uso de e de suas famílias.
A expressão, cunhada nos ano 90, por Favaret & Oliveira, a chamada universalização excludente, ainda é pertinente à realidade atual, dada a heterogeneidade do país, em termos físicos, geográficos e de distribuição da riqueza. Isso remete ao conceito da equidade em saúde, que assume diferentes significados, tais como: igualdade de gasto; igualdade de insumos (recursos humanos, equipamentos etc.); igualdade de acesso; igualdade na utilização. O fato é que uma igualdade completa certamente não pode existir. Assim, as diferenças derivam não só da utilização de recursos (ou da respectiva disponibilidade), mas também das necessidades das pessoas.
Crença arraigada é a de que o atendimento às necessidades básicas pelas políticas sociais, como saúde e educação, melhoram muito mais a vida dos mais pobres do que dos mais ricos. Mas seria possível reduzir a desigualdade em circunstâncias diferentes, com crescimento econômico de preferência, mas ocorrendo também mediante empobrecimento da população.
A “questão médica” existe e deve ser lembrada, dado o fato de que muitas das queixas e da insatisfação em relação ao acesso aos serviços de saúde dizem respeito a esta categoria profissional. De maneira geral as pessoas buscam obter assistência médica, não se satisfazendo com o atendimento multiprofissional. Assim, a ausência ou carência de médicos nos serviços é sempre percebida como problema do serviço. O fato de que número de postos de trabalho para médicos no setor público seja maior que no setor privado não significaria que o número de médicos seja suficiente. Mas é bom lembrar que os profissionais de saúde em geral, não só os médicos, sempre que podem militam no SUS, um potente empregador, independente vertente pública ou pseudo-pública que este assuma. Questiona-se: será que assim estes profissionais se apropriam mais da riqueza que os demais trabalhadores? A equação é, de fato, complexa, envolvendo competências, rendimentos, vínculos com a população, interesses etc., sem considerar as características individuais de “pessoas que cuidam de pessoas”. O assalariamento dos médicos, por exemplo, pelos apregoados planos de carreira no âmbito do SUS, como tudo, terá sempre vantagens e desvantagens.
Questão estratégica também é a diferença entre o que se deseja que o Estado deve fazer e aquilo pelo que a população está disposta a pagar. O papel do Estado acarreta a necessidade de recolher impostos, em relação aos quais a classe média (seja ela nova ou antiga) é pouco entusiasta. Isso importa menos às classes mais baixas, que nem sempre percebem os valores com os quais contribui na aquisição de cada produto ou serviço, mas da classe média para cima tem impacto mais forte, por comprometer mais de forma mais consciente a renda das pessoas.
Outro tópico abordado foi relativo à postura das diversas classes sociais face à saúde. Sendo elas, de fato, diferentes, possuem também percepções e aspirações distintas relativas tal campo. Corroborando isso, pesquisas dos últimos anos têm demonstrado que a percepção do brasileiro médio a respeito da sua vida é que ela melhorou, com a saúde em lugar de destaque. O outro lado da moeda é que, para quem se considera bem de saúde, a prevenção e os cuidados com os hábitos de vida se tornam menos prioritários. Isso acarretaria incentivos para a utilização de serviços de ponto atendimento e não de atenção básica, modulando, assim, a demanda real pelos serviços de saúde.
Constata-se, ainda, um forte descompasso entre os discursos relativos às necessidades dos técnicos, dos tomadores de decisão política e dos usuários do sistema de saúde. Assim, o que os técnicos consideram adequado não necessariamente é compreendido ou aceito como tal pelos cidadãos, o que leva a um sistema de saúde diferente daquele preconizado pelas normas ou a diferentes interpretações de quais seriam as políticas de saúde realmente desejadas. No caso dos políticos, a interpretação das demandas populares se prestaria a interpretações ainda mais variadas e mesmo divergentes. O diálogo possível dentro do setor saúde fica, assim, comprometido. O resultado mais amplo disso tudo é que não só os sistemas de saúde não obedecem às expectativas dos que os desenham, mas também os novos usuários não seguem os caminhos que foram traçados para eles. A distinção entre o útil e o supérfluo não tem a mesma definição para todos os observadores. Da mesma forma, mesmo que se queira ter o SUS público como sistema para todos os cidadãos, muitos continuarão na sua busca legítima de preferir o privado. Não pode ser deixado de lado, em tal contexto, o fato conhecido de que os militantes mais aguerridos do sistema público, quando não dispõem de planos privados, recorrem a entradas paralelas no “SUS privado”, tão condenado no discurso militante. Constata-se que uma crítica realmente bem informada não acontece, já que as informações são assimétricas; e elas devem ser ao menos partilhadas entre as partes, com boa vontade de ouvir, discutir e compreender.
