Eu tive a chance de assisti-lo em Lisboa, em 2012. Um homem magro, discreto, vestido com elegância, terno Armani e chapéu cinzento de aba curta. Um show de três longas horas, inesquecíveis; um cantor de quase 80 anos no palco, esbanjando energia, apesar da voz pausada e rouca. Tinha tudo para não ser popstar, mas era – mesmo que não o quisesse. Reverenciado por onde passava, por todos os públicos. Alguém que só se lançou na música aos 30 anos, fora de seu país natal, o Canadá, mas não antes de ter o seu talento como romancista e poeta reconhecido pela crítica. Nos anos 90, no auge do sucesso, retira-se do show business e do sucesso retumbante passa cinco longos anos em um mosteiro budista, como noviço e monge. Volta às turnês com mais de setenta anos, em meados da década passada, para recuperar-se da bancarrota que lhe causara uma empresária picareta. Canta em dezenas de países, sempre com espaços lotados de fãs apaixonados e ardorosos. Recupera o dinheiro e muito mais: a gratidão e a adoração de um público fiel. Um homem que foi de muitas mulheres, de Janis Joplin a artistas de Hollywood e nunca perdeu a atitude nobre e compassiva. Religioso sem ser piegas, entendia da Torá judaica como um rabino, ao mesmo tempo um devoto budista e brahmanista profundo. Sim, existiu alguém assim, morreu ontem, mas continua vivendo, para mim e para muita gente mais. Ele era um pássaro pousado suavemente no fio tênue que separa o amor do ódio; a dor do prazer; o sagrado do profano; a realidade da fantasia; Eros de Tanatos; o Ego do Id… Grande como ele, poucos: Leonard Cohen. Para ele vamos continuar soando nossos sinos e fazendo nossas oferendas, mesmo que não sejam perfeitas. Ele viu e nos disse: há uma brecha em tudo que existe e é através dela que a luz nos chega. Ring the bells that still can ring / Forget your perfect offering / There is a crack in everything / That’s how the light gets in (Anthem).
Meu tributo a ele, escrito três anos atrás:
LEMBRANDO LEONARD
Uma pergunta que às vezes me faço e estendo aos leitores com mais de 50 anos: o que você ouvia e curtia na década de 60? Beatles não vale, afinal de contas, todo mundo os ouvia, no Brasil e no mundo. E nem precisava gostar deles: o quarteto britânico nos era empurrado, ouvido a dentro, 24 horas por dia.
Mas de minha parte, devo confessar que minha passagem por essa gloriosa década, musicalmente falando, foi inteiramente dominada pela ideologia. Como bom militante de esquerda (pelo menos era como eu me classificava na época) eu achava que tudo o que vinha do exterior era uma estratégia perversa do imperialismo estrangeiro para mais ainda nos dominar. E tome bossa nova, samba de raiz, canções de protesto do CPC da UNE. Ouvíamos sem dor na consciência e sem patrulhamento ideológico qualquer coisa que não fosse música cantada em língua de gringo. Até jovem guarda valia: era mais lúcido, autêntico e inserido no contexto, conforme um jargão da militância da época.
Não é que tenha sido ruim curtir o que então ainda não era chamado de MPB. Mas a verdade é que, com tal filtro ideológico, acabei ficando com a formação do meu gosto musical defeituosa.
Décadas depois é que fui me dar conta de algumas dessas deficiências, aliás, de um enorme buraco negro em meu conhecimento musical. Eis que me foi apresentada, no início dos anos 90, a obra de um cidadão canadense, escritor, poeta, músico, cantor, artista plástico e algo mais chamado Leonard Cohen. A primeira impressão que tive já foi forte. Meu filho, adolescente à época, mas que como bom membro de outra geração tinha conhecimento musical mais amplo que o meu, foi logo definindo: ele se parece com o Bob Dylan, só que é mais triste…
Para mim que só conheci – e amei – Dylan muito mais tarde do que devia, sendo ele outro dos deserdados de minha juventude, a apresentação me pareceu curiosa, mas logo que vi que Leonard era mais. Ou, tentando dizer em poucas palavras: profundamente poético e lírico, mas também soturno e sombrio algumas vezes. Sua voz vem do fundo de uma caverna de Platão… Muito mais simpático com o público e incomparavelmente menos movido pela indústria fonográfica e nem tão triste assim, quando comparado ao seu concorrente americano Robert Zimmerman, dito Bob Dylan, também judeu como ele. E portador de uma elegância incomparável, com seus ternos Armani bem cortados e seus chapéus de feltro.