A saúde pode ser considerada como um mero bem consumo? A negação disso vai de encontro a evidências relativas aos comportamentos e aspirações dos cidadãos. O momento atual è de migração da classe E (na qual emprego formal ou informal, renda e acesso à saúde são bastante limitados), para uma classe ligeiramente acima, mas na qual se pode contar, embora precariamente com previdência, assistência médica (até mesmo privada), emprego e salário regular. Como tem sido mais lenta a mudança dos indicadores econômicos, como se verifica concretamente em 2013, tal situação pode não ser permanente, mas de alguma maneira interfere nos hábitos e desejos de consumo de quem já experimentou novidades.
O fato é que não pode negar – e muitas pesquisas confirmam isso – que entre diversos bens de consumo e serviços, os planos de saúde são o segundo mais desejado pela classe média, atrás apenas da casa própria. Por isso, há que se admitir, vender planos de saúde é relativamente fácil, embora com tantos novos clientes uma rede efetiva de atendimento ainda precise ser construída. O fato é que as análises de necessidades podem estar equivocadas, pois seu foco se dá na baixa utilização de serviços do SUS. O atual momento é de mais disponibilidade de serviços e nele pode-se dizer que os usuários acorrem mais intensamente aos mesmos, porém sem que estes estejam preparados para tanto. A conclusão é “não basta vender, é necessário entregar”.
Em relação aos custos elevados da saúde suplementar, considerando ser o aumento dos custos “inexorável”, cumpre ampliar o diálogo entre os diferentes atores sociais no sentido, inclusive, de se abrir frentes de cooperação entre o público e o privado. Mas isso implicaria em superar eventuais polêmicas semânticas (suplementar versus complementar, por exemplo), em busca de conjugação do que ambos os setores podem prover, evitando a duplicação de esforços e recursos, além da geração de claros de assistência.
Não há dúvida que o SUS atual é bem diferente daquele dos primeiros anos, na década de 90. Neste aspecto, apesar do avanço das políticas sociais no Brasil, as iniciativas governamentais de transferência de renda continuam não sendo adequadas à saúde, pois não superam outros fatores envolvidos na questão. Exemplos vêm das observações internacionais feitas em países de renda média e alta, que atestam que os impactos sobre mortalidade e evolução de doenças cardíacas e oncológicas, não podem ser atribuídos exclusivamente aos avanços dos sistemas de saúde e que apenas o acesso ampliado aos serviços de saúde não garante assistência de qualidade. Em outras palavras, acolher cidadãos é algo distinto de lhes oferecer diagnósticos e tratamentos corretos e oportunos. Ambas as situações são importantes, mas sua influência na doença e na saúde é diferente.
Finalizando, o sistema de saúde no Brasil continua com o mesmo desenho do tempo da alta prevalência enfermidades infecto contagiosas. Problemas como os de saúde mental, que deveriam ser tratados fora dos hospitais; da atenção voltada a reabilitação; dos pacientes em situação de cuidados de longa permanência, entre outros, ainda não são claramente percebidos pelo SUS, seja ele voltado à classe social que for. Falar em insuficiência do SUS, assim, não deixa de ser um diagnóstico real, mas ele precisa ser relativizado. Mudanças, neste caso, se impõem, mas afetem elas a população sob cuidado, a orientação dos serviços, a disponibilidade de unidades e de profissionais, não podem ser considerada boas em si, só por representarem mudanças. É preciso começar apensar seriamente também em avaliação de resultados, de impacto, de satisfação, de perfil de usuários, aspectos imprescindíveis para se conhecer o que ocorre em sua totalidade, para uma correta tomada de decisões. Só assim será abreviada a distância que nos separa do Paraíso…
- Debates: as manifestações da platéia
Admite-se que o encontro presente reúne uma “inteligência sanitária” que precisa ser apoiada e fortalecida mais ainda, com destaque para a importância do ator político chamado CONASS na história do SUS e no momento atual. Deve-se procurar uma agenda mais realista, menos ideológica, mais estratégica, permanente e abrangente para a discussão aqui proposta. A questão de para onde vai, de fato, a assistência à saúde na classe média, dependeria de formulação política e social mais ampla e abrangente, não dos desejos individuais ou mesmo coletivos. Da mesma forma o debate não pode ser restringindo apenas a dar mais para os mais pobres, mas igualmente para todos. Alerta-se que o aumento da renda e a melhoria das condições sociais não deverão empurrar, necessariamente, o sistema de saúde para mais privatização e nem para o consumismo em saúde.
Conclama-se que a razão ideológica deva ser pesada no embate com as evidências verdadeiramente científicas nos argumentos pró e contra a saúde suplementar ou o sistema público de saúde, bem como as relações existentes entre eles. Este é um dilema a ser enfrentado não só no presente debate, como em quaisquer outras circunstâncias.
O sucesso dos planos de saúde possuiria razão direta com a ineficiência do SUS? Melhorar o desempenho do sistema é a grande questão em pauta. Neste aspecto, uma pergunta que não se cala é: o que se pode oferecer, no SUS, para cativar a nova classe média, além de parcelas maiores da sociedade brasileira? Para tanto, não se pode deixar de lado a questão da comunicação com a sociedade, como o CONASS já vem fazendo, não só com o presente debate como em outras iniciativas.
Assim fica claro que a sociedade deveria ser mobilizada na defesa do SUS como um patrimônio nacional, o que certamente não ocorre na prática. Cabe a questão: para além do consumo puro e simples, como promover tal adesão? Saúde é algo que não pode ser reduzida a mero bem de consumo.
Quanto ao que se espera do SUS, caberia ao sistema ter mais clareza sobre quais segmentos populacionais deseja atingir de fato e com que categoria de serviços. Assim, é importante uma reflexão crítica permanente sobre a questão da qualidade do atendimento no sistema público, que sabidamente deixa a desejar. Por conseqüência, é necessário definir, também, o que pode e deve ser feito pela saúde suplementar, além do Estado, reservando ao cidadão o direito de fazer suas escolhas, admitindo-se, além disso, o que o momento histórico vivido pelo País é inédito e especial, com crescimento econômico associado à redução de desigualdades, constituindo assim a famosa “divisão do bolo”, que parece finalmente acontecer.
Lamenta-se que o “núcleo duro” do governo, formado pelas áreas de economia e planejamento, tem sido, ao longo das últimas gestões federais, pelo menos, ostensivamente hostil ao SUS. Assim, questão que não pode ser deixada de lado na presente discussão é a do (sub) financiamento do SUS, lembrando-se que 90% dos recursos públicos no Brasil vão hoje para pagamento de juros, salários e manutenção da máquina, sobrando efetivamente pouco pra a saúde e para a educação. Na discussão entre a suposta contradição entre “mais gestão versus mais recursos” é consensual a expectativa de que não se pode abrir mão do incremento destes últimos, sem impedimento de que aquela seja aprimorada cada vez mais.
A discussão sobre as escolhas em saúde, por parte da classe média especialmente, adquire especial relevância no momento atual. Neste aspecto, admite-se que a chamada nova classe média não seria propriamente reacionária, mas apenas conservadora, o que a impeliria para o tipo de solução que se delineia no horizonte atual, qual seja a de recorrer ao setor privado quando a saúde está em pauta. Mas entra no cenário, também, o argumento de que o crescimento da classe média não pode representar, em si, um condicionante de mais privatização na saúde. Antes, o caminho de tal classe dentro de tal setor seria muito mais uma opção a ser ditada pelas políticas públicas. Assim, não há dúvida, ainda, que a equação da sustentabilidade do SUS deve ser revista à luz do extraordinário crescimento de demanda que se vê na atualidade. Neste sentido, admite-se como legítima a escolha privada por parte da nova classe média, considerando que existe uma crença generalizada entre os membros deste segmento social de que isso agregaria valor à sua qualidade de vida.