Cohen arrasa quando fala de relacionamentos, uma das temáticas reiteradas de sua poesia musicada. Em I’m your man ele diz: “Se o que você quer é um amante / Eu faço tudo o que você pedir / Mas se quiser outro tipo de amor / Ponho até uma máscara por você / E se quiser só um companheiro / Pega minha mão / Ou se quiser apenas me provocar / Aqui estou / Sou seu homem.”
Quanto se debruça sobre os tempos que virão, mostra toda uma intensidade grave e tristonha, até ameaçadora: “Devolva-me minha noite arrasada / meu quarto de espelhos, minha vida secreta / há solidão aqui / ninguém ficou para torturar / me dê o controle absoluto / sobre toda alma vivente / e deite ao meu lado, querida / isso é uma ordem! / Eu vi nações crescer e fenecer / eu ouvi suas histórias, ouvi todos eles / mas o amor é a única máquina de sobrevivência / Acabou, não dá mais / nada mais / e agora que as rodas do paraíso pararam / você ouve o murmúrio da cavalgada do demo / está pronto para o futuro / e ele é criminoso” (The future).
Mas Leonard Cohen é capaz de produzir lirismo puro em muitas canções também, como nesta (Bird on the wire): “Como um pássaro no fio / como um bêbado no coral noturno / eu tentei, à minha maneira, ser livre / Como uma minhoca no anzol / como um cavaleiro de um romance fora de moda / eu salvei todas as minhas costelas para ti”,
Leonard parece profético quando anuncia que Democracy is coming to the USA. É a chegada de Obama? Não! A canção é do início dos anos 90: “Vem dos homens e das mulheres / ó meu bem, poderemos voltar a fazer amor / e mergulhar em profundezas / de rios que irão chorar / e montanhas que gritarão: amém! / É como a correnteza das marés / debaixo dos fluxos lunares / imperiais, misteriosos / em cristalização amorosa / é a democracia que chega aos Estados Unidos da América”.
Leonard Cohen nasceu em Montreal, Canadá, filho de uma família judia de origem russa e polaca. Teve a infância profundamente marcada pela morte de seu pai, o que lhe acarretaria a depressão que o acompanharia por muitos anos. Começa a carreira musical aos 17 anos, tocando música country, ao mesmo tempo em que escreve seus primeiros poemas, inspirado por autores como García Lorca, de quem ele, aliás, faria uma belíssima versão musicada de um poema (Take this waltz). Ainda nos anos 50 dá início a uma vasta obra literária, não só de poesia, mas também de ficção. Em meados dos 60, Cohen já estabelecido como escritor, resolve incursionar pela música. Mas em diversos momentos de sua carreira ele se afasta desse mundo por não aceitar as regras mercadológicas, passando, na década de 90 alguns anos em um mosteiro budista da Califórnia,onde recebe o nome de Jikan (“silencioso”).
Seu último CD, Live in London, de 2008, é um objeto de consumo obrigatório para quem tem bom gosto e sensibilidade. Nele Cohen se mostra um membro notável da humanidade e poeta transcendente, um verdadeiro ser iluminado, enfim.
Eu só posso me regozijar por ter conhecido Leonard Cohen, mesmo tardiamente. E dou graças aos céus por ter conseguido me libertar dos filtros e das cadeias da ideologia para poder apreciar tudo o que há de bom na vida.
—
Apenas um tira gosto da poesia Coheniana…
Anthem
The birds they sang
at the break of day
Start again
I heard them say
Don’t dwell on what
has passed away
or what is yet to be.
Ah the wars they will
be fought again
The holy dove
She will be caught again
bought and sold
and bought again
the dove is never free.
Ring the bells that still can ring
Forget your perfect offering
There is a crack in everything
That’s how the light gets in.
We asked for signs
the signs were sent:
the birth betrayed
the marriage spent
Yeah the widowhood
of every government —
signs for all to see.
I can’t run no more
with that lawless crowd
while the killers in high places
say their prayers out loud.
But they’ve summoned, they’ve summoned up
a thundercloud
and they’re going to hear from me.
Ring the bells that still can ring …
You can…