Tema que deveria ser contemplado no presente debate é o da “alteridade”. Com efeito, como reagir contra o crescimento da saúde suplementar no país quando se é, particularmente, detentor de um plano, como talvez ocorra com muitos aqui presentes? Isso representa um sério dilema, a ser encarado pelos que possuem tal perfil, neste e em outros cenários.
Ainda no campo das contradições, constata-se que existe nas entidades públicas um conflito entre ação e pensamento quando está em foco a saúde suplementar. Quando se trata do desvio representado pelo possível subsídio conferido aos servidores públicos em termos de saúde suplementar, aponta-se que os dados concernentes a tanto não são de todo conhecidos, embora o fato seja muito apregoado. Em relação aos estados e municípios, por exemplo, a realidade pura e simples é de que não se dispõe de informações. Mesmo nas empresas estatais federais estas cifras não seriam tão grandes quanto se diz. De toda forma, surge a recomendação de que aos fundos de pensão de empresas públicas seja vedado fazer investimentos em empresas de saúde suplementar e que a supressão de subsídios por parte do setor público à saúde suplementar seja uma determinação taxativa.
No campo das relações entre o público e o privado, deplora-se que exista um padrão cultural limitante, por parte dos empresários brasileiros, face às discussões e eventual desenvolvimento de parcerias entre o público e o privado, e isso tem se constituído como especial fator limitante ao avanço de propostas no campo da saúde. Do lado oposto e como contrapartida, aponta-se a existência de fortes preconceitos e tratamento dos empresários como verdadeiros “vilões”, o que deveria ser arrefecido para que o diálogo prospere. Alerta-se, ainda, para o fato de que os empresários da saúde, no Brasil, não costumam dialogar com o setor saúde nos governos, mas sim com as áreas da economia e da regulação.
De toda forma é consensual a proposta de que se deve envolver nas discussões sobre saúde suplementar e suas relações com o setor público, novos atores, entre eles os empresários. Mas é necessário que tal debate seja ampliado, por exemplo, para avançar além do componente meramente assistencial, como é o caso da promoção da saúde, que tem sido um tema negligenciado. Assim, entre os novos temas que se impõem, estão não só a promoção da saúde como a qualidade de vida em geral. Dentro disso, a questão de custos e benefícios de práticas diferenciadas como as citadas acima importa muito e deve ser considerada.
A questão da renda dos contratantes de planos de saúde suplementar é aspecto essencial do debate, um dilema que deve ser resolvido mediante políticas públicas específicas, pois não é possível afastar a necessidade de um desejável equilíbrio financeiro para os prestadores. Assim, por exemplo, a representação da saúde suplementar propõe enfaticamente que deva haver diferenciação de preço, em função da maior facilidade de acesso de usuários, aceitando isso como prática não só legítima como ética.
SÍNTESE E CONCLUSÕES
Não são poucos os desafios que permeiam o cenário dos rumos da classe média na saúde, em cenários futuros no Brasil. Por exemplo, como tem se dado, contemporaneamente, a dinâmica da mobilidade social de crescimento da classe média, seja nos países emergentes ou no Brasil em particular. As apresentações e os debates do presente Seminário, sem dúvida, permitiram ampliar o conhecimento sobre os vários critérios que permitem a categorização dos diferentes estratos de classes no Brasil, tendo como pressuposto um conceito mais apurado a respeito de o que é classe média e quais seriam os valores mais significativos para tal estrato social, em si mesmo e na sua diferenciação com as demais classes.
Foi possível categorizar, também, a dinâmica das classes sociais brasileiras, particularmente no decorrer da última década, mostrando crescimento das classes A, B e C, além da queda das classes D e E. Foram abordados cenários relativos à maneira como tal dinâmica se comportará nos próximos anos, particularmente em relação à potencialidade de que o crescimento da classe C seja sustentável em tal período e mesmo além dele. Foram assim destacadas algumas variáveis importantes na sustentabilidade do referido segmento, citando-se, entre outros fatores, a educação, o emprego, a renda do trabalho e o acesso ao crédito, sem impedimento de que outros tópicos críticos possam vir a ameaçar tal sustentabilidade.
Mostraram-se evidências empíricas de que a classe média brasileira valoriza a presença do Estado na prestação de serviços sociais como educação, saúde, seguro social, assistência social e saneamento. Pairam dúvidas, todavia, se a mesma estaria disposta a pagar mais impostos para ter esses serviços. Foram identificados e categorizados, ainda, alguns componentes de um sistema de valores da classe média em relação à saúde, por exemplo, em termos de distinção entre direito de cidadania versus bem de consumo a ser adquirido no mercado, assim como ocorreria entre as demais classes sociais.
Constatação ampla é a de que acesso ao sistema de saúde suplementar faz parte do portfólio dos desejos da classe média emergente. Sua viabilização dependeria, na prática, da formulação e comercialização de planos de saúde coletivos, mas que dependeriam, em larga proporção, da manutenção o estado de emprego formal. Isso, de certo, implicaria na necessidade de se conhecer melhor os cenários relativos ao comportamento do emprego na economia brasileira nos próximos anos. Ponto bastante explorado e discutido foi o da identificação e da qualificação das possíveis tendências de migração de pessoas da nova classe média para a saúde suplementar. Questionou-se, neste aspecto, se as empresas prestadoras têm sido capazes de traçar cenários relativos ao grau de impacto que a expansão da saúde suplementar, via planos coletivos, teria sobre seus custos e competitividade, explorando-se, ainda algumas tendências de gestão e maximização de lucratividade que as mesmas apresentam.
Tal tendência à coletivização de planos de saúde deixou, sem dúvida, questões em aberto. Por exemplo, se a classe média, tradicional ou emergente, disporia de recursos para arcar com eventuais copagamentos de planos privados de saúde. E certamente a equação se complicaria se também considerasse aqueles indivíduos que permanecem no mundo da informalidade do trabalho. Isso implicaria explorar cenários futuros, próximos e remotos, relativos às tendências de coletivização dos planos de assistência à saúde e se elas guardariam alguma relação com o crescimento dos empregos formais na economia. Seria preciso conhecer melhor, em suma, como e se a saúde suplementar conseguirá aumentar a oferta de serviços para dar conta da expansão da demanda para alcançar as classes C e D.
A possível tendência à segmentação do sistema de saúde, em um subsistema público para pobres e outro privado para quem pode pagar – por si ou por meio das empresas – certamente há de ter conseqüências na competitividade da economia e no capital social do país. Neste aspecto, os debates apontam que deveriam ser investigadas e discutidas algumas alternativas que o SUS poderia adotar para minimizar o fluxo de pessoas da classe C para os planos de saúde privados, bem como se as mesmas seriam viáveis com o nível de gasto público em saúde praticado no Brasil. Questão que se impõe, ainda, é se a percepção social das deficiências do SUS pela população em geral, mas especialmente pela nova classe média, tenderia a continuar ou se agravar nos próximos anos.
Assim, em linhas gerais, algumas questões podem ser dadas como consensuais, conforme a síntese a seguir demonstra.
- Existiria, de fato, uma nova classe média? Embora entre os estudiosos do tema haja controvérsias, no ambiente do Seminário houve relativo consenso de que ela não só existe de fato como tem presença forte atualmente no cenário nacional, tanto em termos políticos como econômicos. Acredita-se, ainda, que os indicadores disponíveis indicam que seu crescimento continuará a acontecer nos anos próximos e que será sustentável. A maior renda auferida pelos segmentos intermediários da população brasileira, como fenômeno típico da última década, se origina basicamente do trabalho formal, em larga escala, não de transferências governamentais do tipo “Bolsa Família” e congêneres; isso representa, portanto, um quadro de inquestionável inclusão produtiva.
- Quais seriam os desejos dessa nova classe média em relação à saúde? Resultados de pesquisas de opinião feitas dentro e fora do governo apontam, por exemplo, que as classes médias valorizam o papel do Estado, inclusive na saúde, embora se mostrem renitentes quando se coloca a questão do aumento de tributos para se alcançar tal objetivo. Aceitam, embora de forma menos enfática do que as classes mais altas, que deve haver maior investimento público na área da saúde. Como nas demais classes, a questão da saúde está colocada no topo das prioridades da classe média. Ao avaliar o SUS em termos da qualidade do atendimento prestado, sua posição é intermediária: não tão pessimista quanto a classe alta, porém menos otimista do que a classe mais baixa. Isso não impede – ou pelo contrário, impulsiona – que os segmentos médios da sociedade demonstrem forte aspiração pelo consumo de planos privados de saúde, aspecto que é confirmado pelas estatísticas, que revelam intenso crescimento na aquisição de tais planos, principalmente na variedade coletiva, mais do que na individual. Do ponto de vista das decisões individuais em saúde, por exemplo, no consumo de tabaco e na prática de exercícios físicos, o segmento em pauta tem comportamento intermediário, mais propenso à promoção da saúde do que os mais pobres, porém mais renitente a esta em relação aos mais ricos. Mas para vai realmente a classe média, em termos de saúde? Questionou-se bastante a equação segundo a qual, diante do aumento da renda e das informações disponíveis, fatalmente a classe média será cada vez uma consumidora de planos de saúde privados. Tal “desejo”, é lembrado, teria origem externa, através da mídia, da publicidade e da influência da classe alta. Em contrapartida, a classe média, ao adquirir mais consciência de seus direitos, inclusive à saúde, passaria a atuar de forma a pressionar mais fortemente os governos na realização de políticas públicas de feição inclusiva. Resta, na visão de muitos, a expectativa de que políticas bem elaboradas e com foco correto possam reverter o padrão de consumo privado que outros interlocutores auguram para a classe média na saúde.
- Meros consumidores ou portadores de direitos? São reclamadas, de forma uniforme entre os defensores do SUS e da saúde suplementar, novas políticas e ações voltadas seja para a conscientização do consumidor, seja para a garantia de direitos, de forma mais ampla. Aceita-se que está presente no cenário, de fato, um novo consumidor, que deve se preocupar de forma crescente com seus hábitos de vida e com o impacto que suas escolhas provocam em si mesmo e nos demais membros da coletividade. No cenário brasileiro, seja no SUS ou nos setor privado, há que se estar atento para o fato de que este cidadão, independente de sua condição de “consumidor” será crescentemente mais idoso e viverá mais anos, além de ser dotado, cada vez mais, de informações, de proteção legal e regulatória, além de mais bem informado e disposto a cobrar seus direitos e do qual se espera e uma maior responsabilidade com o uso dos recursos. Caberia, assim, aos gestores dos sistemas de saúde assumir a importante tarefa de informar cada vez melhor e chamar os usuários, seja consumidores ou cidadãos portadores de direitos, à reflexão sobre a adoção de hábitos mais saudáveis de vida e sobre as conseqüências dos mesmos tanto em termos individuais quanto sociais.
- A saúde suplementar tem qualidade inferior ou superior ao SUS? Este é um contencioso distante de qualquer solução fácil. De um lado, argumenta-se que se avolumam, em toda parte as críticas ao desempenho dos planos de saúde que, além do mais, se beneficiam do fato de que os casos realmente graves e de alto custo acabam sendo de responsabilidade do sistema público, sem possibilidades concretas de ressarcimento ou algo parecido. Além disso, são apontadas as práticas maximizadoras de lucro, habituais entre as operadoras de saúde suplementar. Do lado contrário, aponta-se que a crítica atual se deveria, em parte, ao fato de que o crescimento da demanda, particularmente com a chegada de novos associados de classe média aos planos, que ainda não possibilitou que os mesmos se ajustassem à nova situação. Mas mesmo os defensores do setor privado admitem que nem sempre é possível atender as expectativas do consumidor, ainda que possam corresponder estritamente ao que está previsto na regulamentação e nos contratos. O problema, alega-se, é que consumidor deseja o que lhe faculta o acesso instantâneo, via internet, de variadas informações geradas em todo o globo, nem sempre comprovadas em, termos de eficácia e custo-efetividade. Assim embora os pacientes não costumem medir custos, na vida real eles são de fato são impactantes.
- Para onde vai o SUS? Representando desde sua fundação a expressão de uma ideologia fundada na solidariedade, o SUS, todavia, ainda está longe de expressar o desejo coletivo dos brasileiros, de todas as classes sociais. Com efeito, já em seu nascedouro, um verdadeiro “ovo de serpente” já era gerado, através do fomento a um modelo concorrente, que pouco a pouco busca e impõe sua hegemonia. O fato é que os membros emergentes da sociedade brasileira não vêm o SUS como uma conquista, mas sim o recebem como algo que o lhes impõe o governo. Além disso, acreditam que o SUS é um sistema precário e apenas voltado para os mais pobres, desejando, assim, um acesso diferenciado à saúde, do tipo que se encontra no Mercado, segundo a visão dominante, sem dúvida imposta de fora. Mas o SUS realmente se mostra insuficiente, por várias razões, por exemplo, pela relativa carência de financiamento, pela indefinição de um efetivo modelo de atenção, por fragilidade da luta pela sua conquista, além da já referida “implementação mitigada” e da mera “universalização excludente”. Mesmo a o sucesso da ampliação da cobertura pela atenção básica, hoje reconhecido em todo o mundo, não se registra, de fato, nas cidades grandes e nas regiões metropolitanas, nas quais vive boa parte da população brasileira e, particularmente, grandes contingentes de classe média. Em tais sítios o incremento da saúde se deu mediante modelos centrados na oferta privada, dentro de uma cultura médica e tecnológica hegemônica. Admite-se, enfim, que o SUS poderia se recolocar como opção real, mas para tanto precisaria buscar novas modalidades de sustentabilidade econômica, organizacional, política, tecnológica, cultural e clínica. Restaria ainda a questão de como promover e consolidar a ampliação da consciência política dos cidadãos brasileiros em termos do fortalecimento do SUS e de sua importância para as futuras gerações.
- Para onde vai a saúde suplementar? O crescimento da saúde suplementar é inquestionável, tanto em termos de novos associados, que já alcançam a cifra dos 50 milhões de brasileiros, como em termos de número de empresas prestadoras, como de faturamento. Algumas tendências recentes da saúde suplementar no Brasil são apontadas, por exemplo: (a) a necessidade de oferta de planos com preços mais acessíveis, de forma a contemplar a ascensão das classes C e D, em sintonia com a percepção social das deficiências do SUS; (b) como decorrência, o risco de que, em médio e longo prazo, tal sistema se veja pressionado em seus limites, fazendo com que os problemas de acesso aos serviços do SUS possam se repetir na saúde suplementar, especialmente nos planos de menor custo; (c) a incorporação de uma lógica financeira no setor, que potencializaria as distorções e inverteria mais ainda as cifras entre o gasto público e o privado; (d) o incentivo à criação de planos privados coletivos de assistência à saúde por adesão, através de entes jurídicos de caráter profissional, classista ou setorial; (e) o surgimento de uma “filantropia lucrativa estatal”, hospitalar e de alta complexidade, com visível estratificação institucionalizada entre os diversos componentes da saúde suplementar; (f) as estimativas de diferenças de custo dos planos de saúde, com potencial prejuízo para a classe média; (g) o agravante de que as empresas de planos de saúde não inspiram confiança em sua clientela, entre outros aspectos, pelos seus elevados custos administrativos e de marketing, bem como pela prática freqüente de negação de cobertura a seus associados; (h) a associação entre planos de menor preço com prestadores de menor porte, o que levaria a se constituir redes assistenciais com prestadores com complexidade assistencial aquém das necessidades de saúde. Dentro de tal contexto surge, ainda, a suposta estratégia do Governo Federal, bastante criticada pelos que defendem o SUS, de ampliação da clientela dos planos de saúde para a população de baixa renda, dentro do pressuposto de que o setor de saúde suplementar no país teria muito espaço para crescer.
- E a regulação da saúde suplementar, como anda? Foi bastante enfatizada a necessidade de melhor regulação por parte do Poder Público sobre a saúde suplementar, particularmente necessária face ao aumento de adesão de novos segmentos aos planos privados de saúde. Isso deve ter como contrapartida, no plano cultural, o fortalecimento do cidadão, que dentro de um novo patamar de renda e escolaridade, deverá a exigir dos serviços públicos de saúde um novo padrão de atendimento. O panorama da regulação tem um fato importante a ser considerado, qual seja a promulgação da Lei 9.656, em 1998, instituindo um marco regulatório que tem como uma de suas principais características a garantia da cobertura assistencial a todas as doenças relacionadas na CID/OMS, além de outras medidas de impacto sobre o setor. De toda forma, denunciou-se que a regulação praticada pelo estado brasileiro, não só neste campo, mas nas relações público privadas em geral, não prima pelas práticas republicanas, sendo também tardia e historicamente comprometida com o favorecimento do pólo privado. Sabe-se, além do mais, que no próprio plano da gestão interna do sistema, o SUS ainda é portador de enorme dívida com a sociedade, até porque sofre as conseqüências da já referida “implantação mitigada”, ou seja, longe da plenitude desejável, além de marcada pela chamada “onda neoliberal” internacional. Os sucessos do SUS são inquestionáveis, mas mesmo representando rupturas com a discriminação, não foram suficientes para reverter o padrão estratificado e segmentado do sistema de saúde. O Estado brasileiro não seria, nem de longe, um ator alheio e externo ao fenômeno da exclusão e da desigualdade em saúde, da mesma forma que não é neutro face ao crescimento da oferta de planos de saúde a segmentos cada vez maiores da população. Assim, se o Estado pode e deve ser parte da solução, historicamente tem sido também parte da criação do problema. O resultado de tudo isso é que nas duas últimas décadas, principalmente, a pujante expansão da oferta e da demanda por planos privados de saúde foi claramente apoiada por políticas públicas, do tipo concessão de créditos e empréstimos, ente outras. Isso acentuou a fragmentação da rede assistencial e se contrapôs objetivamente às tentativas de universalização e coordenação racional da rede de serviços existente. Se a defesa do SUS clama por mais regulação do sistema, no pólo oposto o que se deseja é mais facilidades para a venda de planos, bem como a prática de subsídios governamentais para os indivíduos os consumirem, seja pelo lado da oferta ou da demanda.
- O que efetivamente se propôs no evento? Do lado da defesa do SUS, propôs-se o que se denominou uma Agenda para o Brasil no século XXI, para enfrentar os desafios presentes. Seu pressuposto é o de que a privatização é determinada institucionalmente, mas como as instituições são construções sociais, as mudanças sociais poderiam, então, transformar as instituições. Para que então, serviria o SUS? A resposta, citando Polanyi (2012) é: para constituir outra sociabilidade, pois “nada obscurece de modo tão eficaz a nossa visão social quanto o preconceito economicista”. Em tal agenda se incluiriam: (a) a desfragmentação das Políticas Sociais e a afirmação de especificidades, já que a saúde não deverá ser resolvida com políticas de transferência de renda, meramente; (b) a participação da saúde no Conselho Nacional de Desenvolvimento Social; (c) a afirmação efetiva da saúde como Direito; (d) a ampliação e a maior qualidade da oferta; (e) a ampliação da capacidade Nacional de Pesquisa, Inovação Tecnológica e Produção de Insumos; (f) a necessidade de posicionamento de entidades e organizações; a colocação das contradições e dos conflitos “em cima da mesa”; (g) a definição de uma efetiva Política Nacional de Preços; (h) a presença no cenário de um Instituto Nacional de Qualidade em Saúde, de natureza governamental, porém independente; (i) o incentivo a pesquisas sobre acesso, utilização de serviços e qualidade, além de pesquisas de opinião sobre as relações entre o público e o privado no Sistema de Saúde Brasileiro. No campo da defesa da saúde suplementar, os argumentos são os seguintes: (a) encarar de frente, na formulação da política de saúde, alguns processos epidemiológicos e demográficos em curso, que certamente provocarão aumento considerável nas despesas per capita. Entre tais processos são citados: a baixa expectativa de vida, mas que vem crescendo a uma velocidade nunca antes vista; a alta incidência de doenças crônicas; o envelhecimento da população; as proporções cada vez maiores de pessoas com necessidade de tratamentos continuados; (b) a gestão do sistema de saúde a ser acompanhada pelo desenvolvimento de novos modelos de remuneração de serviços, que alinhem incentivos com o objetivo de se oferecer tratamentos resolutivos aos indivíduos das várias classes sociais; (c) a incorporação, em tais modelos de gestão, de critérios de previsibilidade do desfecho clinico; da qualidade dos serviços, de forma a praticar competição e efetivamente entregar valor aos pacientes; (d) a garantia efetiva da sustentabilidade econômica da saúde como um todo, tanto para o SUS quanto para a Saude Suplementar; (e) a instituição de novos mecanismos de financiamento, por exemplo, de planos de saúde com componente de capitalização; (f) a instituição de políticas de incentivo aos estilos de vida adequados, promoção da saúde e prevenção de doenças.